NOTÍCIA
Ouvir o outro e o seu entorno tem sido exercícios praticados em escolas públicas por meio de projetos que, ao buscar prevenir ou diminuir os impactos dos crimes-tragédias ambientais, estimulam o protagonismo juvenil
A escola pública estadual que Raiane Cavalcante de Souza estudou está localizada em área de risco: próxima a um rio e, consequentemente, tanto a instituição quanto a vizinhança sofrem com inundações. A EE Prof.ª Semíramis Prado de Oliveira fica em Ubatuba, São Paulo, entre os bairros do Lázaro e o Saco da Ribeira, litoral norte. Ao longo de seu ensino médio, a jovem foi contemplada com uma bolsa de iniciação científica para pesquisar, elaborar e executar um plano de contingência escolar voltado, justamente, para as alagações.
“Durante o projeto, desenvolvemos a campanha Comunidade Segura, em que consegui conversar, para além da escola, com os moradores afetados. Depois ainda teve uma simulação desse plano de contingência”, lembra Raiane, que mora próximo à escola Semíramis Prado e hoje está com 20 anos.
O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica — Ensino Médio (PIBIC-EM) teve início em 2012, no governo Dilma, e é financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) por meio de 100 reais mensais. O Instituto de Pesquisa Ambiental (IPA) atua com escolas do litoral norte de SP e, ao se conveniar ao CNPQ, inseriu a bolsa em seu projeto Escolas seguras — iniciação científica como prática de cidadania em escolas públicas para redução de risco de desastres (a instituição que a Raiane estudou entrou nessa iniciativa). Hoje o IPA continua atuando nas escolas, mas sem essa bolsa. Há expectativa de ser retomada em breve.
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O valor da bolsa de iniciação científica é baixo e não sofreu reajustes, porém, é um passo para estimular as juventudes a seguirem a área da pesquisa e aguçar os seus papéis enquanto agentes transformadores frentes aos crimes–desastres ambientais. Tanto que hoje Raiane está no terceiro semestre de biologia, sendo a primeira de sua família a ingressar no ensino superior e, atualmente, tem uma bolsa pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
“No ensino médio, a bolsa me deixou apaixonada pela pesquisa, no estar em campo. Dá muito trabalho, só que é muito bom ver os resultados”, reconhece. “Ao pensar no que faria depois da escola me veio a experiência desse projeto e percebi: quero ser uma pesquisadora e veio o interesse em biologia. Assim como me ajudaram, busco desenvolver algo parecido. A iniciação científica me deu a luz para saber a área que eu vou seguir e eu quero ser essa pessoa para outras pessoas também: guiar os estudantes em geral, porque quando a gente está nessa fase do ensino médio para a faculdade, temos muitas dúvidas.”
O geógrafo Pedro Carignato Basílio Leal tem a honrosa missão de trabalhar no programa do IPA Escolas seguras. Junto com o Thiago Lobão Cordeiro, professor da escola, orientou a Raiane no projeto do ensino médio. Pedro atua tanto na gestão de prevenção de riscos ambientais como na redução deles. A metodologia do IPA se baseia na gestão comunitária de risco.
“A escola é um dos pontos da comunidade. Como agir quando acontecer o problema; todos esses instrumentos de gestão de risco, se a comunidade não os absorve, não servem para nada. Nosso trabalho no IPA é fortalecer a resiliência da comunidade, ou seja, aumentar a capacidade das pessoas responderem antes, durante e depois de um desastre. Isso é um plano de contingência. Dentro de um território sempre há uma escola e esse é o ponto-chave: chegarmos, a partir da escola, na comunidade.”
Para efetivar esse plano, Pedro Basilio se utiliza de abordagens participativas, incentivando o protagonismo juvenil, e sempre questionando os estudantes: “é a maiêutica que Sócrates usava, não é qualquer pergunta”, esclarece. São abordagens participativas como essas que Pedro desenvolve em seu doutorado voltado à gestão comunitária de risco a partir das escolas, o qual está praticamente finalizado, mas que ainda não tem um orientador(a), isso porque busca uma pessoa negra, só que ainda não encontrou devido ao inaceitável racismo estrutural e proposital da sociedade.
“Sou um facilitador. A proposta do trabalho é gerar pessoas organizadas e a escola já é um lugar de excelência dessa organização dentro da comunidade.” Teatro do oprimido e teatro social dos afetos também são adotados por Pedro em suas ações nas escolas: “Spinoza falava do afeto como uma ação política. É fazer ciência usando o teatro”, explica.
Ele completa: “a ciência serve para a gente viver melhor e é isso que a Raiane quer mostrar para as outras pessoas, assim como eu. É usar a ciência realmente para a nossa vida e não como tendo apenas o muro da faculdade e só lá é ciência, fora não. A extensão disso é o conhecimento científico realmente se juntar com a sabedoria popular — é importante ter as duas coisas — e juntos melhorarem a vida das pessoas”, argumenta Pedro Basilio Leal.
O IPA já atuava em São Sebastião, região litorânea de SP, quando ocorreu o desastre ambiental ano passado, com mortes e desaparecidos. Sobre uma escola pública específica que hoje ainda atua, Pedro relata: “Foi o pior cenário de todos porque atingiu a casa dos estudantes, a escola que estudam, era uma situação horrível. Nesse cenário tem que saber como trabalhar”.
Ele destaca que em casos de desastres como esse, sensibilidade e saber ouvir são fundamentais. Como quando um professor disse que se afasta quando o Pedro vai na escola porque perdeu parentes no desastre. O geógrafo entendeu o recado e relatou à sua equipe para não ir à escola falar dos problemas, porque os educadores, estudantes e moradores sabem, e muito bem, por sentirem na pele. O foco agora está em como viver daqui para a frente.
Pedro Carignato Basilio Leal lembra de uma atividade que conduziu sobre capitalismo, urbanização e racismo ambiental, em que fez os estudantes questionarem o motivo de os condomínios de alto padrão e a marina — saída de iates, veleiros e barcos — não alagarem, mas a escola pública que Raiane estudou, sim. “Um estudante chegou à seguinte conclusão: ‘a escola é o bueiro’”.
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Questionados sobre as causas do alagamento da escola, Raiane diz: “os moradores falam que quando não tinha tantas moradias e construções não alagava tanto”. Pedro completa que há sim um problema de planejamento territorial, da ação do homem impactando negativamente devido ao modelo econômico global, mas que também tem inundado devido às mudanças climáticas, devido aos eventos extremos, não sendo apenas uma causa. “E as piores áreas [afetadas] ficarão com as pessoas com menos dinheiro”, critica o geógrafo, que sabe que essa problemática é uma das camadas do racismo ambiental. Pedro Basilio finaliza: “reportar a prevenção é muito mais importante porque um dólar gasto na prevenção é sete que você economiza na resposta [desastre]. Falo economicamente, mas tem vida envolvida”.
É preciso escancarar outros retratos da crise-crime climática no Brasil (mas que diversos países também estão sentindo o impacto), como rios secos no Amazonas e animais mortos em 2023; já este ano, Rio Grande do Sul alagado, mortes e desaparecidos — citando apenas dois recentes e com destaque na grande mídia.
“Devastador. De repente o cenário era de guerra. Presenciamos alguns animais em agonia.” É assim que a oceanógrafa e uma das maiores especialistas em mamíferos aquáticos amazônicos, Miriam Marmontel traduz o terror que ela e equipe presenciaram durante os trabalhos com os mais de 300 botos amazônicos vermelhos e tucuxis mortos — e antes já ameaçados de extinção. A tragédia ocorreu entre setembro e novembro do ano passado nos lagos Tefé e Coari, no Amazonas. “São lagos separados por 200 km de distância na região do médio rio Solimões”, conta Miriam, que é pesquisadora titular e líder do Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos Amazônicos do respeitado Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, cuja sede é em Tefé, cidade amazônica na qual ela vive há mais de 30 anos. “No caso do lago Tefé, temos um dado de 2014 com estimativa de 900 botos-vermelho e 500 tucuxi na área, o que significaria uma perda de mais de 10% da população desta área em específico”, lamenta.
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Segundo Miriam, a principal causa para essa mortandade incomum são as mudanças climáticas, as quais provocaram uma seca extrema na região. “Vivenciamos ondas de calor (pelo país todo naquele momento), temperaturas do ar e principalmente da água nunca registradas anteriormente (até 41°C em toda — a reduzida — coluna d’água em certos momentos), baixa umidade do ar, alto grau de radiação solar, qualidade péssima do ar”, detalha a pesquisadora.
Questionada sobre pessoas que acham que tais situações fazem parte do processo natural da Terra, Miriam Marmontel rebate: “nunca antes algo assim foi documentado na Amazônia — ou sequer no mundo, mesmo com mamíferos marinhos, que são muito mais estudados, e em diversas regiões do planeta. Algumas espécies têm sido afetadas pelas mudanças climáticas, com alteração em distribuição, rotas migratórias, perda de itens alimentares; mas nunca pelo efeito direto do calor”.
“Essa mortandade foi ‘um tapa na cara’. Como cientistas, nunca duvidamos, e já vínhamos percebendo os efeitos das mudanças climáticas, não foi nem um alerta, foi uma constatação — a maior — de que as mudanças climáticas chegaram à Amazônia, e que o ponto de não retorno pode estar mais próximo do que imaginávamos”, denuncia Miriam Marmontel, que dedica sua vida aos animais de Tefé. Sobre o papel da educação nesse processo: “As escolas precisam continuar alimentando os alunos com informações claras e verídicas sobre a situação global que estamos enfrentando”, orienta Miriam Marmontel.
É na cidade cearense de Pentecoste, a cerca de 80 km de Fortaleza, que em 2011 surge um laboratório de inovações pedagógicas, a Escola Estadual de Educação Profissional Alan Pinho Tabosa, resultado da parceria entre a Universidade Federal do Ceará e a Secretaria de Educação do estado. A instituição escolar integra ainda o time das Escolas2030, programa mundial que visa assegurar o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS) 4 da ONU e que no Brasil é implantado por meio de uma parceria entre a Ashoka e a Faculdade de Educação da USP. O Fórum Global das Escolas2030 aconteceu este ano de 10 a 14 de junho no Quirquistão, na Ásia, sob o tema Liderança de professores para a resiliência climática: como transformar a aprendizagem através de caminhos da escola e do sistema para o futuro do planeta e reuniu educadores de 30 países.
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Elton Luz Lopes, diretor da Alan Pinho, professor e doutor em química, participou do Fórum Global. A repórter conseguiu trocar mensagens com Elton quando ele ainda estava no primeiro dia de atividades. “A importância da centralidade do papel docente e o quanto a escola precisa dar espaço para que isso ocorra tem sido destaque até o momento”, conta. A Alan Pinho atua com sua comunidade escolar na formação de lideranças cooperativas e solidárias. O diretor compreende que essa prática é uma das maneiras de desenvolver nos estudantes competências como a resiliência climática. Tanto que boa parte dos projetos da escola voltados à sustentabilidade nasceram a partir dos jovens. Os estudantes vivenciam três eixos: a consciência da própria realidade, responsabilidade e direitos; competência para a decisão e estabelecer parcerias; e o caráter para fazer as coisas corretas. “Essa formação não se limita a ter aula de liderança. Não acreditamos que uma liderança possa se formar assistindo alguém dizendo o que ela tem que fazer. Discutimos o papel de um líder e de cada um nesse processo. Incentivamos primeiro a se enxergarem como lideranças e depois a proporem soluções. A planejar e executar projetos”, compartilha o diretor Elton Luz.
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Em 2021, a brasileira nascida na Floresta Amazônica Txai Suruí se tornou a primeira indígena a discursar na Conferência das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas, a COP26, realizada na Escócia. Na época com 24 anos, em inglês, ela provocou presidentes e primeiros-ministros ao exigir “frear as emissões de promessas mentirosas e irresponsáveis”.
Filha de cacique e de uma mãe ativista pela Terra, morou em Rondônia sob escolta da Força Nacional Brasileira por conta de madeireiros que ameaçavam sua família. Hoje, aos 27 anos, já recebeu diversos prêmios. Ela diz à repórter que continua acreditando que é possível reverter a crise-crime das mudanças climáticas.
“Se o impacto é coletivo, a solução também é coletiva. Mudanças climáticas é falar de pessoas. É tempo de se autoeducar para conscientizar o outro. Temos de lembrar que estamos perto das eleições e votar em quem tem compromisso com a vida, e não com a morte. O capitalismo quer que a gente pense que só existe esse sistema e esse caminho. Milenarmente, nós, povos indígenas, mostramos que há outro modo de ser e olhar o mundo, e que todos e todas devem zelar pela nossa mãe Terra. Temos que cobrar e nos indignarmos mais”, convida.
Coproduzido por Txai Suruí, o documentário O território denuncia as invasões nas terras do povo indígena Uru-eu-wau-wau, em RO, na Floresta Amazônica. Disponível no Disney+, conquistou o Emmy deste ano.
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