NOTÍCIA

Edição 299

Ailton Krenak: florestania para aprender a ouvir o rio e a montanha

A cidadania está banalizada; o humano precisa sair de cena para deixar outros mestres falarem, exclama uma das principais lideranças indígenas do país ao apontar equívocos da educação ocidental

Publicado em 24/11/2023

por Laura Rachid

Ailton Krenak_Andrea Nestre_destaque

Ailton Alves Lacerda Krenak é uma entidade mensageira da natureza que ao clamar por um mundo mais justo, para isso, pluriétnico, a fim de respeitar e incluir os diferentes seres e as diferentes formas de viver, evidencia as barbaridades de um modo de vida marcado pelo egoísmo e o consumo. Suas falas nos desconstroem, nos tiram da caixa, para então a reconstrução acontecer. Ele percorre territórios, dialoga e aprende com pessoas, rios e pássaros, sendo uma das principais lideranças indígenas do mundo, respeitado por diferentes povos.


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Autor dos best-sellers Ideias para adiar o fim do mundo, O amanhã não está à venda e A vida não é útil, todos pela Companhia das Letras, este ano se tornou o primeiro indígena a ter uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL). Junto a outras lideranças, foi responsável por garantir direitos indígenas na Constituição de 1988 e marcou a história ao se pintar de jenipapo, como um protesto, na Constituinte. 

Aos 70 anos, ele também aprende com seus sonhos, que vira e mexe revelam algo, inclusive, conta nesta conversa que o sonho é valorizado por povos do tronco linguístico macro-jê, como os Krenak. Ailton nasceu em Minas Gerais, na região do Vale do Rio Doce, na língua dos Krenak, Waku, ser vivo morto em 2015 pela mineração.  

Ailton Krenak

“Quem está cego, surdo e mudo é esse humano.” Ailton Krenak orienta que precisamos nos abrir para outras perspectivas, outras cosmologias
Foto: Andrea Mestre

A entrevista exclusiva aconteceu durante o lançamento da exposição gratuita Hiromi Nagakura até a Amazônia com Ailton Krenak, no Instituto Tomie Ohtake, SP, que além de palestras com outros povos, teve o lançamento de seu novo livro Um rio, um pássaro (ed. Dantes). Confira.

A sua concepção de escola é a de crianças cuspidas em uma caixa de depósito. Já a sala de aula seria o chão da fábrica. Em que tipo de educação acredita? Onde está essa educação? Ela acontece em algum local? 

Em uma sociedade complexa — metrópole, cidades, população grande —, a ideia que tenho relacionada com isso que se chama educação quase não se aplica, porque me refiro a experiências que são de transmissão geracional. Uma geração transmitindo à outra as suas experiências. 

O meu amigo Tika, do povo Yawanawa, que esteve no encontro com o Nagakura [no Instituto Tomie Ohtake para o lançamento da exposição], fez uma fala tão bonita sobre o povo dele, o seu território e sobre a ideia, por exemplo, da oralidade como veículo de transmissão de saberes. Sobre sua experiência dentro da floresta, disse de uma maneira muito clara que tudo tem a capacidade educativa ou educadora da pessoa e que dentro da floresta não existe alguém que é o professor, porque são tantos, eles estão em tantas representações que a experiência não fica exclusiva entre um ser humano e outro ser humano, ou entre um Yawanawa e outro Yawanawa, mas é uma experiência tão aberta que você aprende com a árvore, com o sonho, com o vento, com a chuva, com os outros animais. Tudo nesse território tem pessoalidade, tudo ali é uma pessoa. Quer dizer, tudo é gente. 

No Ocidente, a ideia de educação começa com um erro fundamental: acreditar que ela é um assunto exclusivamente da espécie do humano. Então, o humano não se educa com um cavalo, com um peixe, ele não se educa com um pássaro cantando ou com um evento qualquer daquilo que a gente chama de natural. Esses eventos estão todos surdos, cegos e mudos. Não têm nada a dizer para o humano. Isso sugere que, na verdade, quem está cego, surdo e mudo é esse humano que perdeu a noção de tudo e que criou uma ideia de si atomizada, um átomo. Então eles se batem por aí, se movem por aí, mas não são capazes de se permitir atravessar-se por outras antologias, por outras perspectivas, por outras poéticas. 

E faz muito tempo que nesse campo da educação, da pedagogia, dos grandes instrutores do tema, eles nos lembram que comunidades educadoras ou comunidades se autorreferindo para a educação incluem outros seres que não são os humanos. Quer dizer, ela não acontece dentro de uma sala e não acontece entre quatro paredes, acontece numa experiência ampla de exercício de ser, de liberdade. Ela tem de ser livre; se não for um exercício de liberdade ela é domesticação, ela é formatação.

Já ouvi alguém fazendo uma crítica: ‘por que dizem — Fulano formou-se, alguém formou-se no ensino fundamental, alguém formou-se na faculdade, agora tem formação superior?’ Na verdade, o etimológico é: ele está formatado, você formata um chip, você formata um arquivo de imagens, um arquivo de som. Mas você não formata seres humanos. Quando você subordina a experiência do conhecimento a um formato você já matou a experiência no caminho. A gente até podia pensar um poema: quando for formar, evite formatar, não mate.

Para alguns, formar para a liberdade e os sentidos é ‘perigoso’.

Educação no século 21 perdeu totalmente o vínculo com a ideia romântica dos séculos 18 e 19 de que nós podíamos nos constituir numa unanimidade ampla em que todo mundo lê e escreve. Em alguns países, em algumas culturas, virou um projeto nacional.

No caso do Brasil, desde a década de 50, 60, há um projeto nacional que é o letramento amplo, é alfabetizar todo mundo. Quer dizer, o discurso da esquerda brasileira é que todo mundo tem de ser alfabetizado, letrado, porque esse letramento vai tornar a pessoa um cidadão. Mas sabemos que, no século 21, cidadão é a coisa mais ínvia socialmente. Ninguém quer um cidadão. Pepe Mujica diz que esse mundo não quer formar cidadão. Quer formar cliente, quer ter cliente, quer ter consumidor. Ele quer se constituir de consumidores, clientes consumidores. Se você insistir numa atitude cidadã passa a ser discriminado, desprezado. Se você passar na porta de um shopping de uma loja com o signo cidadão, você não interessa, se passar na frente de uma loja com a cara de consumidor, vai ser abraçado imensamente e levado para dentro da loja para escolher qual a dívida que quer contrair. 

A gente vive no mundo do século 21 totalmente plasmado pela ideia da mercadoria; o Davi Kopenawa Yanomami consegue identificar o que chama de civilização da mercadoria, que são os brancos em geral. Existe uma crítica de um sábio da floresta que diz que essa civilização deu errado. Como que a gente vai considerar que a prática educativa que forma essas pessoas é boa? Se ela é boa, por que está formando gente tão ruim? Por que a qualidade de gente que essa educação forma chega a ser tão péssima? É porque essa educação não existe, mas tem muitas instituições e pessoas que preferem manter a mística da educação, porque ela é também um poder. Quem domina esse aparato, quem controla a máquina da educação, tem o poder político e econômico e tem gente que diz que isso é uma falcatrua. 

Ailton Krenak

“Lá é uma Academia Brasileira de Letras, mas a língua é portuguesa. Aqui não é Portugal, aqui é o Brasil. Vamos levar as línguas nativas para dentro”
Foto: Feira do Livro de Joinville


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Diante do antropoceno que nos trouxe à crise climática, guerras e desconexões com a natureza, qual a importância da florestania e como os educadores podem abraçá-la, pensando que eles é que dialogam com os adultos do futuro? 

Se pensarmos que podemos transformar o mundo, ao invés de habitarmos a mesma racionalidade educadora, a gente deveria começar a buscar saberes em outros corpos, no corpo da terra. A Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília, há quatro anos, puxou o lema Território: nosso corpo, nosso espírito. Se o nosso corpo é nosso território, então a língua do território, a linguagem do território, a fala do território, deveria nos guiar para uma transformação.

Quando falo de instituir essa experiência da florestania, estou opondo isso à banalização da cidadania pelo mercado. Se o mercado banalizou a experiência da cidadania, nós estamos com gesto, com ação ativa e esperançosa de criar a possibilidade da florestania, em que o humano sai um pouquinho de cena e deixa outros mestres falarem. Que a gente aprenda a ouvir a montanha, o rio. Os rios estão secando, será que eles não estão dizendo nada pra gente? Eles estão saindo de cena, será que não estão dizendo nada pra gente? As abelhas, a floresta, a lista de espécies em extinção não dizem nada para esse humano que deu metástase? 

Florestania seria o devir-floresta desse lugar-cidade onde as pessoas se cansaram de correr atrás desse status de cidadania, onde sempre foram repelidas. Bilhões de pessoas nunca vão alcançar esse lugar cidadão, então, ele é uma mentira. A gente deveria questionar isso com honestidade e parar de papo-furado com essa história de educação cidadã, porque ela é para meia dúzia, ela não é para todo mundo.

No lançamento da exposição, Tika Matxuru Yawanawa relatou que ficou perturbado com o modo de vida da cidade, a adrenalina de São Paulo. Na floresta ele vê os caminhos, vê os rios. Tudo é mais claro. Na cidade, não. O que acha dessa percepção que dialoga com o seu livro Futuro ancestral?  

É tão maravilhoso o que o Tika fala porque ao mesmo tempo ele é um enunciado sobre possibilidades fora desse contexto urbano que seria a florestania, mas é também uma denúncia sobre o fato de andar num lugar em que os rios estão tapados por lajes de cimento, modificados em esgoto, anulados como entidades. Os rios são entidades. Eles não são recursos para nos apropriarmos deles. A fala do Tika poderia ser desenvolvida por ele mesmo, inclusive, em muitos textos cheios de sabedoria de alguém que entende que quando ele vê o caminho, é visto pelo caminho. Quando ele vê o rio, é visto pelo rio. O rio está dando sentido para a existência daquele corpo que está andando ali, é um corpo território, é um corpo vivo.

Ailton Krenak

“Os rios são entidades. Eles não são recursos para nos apropriarmos deles”, alerta. Imagem tirada na Amazônia, entre 1993 e 1997, pelo fotojornalista japonês Hiromi Nagakura

Durante a pandemia, sobre o papel do professor, você disse em um evento online da revista Educação que nem Paulo Freire conseguiria pensar algo coerente nesse inferno na Torre de Babel. Por quê? 

Quis dar um exemplo de um grande educador, porque o momento que estamos vivendo traz problemas que não são do século 20, quando Paulo Freire pensou as possíveis pedagogias, inclusive, aquela ideia de que o oprimido pode sair desse lugar e se autoconstruir, se constituir como pessoa e criar espaços de autonomia, independência, liberdade. E que essa experiência é alimentada pela solidariedade. Ele reivindica um certo sentido de igualdade entre as pessoas. Solidariedade e igualdade não são coisas que estão disponíveis para as pessoas trocarem entre si.


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Nos anos 80, a União das Nações Indígenas e a Aliança dos Povos da Floresta, com as quais você atuou, obtiveram vitórias gigantescas. No Acre, indígenas deixaram de ser escravos da borracha e da madeira. Sem contar os direitos inseridos na Constituição de 88. Por que vitórias do passado parecem hoje mais difíceis de serem alcançadas?   

Esse movimento [indígena] é crescente, multifacetado, tem diferentes rostos. Mas foi percebido também como uma potência subversiva pelo sistema, que decidiu cooptá-lo, levar gente pra dentro. No Brasil, na década de 80, havia um movimento sindical potente, semelhante ao que aconteceu no Leste Europeu com o Solidariedade, do Lech Walesa, o qual tinha um movimento sindical capaz de mudar um país, como mudou a Polônia. No Brasil, ele, inclusive, produziu uma das pessoas mais interessantes da sociedade brasileira, o presidente Lula, que saiu por um sindicato. Mas, nos últimos 30 anos, de maneira visível, o Estado cooptou o mundo do trabalho. Todo mundo virou empregado do Estado e assim como todo mundo virou empregado do Estado, acho que agora tem um dispositivo do sistema, de política de governo, que é cooptar o movimento indígena, assim como cooptou o sindicalismo todo. Não sei como o Estado vai continuar existindo sem ter interlocução na sociedade, cooptando todo mundo. 

Recentemente, você se tornou o primeiro indígena a ganhar uma cadeira na ABL. Sua defesa de florestania, de cosmologias, tende a ganhar mais força na sociedade com essa abertura de espaço? O que muda?

Com certeza. Muda a composição toda: a maioria era homem; outro dia entraram algumas mulheres. Agora entrou um indígena. Vai mudar. Claro que há limitações, tem tanta instituição, a ABL é uma. Superestimá-la como um lugar que cria mudanças na sociedade é um exagero. Então vamos deixar as coisas com seus tamanhos. No contexto da sociedade brasileira tenho dúvidas. No contexto indígena faz muita diferença porque vou levar para dentro dela mais de 200 línguas indígenas. Lá é uma Academia Brasileira de Letras, mas a língua é portuguesa. Aqui não é Portugal, aqui é o Brasil. Vamos levar as línguas nativas para dentro. É isso que vou fazer.

Ailton Krenak

Ailton Krenak: a educação tem de ser livre, se não for um exercício de liberdade é domesticação, é formatação Foto: Jackson Romanelli

Por conta de uma atividade da revista Educação, recentemente sonhei com você duas vezes e entendi como um recado de que era o momento de nos falarmos.

Acho maravilhoso que eu tenha pessoas ao redor sempre me revelando alguma outra subjetividade. Por exemplo, alguém que diz: ‘sonhei com você semana passada, quando estava indo ao Acre; Ailton, por que a gente tem esse tipo de aviso, esse tipo de coisa visionária?’ Respondo: a nossa capacidade de nos relacionar com tudo o que está ao nosso redor, com rios, florestas, montanhas, deveria ser a experiência mais cultivada em qualquer lugar do mundo, por qualquer pessoa. Porque seria a maneira de estarmos o tempo todo nos atualizando sobre o mundo ao nosso redor e escapar da centralidade do sujeito, do ego, do humano. Porque quando fico encapsulado em mim mesmo não escuto as outras vozes, não escuto mais nada, o meu alcance no sentido do mundo sensível será sempre limitado. Assim, teremos um mundo de pessoas sozinhas andando por aí. A minha experiência de sujeito coletivo se confirma quando as pessoas sonham comigo. A gente poderia viver essa experiência de sonhar com mais frequên­cia e ter essa experiência presente na nossa vida como exercício de subje­tividade e de pôr poesia na vida. Precisamos pôr poesia na vida, senão a vida fica muito seca. 

Uma amiga acabou de ler o livro Original wisdom (sem tradução para o português), de Robert Wolff, que conta a importância dos sonhos para o povo Sng’oi, na Malásia. Ao acordar, se reuniam no centro da aldeia para compartilhar os sonhos e captarem os sinais.

Na exposição [no Instituto Tomie Ohtake] tem a imagem de um grupo de homens deitados em esteira no chão de uma aldeia Xavante. Eles estão fazendo um ritual que se chama warã, de contar os sonhos para todos. Isso não é uma experiência que existiu na Ásia, é uma prática que existe aqui e em vários territórios de povos indígenas. Os Xavante têm e acho que é uma tradição compartilhada por vários povos da tradição macro-jê. Os Krenak também são macro-jê e contam os sonhos de manhã. Nossa família continua com essa prática de contar o sonho de manhã para instruir o que vamos fazer depois.

Aquilo que é forte [alguns sonhos] não deveria nos assustar, deveria nos animar a uma experiência de despertar um poder interior, interno, para que a gente não ficasse tão vulnerável e adoecesse tão facilmente no mundo. Quando a gente fica com medo das coisas fortes, estamos acenando para a fraqueza.



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Autor

Laura Rachid


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