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João Jonas Veiga Sobral

É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional

Publicado em 19/12/2023

O poder humanizador da literatura 

Uma escola deveria se orgulhar de seus cursos de literatura e de repertório. Boa parte das angústias do viver resolvemos com apoio das fabulações

O repertório cultural, social, político e científico é fundamental na formação de uma criança e de um jovem. É com ele e nele que o estudante participa do mundo, reconhece suas belezas e agruras e o enfrenta com bagagem suficiente para evitar tropeços e assombros. Se fosse o estudante o cavaleiro destemido e andante, o repertório seria a armadura, o escudo, a lança e o escudeiro, e o mundo seria bem mais que gigantes a se disfarçarem de moinhos de vento.


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É na escola que um mosaico imenso de informações, de conhecimento e de relações organizadas e sistematizadas é apresentado ao estudante para que ele possa juntar ao vivido fora dela e elaborar sua compreensão sobre o ser e o estar no mundo. Não que em casa, nas redes sociais e nas relações que estabelece fora dos muros escolares o jovem não encontre a mesma tríade, mas talvez não se depare com uma organização intencional e ajustada que tenha por princípio básico lhe oferecer passaporte para o que chamamos de processo civilizatório.

Entre todos os repertórios propostos, destacam-se a leitura da palavra e do mundo e o encontro com a evolução humana embaixo do sol como os pilares que sustentarão a trajetória consistente do aprendiz para seu percurso na vida.

Nesse sentido, a literatura será pedra fundamental desses alicerces, porque nela encontram-se condensadas as experiências humanas. Nela, histórias, dramas, tramas, valores, dogmas, confrontos, guerras, amores, justiças, injustiças, artes, ciência, filosofia, política e a caminhada do homem são apresentados com verossimilhança, método e coerência.

O ensino da literatura (literária e não literária) propicia um vivenciar e uma experimentação de mundo raros e fascinantes. Porque traduz em suas fabulações e constatações as emoções, as visões de mundo que buscam de forma estruturada nos explicar, nos questionar, nos entender e nos problematizar. Desde que, é claro, o ensinamento e a instrução não se limitem à triste e à mesquinha identificação de características de obras, de personagens, de épocas e ao limitado e vergonhoso resumo do livro e do pensamento do autor.

O crítico, professor e sociólogo Antonio Candido considerava a literatura um direito humano e sugeria que ela seria “o sonho acordado das civilizações” que permitiria ao leitor e ao estudante viver dialeticamente os problemas da vida. “Toda obra literária”, escreve Candido, “é antes de mais nada uma espécie de objeto construído; e é grande o poder humanizador desta construção, enquanto construção.” E reforçava que a literatura é uma “necessidade universal imperiosa” e “fruí-la é um direito das pessoas de qualquer sociedade”: do indígena “que canta suas proezas de caça ou evoca dançando a lua cheia”, ao cosmopolitano “que procura captar com sábias redes os sentidos flutuantes de um poema hermético”.

E conclui: “Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável”.

Por isso, é fundamental que a escola se volte cada vez mais à formação humana integral e destine boa parte de seus cursos a inundar os jovens de narrativas que lhes permitam entrar em contato com um repertório cultural repleto de vidas e de histórias que a envolvam sentimentalmente. Essa expressão artística “desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”.

No entanto, hoje a escola atua como simulacro do mundo do trabalho com seus modismos e como uma preparação monótona e átona para os concursos de vestibulares e provas do Enem. Obviamente que é papel da escola garantir esses dois percursos com encorpadura, mas não de formação obtusa e obstinada.

Assusta um pouco essa história de que preparar para o século 21 é insistir fundamentalmente em cursos de empreendedorismo, em módulos de startups, em educação STEM, em aprendizagem maker, em iniciação científica, em tecnologia, em aulas específicas para ‘matar’ questões de vestibulares e, ora veja, aulas de socioemocional. Não que esse arsenal todo não seja importante e não deva ser oferecido com consistência. Pelo contrário, é um caminho sem volta e necessário para enfrentar o mundo contemporâneo, porém, destinar as aulas que exploram a ficção e as questões que mais interessam o homem a uma grade básica sem muita importância talvez não seja uma escolha razoável. 

Uma escola deveria se orgulhar de seus cursos de literatura e de repertório. Deveria destacar que aqui, nesta instituição, nos emocionamos com a vida humana, problematizamos as questões fundamentais que estão nas pulsões de cada ser que vive nessa comunidade educativa. E que boa parte das angústias do viver resolvemos com apoio das fabulações. E buscamos de alguma forma que na vida se adote algum critério estético como num romance ou pintura.

Não tenho dúvida de que pais e mães ficariam mais satisfeitos vendo seus rebentos comovidos, tocados, sensibilizados, sacudidos e por que não abalados com os encontros de vida que tiveram na escola quando abriram páginas de livros (físicos, preferencialmente). 

E mais ainda, os responsáveis veriam que todo aquele conjunto de possibilidades oferecidas pela escola (STEM, empreendedorismo, tecnologia, espaço maker e simulados) foram mobilizados pelos filhos, e por gente que consumida, inquieta, influenciada, sensibilizada, encorajada, alegre e preocupada tende a compreender e interagir no mundo em busca de um sítio melhor para viver e conviver.



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