NOTÍCIA
Há uma luz no fim do túnel, se soubermos educar as novas gerações para os desafios do que virá
Psicólogo, escritor, conferencista, o consultor José Ernesto Bologna viveu intensamente o tempo da pandemia e do isolamento que dele decorreu. Continuou trabalhando mais de 10 horas por dia, via plataformas de comunicação, e viveu toda a angústia gerada em seus clientes do mundo corporativo e da educação.
Para José Ernesto Bologna, também professor da Fundação Dom Cabral, o mundo padece da falta de delicadeza e excesso de pragmatismo reducionista e empobrecedor da sensibilidade social e da convivência humana. Na pandemia, não foram apenas os negócios que sofreram, ao seu ver. “Estamos esquecendo de aspectos essenciais que fazem algo melhor da natureza humana”, acredita. Mas, segundo diz, há uma luz no fim do túnel, se soubermos educar as novas gerações para os desafios do que virá. Em um contexto em que aumenta a procura e o interesse dos jovens pelas carreiras ligadas à psicologia, José Ernesto Bologna recomenda que todos “ensinemos a criar, a cooperar e a agradecer a nossa humanidade” e alerta para os riscos das redes sociais para as relações humanas, nesta entrevista, concedida também a distância.
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Infelizmente, acho que o mal-estar da sociedade cresceu, não só pela escalada da violência nas relações humanas, mas pela falta de delicadeza. Não se trata de um jogo de palavras. A pressa, derivada das ilusões de bem-viver geradas pela velocidade, faz com que passemos por cima de delicadezas elementares, construtoras de um ambiente social minimamente cordial e afetivo. O pragmatismo, cuja melhor vertente é realizar finalidades sem degradar os meios, e, pelo contrário, realizar bons fins por bons meios, deteriorou-se num tipo de pragmatismo de eficácia, reducionista e empobrecedor das sensibilidades sociais, quase sempre impessoal e frio.
Já nem notamos mais, mas essas formas telegráficas de comunicação, todas focadas nos fazeres, quase nada no pensar e no sentir, acabam afetando aspectos essenciais do ser. A crise real é social e psicológica, chega a atingir a ética, e desemboca num quadro de autocentramento, pouca gratidão, grande necessidade de dinheiro – a monetização das relações é um fato – e, portanto, de solidão. De outro lado, curiosa e paradoxalmente, nunca estivemos tão bem no que se refere aos poderes derivados das ciências e da tecnologia, da disponibilidade do conhecimento, inclusive filosófico e estético. Mas, na média, não usufruímos. Do ponto de vista prático, habitamos o melhor de todos os mundos que já existiram. Do ponto de vista cultural também, nunca houve tanta disponibilidade de conhecimento. Esse bom contexto, porém, evidenciou o pior: os chamados “sentimentos morais” passaram a ser muito mais falados do que sentidos e executados.
No entanto, sou otimista. Não devemos perder os poderes que conquistamos, mas avançar na universalização dos benefícios que permitem. Seja pela presença, pela ausência, ou pela referência, o assunto é o amor. A sua expressão é a delicadeza, a beleza e a gratidão.
De fato, somos apenas miseravelmente humanos. Ao mesmo tempo, no entanto, somos maravilhosamente angelicais. Revendo a história da filosofia moral, ou seja, sobre a melhor vida a se viver, algumas possibilidades sintetizam as suas variantes: (i) o mundo é cosmicamente ordenado, mas os humanos não têm um lugar no mundo, vagam suas vidas como almas penadas em busca de finalidades difusas e confusas; (ii) o mundo é organizado, os humanos vagam, mas há o bom lugar de cada um, basta encontrá-lo; (iii) não há um lugar, mas cada um pode construí-lo para si; (iv) a suposta organização do mundo não passa de uma ilusão projetiva e redutiva, o caos impera, e portanto a capacidade de conviver com a inevitável insegurança é uma sabedoria a ser cultivada.
Da minha parte, penso e recomendo que vejamos o mundo e a vida como um caos, portanto imprevisível, contendo uma frágil parte que percebemos organizada, à qual erroneamente nos agarramos como náufragos. Podemos, e devemos, construir nossos “lugares” e habitá-los, pelo curto tempo permitido. Ou seja, o máximo possível é saber se entregar ao acaso inevitável, e viver a aventura de existir com a coragem que demanda. Essa coragem é fundada na boa-fé, grande mãe da confiança.
Estamos esquecendo de aspectos essenciais que fazem o melhor da natureza humana. Perguntamos o tempo todo “o que nos faz humanos?” e já elegemos diversos candidatos: o andar ereto que liberou as mãos; o polegar opositor; a linguagem; a autoconsciência; a razão; o riso e suas variantes; o choro e suas variantes; a integração desses fatores em metodologias capazes de acumular conhecimento… No entanto, um fator realmente diferencial é a solidariedade empática, que vem sendo esquecida. O embate íntimo é sempre o mesmo, se dá entre o anjo e o bicho, e é estrutural da condição humana. Assim, a aptidão que pode nos salvar não é a razão, nem o contrato. É a beleza: a beleza, em geral, e a beleza dos sentimentos morais, em particular. Mas nós a temos cultivado pouco.
Reduzimos as nossas vidas a um pragmatismo frio, feio, pobre, criado para a vigilância, a censura, e a opressão. A juventude já não tolera o nível de policiamento que o trabalho instituído impõe, sonha empreender para ser mais livre e dona de si, e muda de emprego em intervalos cada vez menores. Os três maiores luxos contemporâneos são o tempo, o espaço e o silêncio, essas três raridades num mundo que a todos atropela, apertado e ruidoso.
Independentemente dos ganhos que trazem, pois existem, ferramentas como as redes sociais podem impactar a cultura de relações interpessoais. Observando-se mais fundo, não se sabe quem é quem, porque todos se parecem. Tudo fica breve, e essa brevidade alivia, mas torna tudo superficial. Nada errado enquanto entretenimento. Perigoso quando se desloca para o centro, e substitui as interações de outra natureza: aquelas que nos fazem humanos. É preciso compreender que a cultura social – essa do ar, da rua – é um mar no qual nadamos. Se suas águas são doentes, adoecemos junto todo dia, e pouco adianta tentar nos curar à noite, porque no dia seguinte nadaremos de novo. As psicoterapias podem muito, mas não chegam a nos livrar da cotidiana contaminação. É necessário proteger-se, fagocitar os invasores. Trata-se de um trabalho cotidiano, cansativo.
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De tudo isso e algo mais. Fundados em Nietzsche, já se alertou que se tentássemos substituir deus pela ciência, fazendo da ciência o novo deus, cairíamos do cavalo. Esse coronavírus nos derrubou. Escancarou as falhas dos nossos sistemas de controle e de estatísticas, da distância entre atos e propósitos, e mesmo da confiabilidade de fontes de saber científico, diplomático, jornalístico e político. Ao mesmo tempo, configurou a moldura de uma espécie de redenção da tecnologia. A pandemia trouxe à tona uma hipótese de mundo que, se já estava em cogitação, tornou-se ação. Sou otimista quanto aos aprendizados que extrairemos, em especial na educação. O maior deles se refere ao uso dos espaços escolares presenciais.
Passamos séculos levando as crianças e os jovens às escolas pretendendo ensinar conteúdos e sociabilizá-los. No entanto, de fato, os mantivemos individualmente isolados mesmo nos espaços comuns: todos na mesma sala, e ninguém se relacionando com ninguém. As avaliações fazem com que se tornem competidores entre si. Agora, sabemos que é possível levar o mesmo conteúdo, com qualidade, por via virtual, e utilizar o espaço social da escola para as interações de fato criativas e cooperativas. Isso permitirá que as escolas finalmente cenografem, estimulem e realizem interações humanas.
Não existe um Universo, muito menos cosmicamente organizado. Existe um “pluriverso”, caótico em essência, com pequeníssimas cadeias causais das quais tiramos a ilusão de regularidade, de similaridade, de previsibilidade e de controle. Essas ilusões roubam da vida a sua mais profunda essência: a misteriosa aventura de viver. Ao invés de heróis valentes, capazes de sobreviver às incertezas, a ilusão de algum controle nos faz bebês chorões, carentes de uma segurança que inexiste. Reclamamos da viagem interrompida, mas não agradecemos as viagens terminadas. Imaginamos possuir um controle, e perdemos a celebração dos acasos favoráveis. Se eu tivesse uma palavra, eu diria gratidão. Gratidão em reconhecimento aos que nos precederam, e deixaram o que nos deixaram, na mais caótica e improvável sequência de façanhas da qual espécie alguma foi capaz.
Com esses olhos assim educados – acho que eles faltam nas escolas, nas famílias, nas empresas — eu olharia para o futuro e sentiria algo importante e curativo: orgulho construtivo, e alegria criativa, por ter nascido humano, herdando assim a mais incrível condição surgida do caos.
*Esta entrevista foi publicada na edição 270, setembro de 2020, da revista Educação.