NOTÍCIA

Edição 283

Autor

Luciana Alvarez

Publicado em 16/03/2022

Na época dos algoritmos, escola só faz sentido com vínculo e paixão, diz Muniz Sodré

“Estamos numa crise de produção de ideias”, resume sociólogo referência em comunicação contemporânea que fala também da falta de empatia e solidariedade - além de defi nições do que é educação

Aos 80 anos de idade e 55 de carreira como docente, Muniz Sodré coleciona títulos e sucessos. É jornalista, sociólogo, tradutor, pesquisador, palestrante, autor de mais de 40 livros, membro da Academia Baiana de Letras. A Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da qual é professor emérito, em sua homenagem instituiu que 2022 é o Ano Muniz Sodré.

Bem-humorado e gentil, embora diga estar “mais cansado” que antes, continua lendo, produzindo e, sobretudo, pensando. Para ele, a sociedade vive uma crise de ideias. Crítico feroz das redes sociais, do capitalismo financeiro e da cultura algorítmica, defende que a escola só faz sentido como um lugar de vínculo e paixão. Ainda que rejeite a “lógica da esperança”, vê com otimismo algumas transformações sociais que vêm acontecendo lentamente, como a maior visibilidade social e a ascensão de uma intelectualidade negra e indígena.


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Cada vez menos jovens querem ser professores. O senhor tem uma vida dedicada ao magistério. Ainda hoje vale a pena ser professor?

Fui jornalista também, mas praticamente a minha vida inteira eu dei aulas. Eu me aposentei da UFRJ, mas eles me fizeram professor emérito – e eu continuo dando aulas, agora só na pós-graduação. Estou à frente da Cátedra Otávio Frias Filho, da Universidade de São Paulo. Aos 80 anos eu continuo a dar aulas e gosto muito.

Um dos medos de várias categorias é um dia ser substituído por um “robô”. Acha possível o professor ser substituído por algum tipo de máquina de ensinar?

Dentro de 10 a 20 anos, cerca de 90% das ocupações que temos hoje vão ser substituídas por robôs ou máquinas. Já está ocorrendo com força na medicina, na engenharia, na construção mecânica. Certamente, a instrução, em determinados assuntos e disciplinas, pode ser satisfatoriamente substituída por máquinas. Você pode aprender cálculos de prédios por máquinas, até mesmo aprender a fazer operações cirúrgicas online, aprendendo a controlar os próprios robôs. Mas a isso eu dou o nome de instrução. Educação não é simplesmente passar informação. O mais pobre dos computadores faz isso melhor que o melhor dos professores.

O que fica então para a educação?

Está reservado à educação um outro lugar, porque ela é outro tipo de processo. É a formação cívica, ao mesmo tempo psicológica e ética. Isso não pode ser substituído. A educação é um nome da transformação de um processo radical de iniciação. As sociedades ocidentais não iniciam – a iniciação só há em sociedades tradicionais e tribais. Iniciação é como uma conversão ou um batismo: a entrada numa câmara-portal e o renascimento do indivíduo para a vida social e coletiva. A iniciação é pessoal – ela precisa de gente – e é libidinal. Não consigo conceber uma educação que não tenha uma reinterpretação do laço libidinal entre pais e filhos, filhos e pais.

Há uma passagem de saber familiar inicial, que é importante, mas não é nunca o conteúdo o mais importante e sim o laço, que é ao mesmo tempo amoroso, em parte odiento. Esse laço visceral, que é uma vinculação, é retomado pela escola.

Portanto, o ensino fundamental é uma retomada vigorosa desse laço de pais e filhos. A relação com profes­sores é uma relação de paixão. Quando digo paixão, não quer dizer amorosa apenas, envolve também a briga, o ódio. São dois afetos fundamentais: o ódio e o amor. Com a criança crescendo, há a individualização dessa formação, onde pode entrar o escopo profissional. Mas não é o essencial da educação.

Mas para muitos, a educação parece ligada à preparação para um trabalho, não é?

Sei que as pessoas entram numa faculdade para ter uma profissão e arrumar emprego, mas não queria que o futuro da educação valesse só o caminho do emprego. Ela vai no sentido de preparar para que tenha opções de percurso. O próprio trabalho está sendo velozmente desvalorizado pelo advento das máquinas e robôs. Não acho que a educação esteja estruturalmente acoplada ao trabalho. Ela está acoplada à formação psicológica, ética, propriamente humana.

Muniz Sodré

Para Sodré, a educação não está estruturalmente acoplada ao trabalho e sim à formação psicológica, ética, propriamente humana
Foto: Luísa Zelmanowicz/Famecos PUCRS

No seu livro A sociedade incivil, o senhor cita Goethe, Balzac, Blade Runner, tem muitas citações de literatura…

Claro. Literatura para mim é mais importante às vezes do que a filosofia. Eu não faço distinção epistemológica entre determinado romancista e determinados teóricos. A teoria é uma forma de organização de ficção. O que eu efetivamente leio é literatura e filosofia.

Num mundo regido por algoritmos, vale a pena estudar as ciências humanas e sociais, ou deveríamos nos focar em matemática e outras ciências exatas?

As próximas gerações e já esta geração são gerações de base matemática, mesmo que não tenham formação. Somos regidos por números e fórmulas. Nossa realidade é forjada pela matemática. Mas precisamos mais do que nunca entender o solo social em que a matemática se dá. Então as ciências humanas e sociais têm que se distanciar da matemática para entender efetivamente o que está se passando. Estamos num momento de crise das ciências sociais porque o momento áureo foi um momento de produção de ideias no século 19, na passagem da filosofia para a sociologia, economia, antropologia. As ciências que se fragmentaram, mas o que elas efetivamente produzem são ideias. E nós estamos numa crise de produção de ideias.

As diferentes ciências ainda têm espaço?

Essa palavra ciência ilude muito. O que é fazer ciência? Ciência pode ser um discurso bem feito, bem organizado sobre a realidade – eu vejo as ciências humanas nesse sentido. A gente precisa delas mais do que nunca. O empenho histórico das ciências sociais é entender e produzir grandes ideias sobre as transformações do mundo. É preciso voltar a pensar.

O desafio que a comunicação traz é no sentido de não pensar apenas intelectualmente, mas também afetivamente. Há uma virada afetiva na relação do saber com o indivíduo e seu corpo, com o orgânico, com as interações que o saber promove. Isso se dá no campo das ciências sociais. Você não constrói robôs nem faz aviões voarem ou constrói edifícios com as ciências sociais e humanas, mas a tarefa delas não é essa.


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Há consequências quando a educação se foca muito nas exatas, para a prática profissional?

Uma educação voltada só para as ciências exatas produz monstros – e estamos vendo isso no Brasil. Na pandemia vimos que uma parte da classe médica beira a monstruosidade apesar da competência técnica.

Tem negacionistas, próximos a um comportamento fascista. A mesma coisa aos diplomas dados a certos engenheiros, mas que são ignorantes, apedeutas. A ignorância social dos técnicos brasileiros é estarrecedora. Não sabem nada do social e por isso cavaram um buraco para que o fascismo se instalasse. Foi assim que se elegeu Bolsonaro, que é um monstro. Agora a sociedade está aparentemente reagindo.

Política e educação estão muito ligadas?

O pensamento de direita que emergiu não foi do povo apenas; foi nas classes médias. Gente que estudou, se formou nos melhores colégios, nas melhores universidades, os melhores tecnicamente, mas que são impermeá­veis à empatia social e à solidariedade humana. Isso é uma falha educacional, uma tragédia educacional. Eu conheço pessoas de alto nível de formação que eu considero analfabetos em relação ao mundo e à sociedade. Nem são de direita necessariamente. Mas faltou o lado social – e isso é um fracasso das ciências sociais, que se fecharam muito em si, se departamentalizaram demais.

Muitas escolas hoje dizem que querem formar cidadãos críticos. Elas tentam e não conseguem ou ficam só no discurso?

Isso é marketing, o discurso dominante do comércio e da indústria. Como é que se elege hoje um presidente ou governador? Com partidos que não representam coisa nenhuma e marketing. Você tem em outros países partidos que representam uma parcela da população que é de direita, outros de esquerda, de centro. Os partidos brasileiros e da maioria dos países latino-americanos não representam coisa nenhuma. Eles se constituem em função do fundo partidário. São máquinas burocráticas que giram ao redor de si mesmas, dos seus interesses.

O discurso qual é? É o do marketing. Assim que se elege alguém. Os políticos sempre foram retóricos, tinha sua margem de engano, mas o marketing promete apenas a realidade do marketing, que nunca se cumpre. É discurso das escolas privadas quando se faz uma crítica à formação que oferecem. Mas eles não querem realmente isso. Ao contrário: a crítica continua assustando as elites, que continuam matando quem pensa demais.

Estigmas contra a população negra permanecem, mesmo com leis de cotas universitárias e para ensinar a cultura afro-brasileira nas escolas. Essas políticas não tiveram impacto na sociedade?

As políticas de afirmação racial do final do governo Fernando Henrique Cardoso e do governo Lula impacta­ram. Depois, é preciso que se diga, que em 2012 o Supremo Tribunal Federal aprovou a lei de cotas. O racismo no Brasil, há quem diga que seja estrutural, mas eu discordo da expressão estrutura: é um racismo institucional e sistemático. A pós-abolição no Brasil foi conduzida por uma burguesia branca, racista e com intuito de manter o negro em seu lugar. As políticas afirmativas decorreram de movimento de baixo para cima, uma luta que já durava 100 anos. O movimento negro é o movimento mais longevo na paisagem das lutas sociais brasileiras. Mas as cotas e políticas afirmativas permitiram que essa questão recalcada aflorasse. 

Como professor, sente uma mudança?

Sempre dei muita palestra em faculdades. Olho para o público e vejo o quanto a paisagem mudou de 15 anos para cá. De branco colonial virou colorizada. E tem uma intelectualidade aparecendo. Isso é posterior e consequência das políticas de afirmação. Elas não mudaram a paisagem global. A sociedade brasileira é muito racista e exterminadora de negros. Mas já não é mais da mesma forma e com a mesma intensidade, porque os grupos reagem. A educação contribuiu nisso. Não é revolucionário, porque não toma o poder, mas é mutacional, uma transformação que está havendo aos poucos. Isso é mais do que nunca necessário porque a educação e a cultura pública foram submergidas nessa tragédia que são as redes sociais.

Tragédia?

É uma tragédia. A televisão brasileira levou 50 anos para habituar o povo à banalidade, vulgaridade e gro­tesco. Isso é complementado hoje pelas redes sociais. Individualmente a internet é boa, claro. Do ponto de vista público e social, elas são uma tragédia.

Havia no início do advento da internet uma esperança de que a livre circulação de informação e opiniões melhoraria a democracia…

Eu não sigo muito a lógica da esperança. Esperar é colocar seus desejos num outro tempo ou na cabeça do outro. Sei que é uma nuance, que não existe na nossa língua o verbo esperançar, que seria dar à espera uma força motriz, transformadora. Mas acho que isso está em curso. Falei antes dos negros, mas há também os indígenas: você tem intelectuais indígenas hoje importantes no Brasil, coisa que antes não existia. Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Sonia Guajajara. O país é muito grande, temos muito mais. A movimentação civil está crescendo. Nesse sentido sou otimista.

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