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edição 278

Lilia Schwarcz destrincha o Brasil racista e desigual e alerta: “é necessário que não naturalizemos os golpes cotidianos”

Em entrevista, uma das principais intelectuais da atualidade fala também de vidas que até então estavam escondidas devido a interesses de uma sociedade colonizadora

lilia-schwarcz Lilia Schwarcz: sociedade civil precisa se manifestar sobre os golpes cotidianos na democracia brasileira (Foto: ©Renato_Parada)

Em tempos da sociedade da informação, com o achismo batendo de frente até mesmo com a ciência e com claros retrocessos em diversos campos brasileiros, Lilia Moritz Schwarcz se torna um farol de clareza e sensatez, resultado de muitas leituras, estudos, pesquisas e análises dos Brasis profundos. Lili Schwarcz, como é conhecida, tem uma trajetória fortemente acadêmica. É antropóloga, historiadora, professora da USP e de Princeton, EUA, coordenadora adjunta do Masp (Museu de Arte de São Paulo) e escritora premiada.

Estudiosa do racismo e das desigualdades, sabe que o país tem dificuldade em lidar com o passado, com sua própria memória. Leia, a seguir, entrevista exclusiva concedida em maio à Educação por meio de uma videoconferência em que participaram Edimilson Cardial e Laura Rachid, ambos jornalistas, e o professor de literatura, João Jonas Veiga Sobral.


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Em Retrato em branco e negro, você revela como a imprensa paulista no final do século 19 atuou “na construção e manipulação das representações sobre o negro cativo ou liberto, quando se intensificavam as rebeliões negras”. Em que medida, você observa a perpetuação desse olhar na sociedade?

A sociedade brasileira carrega um legado muito pesado. Somos o último país a acabar com a escravidão mercantil, recebemos praticamente a metade dos escravizados e escravizadas que desembarcaram às Américas. São 12 milhões de africanos e africanas que saíram do seu continente; desses, 10 milhões chegaram nas Américas e 4,8 milhões vieram para o Brasil. O Brasil teve escravizados e escravizadas em todo o seu território, de norte a sul, o que é uma especificidade brasileira. Se compararmos com os Estados Unidos, isso não é uma realidade norte-americana. De maneira que a escravidão virou uma linguagem da hierarquia e da diferença. Mas eu acho que não devemos praticar determinismo histórico. O que está acontecendo aqui é que a sociedade brasileira tem recriado, em largas bases, um racismo estrutural e um racismo institucional. Então, se o legado foi pesado, a nossa contemporaneidade vai recriando novas formas de discriminação e mantendo essa linguagem muito hierarquizada que é bastante brasileira.

O que é preciso ser feito de maneira consistente e sistemática para as estruturas se alterarem, já que a injustiça e a desigualdade persistem e até aumentam?

Concordo com a fala da grande ativista e teórica negra Angela Davis e da brasileira Djamila Ribeiro, quando elas chamam atenção de que no momento, no Brasil, não basta você dizer que não é racista, é preciso ser antirracista. É claro que, nessa luta, o protagonismo no que se refere à questão racial negra sempre foi das populações negras, mas populações brancas têm que entender, de uma vez por todas, como o racismo – eu sou estudiosa do racismo – foi um movimento construído pelas populações brancas. A escravidão foi um sistema idealizado pelas populações coloniais brancas e são as populações brancas que criam teorias do embranquecimento e tudo mais.

É preciso que a gente aprenda o que é a branquitude como espaço de poder, de acúmulo hierárquico. É preciso que brasileiros brancos, brancas e branques aprendam a dividir a hierarquia.

Mas acho que no que se refere ao Brasil de forma geral estamos vivendo um momento em que a sociedade civil precisa se manifestar, é hora de aparecer. Claro que estamos vivendo situação difícil por conta do isolamento, não podemos promover grandes aglomerações, mas é preciso que as pessoas se manifestem. Sou uma acadêmica e que se manifesta nas redes, então acho que é preciso praticar o que chamo de vigilância cidadã, que significa manter a nossa democracia, lutando por ela, cada um do seu lugar; acho que a sociedade brasileira está muito anestesiada neste momento, está muito calada, muito assustada. E eu entendo.

Vivemos um momento de luto, um luto invisível, numa sociedade que não se permite falar da morte, nem falar da doença, sequer falar do envelhecimento. É preciso que a gente dê uma injeção de perplexidade, então é necessário que não naturalizemos os golpes cotidianos que a democracia brasileira vai levando.

Na obra A bailarina da morte, você e Heloisa Starling analisam a gripe espanhola no Brasil. Nesse intervalo de 102 anos entre o início dessa gripe e o da covid-19 houve reações muito similares. Quais são elas?

Em 1918 houve muita negação, mas não negacionismo. Nós somos uma sociedade que não é preparada para a morte, para o envelhecimento e preparada para doença. Somos sociedade que expulsou a morte, a doença. Antes tinha grandes rituais, todo mundo participava da morte, se manifestava, e vivia as suas muitas mortes naquela morte. Isso não acontece mais, então essas são as sociedades da negação, a primeira reação é essa, ‘não, eu não vou ficar doente’. A segunda reação que vivemos agora em 2020 e 2021 e não vivemos em 1918 é uma política negacionista, quando um governo sistematicamente rompe com determinações da ciência e da Organização Mundial da Saúde. Então, nesse sentido, pioramos, porque naquele contexto não houve autoridade política que fosse contra as determinações das autoridades sanitárias.

Mais um elemento. As gripes não foram democráticas. Em 1918 a espanhola atacou fortemente as populações que tinham saído da escravidão, que moravam em locais com péssima infraestrutura urbana. Também atacou os imigrantes que viviam naqueles famosos casarões insalubres. Números devastadores em 1918. Em 2020 e 2021, o vírus da covid-19 tem endereço, tem gênero e tem cor. Quem está morrendo mais são as populações negras e as femininas.

Último exemplo, mais gritante, já em 1918 para combater a gripe espanhola, que era o nosso famoso H1N1, alguns fabricantes farmacêuticos espertos começaram a colocar propaganda do sal de quinino, produto utilizado para combater a malária que grassava fortemente no Brasil naquele contexto. O sal de quinino não era nada diferente do que a cloroquina, chamada na época de cloroquinina. Encontramos propaganda de farmácia em BH vendendo cloroquinina. Diferença em 18 e 20: em 1918, nenhum governador de estado aderiu à cloroquinina, ninguém, nem as autoridades sanitárias nem as autoridades políticas, e veja que não existia vacina. O que está acontecendo agora é que o presidente faz o papel de garoto-propaganda da cloroquina. Isso porque fez uma compra muito grande de cloroquina nos Estados Unidos na época de Donald Trump e porque o laboratório do exército produziu muita cloroquina e agora precisa escoar.

O senso comum diz ‘nós evoluímos’. Gente, nós não evoluímos e, comparando dados da pandemia 18 e 20 e 21, a realidade é muito obscurantista.


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Qual o prejuízo para a educação com a atual condução? Que tipo de sociedade se projeta?

O atual governo está tirando verbas para a educação. Uma pandemia não traz nada de bom e ela escancara a característica de determinado país. No caso do Brasil, a desigualdade social. O Brasil não é um país pobre, é um país de pobres e vai sair muito mais desigual depois da pandemia.

No ensino básico e também na universidade a relação que os professores estabelecem com seus alunos tem a ver com a sociabilidade no ambiente de ensino. Estamos perdendo, seja as crianças ficando em casa, tendo ensino a distância, seja ensino híbrido…mas a situação nas escolas públicas é muito pior. Vivemos num país em que quatro em 10 brasileiros não tem acesso à internet; no começo da pandemia teve a história do novo normal e eu já não gostava dessa ideia, porque a pergunta que devemos fazer é: novo normal para quem? Vivemos em um país em que 37% da população habita moradia de um cômodo onde vivem seis ou mais pessoas. Então essa realidade que chamamos de novo normal de pessoa em seu computador, escritório, é uma balela da classe média, da classe média alta.

Brasil racista

É uma das fundadoras da Companhia das Letras
Foto: ©Renato_Parada

No que se refere à educação, não só estamos vivendo momento da pandemia, como estamos vivendo um governo que desfaz a educação, que retira verba, não temos plano. Você já ouviu falar do plano nacional de educação do novo ministro? Não é um momento bom e não temos, repito, governo que acredita na importância da educação. Eu acredito que a educação é um dos grandes elementos para destravar o gatilho da desigualdade, não é o único, mas sem educação pública, de qualidade, não teremos um Brasil democrático e não teremos uma República também.

Sobre o autoritarismo brasileiro é uma obra em que você explora a ideia de que o patriarcalismo se perpetua com famílias tradicionais na política, no direito, na medicina e mandonismo nas relações sociais. Há como reverter esse quadro?

Claro que há, tudo que é histórico tem reversão. Por isso que não acredito em determinismo histórico. Nesse livro chamo a atenção sobre como nosso presente está cheio de passados. História também é reiteração, ou seja, há estruturas que se repetem teimosamente e quanto mais nós formos capazes de estudá-las, melhor nós vamos poder entendê-las. Estamos falando do patriarcalismo, mas poderíamos falar do machismo também. CPI da Covid pode ser olhada como CPI do Machismo, em que não há só uma desproporção representacional entre políticos, senadoras e senadores como sistematicamente os senadores têm cortado a palavra das senadoras, e com caricaturas do tipo, ‘ah, você está muito nervosa’, ou seja, são formas de mostrar como essas posturas estão presentes no nosso dia a dia. Temos que denunciar, sempre. Como chamar atenção da permanência do coronelismo? Denunciando. Bom exemplo de familismo é a política do presidente com os seus três filhos, que atuam, não como vereador no Rio, deputado federal e senador, mas como espécies de príncipes consortes, diplomatas. Ou seja, estão em áreas e opinam sobre áreas que não lhes é dado opinar. São formas de familismo, de patriarcalismo que ressoam a um passado, mas são reescritas no formato do presente.

O negacionismo seria fruto de um certo muro universitário? A academia está sabendo dialogar com a população, inclusive por meio da internet?

Culpar a universidade pelo negacionismo é uma inversão de valores, porque o negacionismo é fruto da má qualidade de informação que o governo Jair Bolsonaro pratica. É um governo de perfil populista, que tem um claro descaso com a boa informação produzida pela academia. Descaso também em todos os setores da ciência, então a questão é um pouco invertida. Se me perguntar se a academia tem conseguido construir essas pontes, eu diria que ela vai tentando, mas que não tem. A questão da internet é historicamente nova. Acho que todos nós estamos nos reinventando nesse sentido, ou seja, todos estão aprendendo o que é o poder da internet.

Por que há uma parcela da população que pede a volta à ditadura? Como desmontar essa narrativa de que antes era melhor?

Com dados. A informação, neste momento que vivemos, é uma forma de resistência muito importante.

É preciso discutir com documentos, com fontes, com números, com dados. A sociedade brasileira está muito polarizada, é preciso que a gente amplie as possibilidades de escuta. Essa narrativa falaciosa sobre a ditadura militar tem a ver com um projeto militar desse governo, projeto ditatorial. Democracia é um processo igualitário, um processo horizontal.

Outro problema, o Brasil é um país que tem questões com política de reparação – criamos uma Comissão da Verdade, mas não demos a ela o poder de julgamento, ela só poderia levantar casos. O que aconteceu: como concedemos anistia a militares, esses militares que foram assassinos e torturadores não puderam ser julgados. Mesma coisa com a escravidão, temos remorso grande. Como diria Carlos Drummond de Andrade, toda história é remorso. E temos remorso grande da escravidão. Nunca fizemos política de reparação, nunca. Os únicos que pagaram reparação foram os escravizados e escravizadas, pagando pela própria alforria. Então os brasileiros têm problema em pensar políticas de reparação e, ao termos concedido anistia aos militares, nós pavimentamos esse lugar, esse espaço em que, de repente, uma ditadura vira modelo de convivência, sociabilidade. Não é.

Quais personagens da história não são lembrados e que você resgata em seu novo livro?

São muitos. Lancei agora o livro e projeto Enciclopédia Negra, com o artista Jaime Laureano e o historiador Flávio Gomes, conhecido por trabalhar com história dos quilombos e das insurreições. Essa enciclopédia é feita com 110 imagens. Chamamos 36 artistas negros e negras pra ilustrar, fazer retratos de personalidades negras que nunca ganharam retrato na parede.

Não há setor mais colonial, mais branco e masculino que a história da arte e a história. Sistematicamente nós apagamos negros, negras, mulheres, LGBTQ. Nessa enciclopédia trouxemos 550 vidas, boa parte desconhecida. Por exemplo, tem o Daniel que fez a insurreição de Viana perto de São Luís do Maranhão. Daniel é um personagem afro-atlântico, sabia ler e escrever, tinha notícias das rebeliões no Caribe, rebelião francesa, da revolta nos Estados Unidos e ele deixou uma carta dizendo que eles queriam a liberdade dos escravos como estava ocorrendo no resto das Américas. Daniel foi condenado à prisão perpétua e desapareceu. Lembro também da história da Caetana, no interior de São Paulo, uma escravizada que foi forçada pelo seu senhor a casar com um escravizado muito mais velho do que ela, simplesmente porque sua senhora tinha ciúmes dela. A Caetana entrou na justiça pra anular seu casamento e conseguiu. Lembro de Luiza Pinto, uma negra no século XVII, em Minas Gerais, que foi presa pelo tribunal da Inquisição por bruxaria.

São inúmeros casos. Teodora, escravizada e levada ao interior de São Paulo, foi separada de seu marido e filhos e mais velha ditou sete cartas para outro escravizado chamado Claro, que sabia mais ou menos ler e escrever. Temos acesso a essas cartas. Claro foi preso por meliante, e de posse dele estavam as sete cartas ditadas. Teodora dizia a seu marido e filhos que precisavam se reencontrar porque ela não poderia morrer no Brasil, teria que voltar à África por causa da calunga grande e se eles não voltassem juntos a sua alma teria que circular e não poderia encontrar pouso em seu continente africano.

São muitos casos. Estou totalmente imersa neles até porque em 2022 teremos política de avaliação de cotas e afirmativas, teremos centenário da morte de Lima Barreto, o centenário da Semana da Arte de 22 e vamos ter que perguntar se a semana foi em São Paulo ou de São Paulo – na minha avaliação foi em São Paulo -, e teremos o bicentenário da Independência e acho que todos nós precisamos perguntar que tipo de independência nós vamos querer comemorar em 2022. Uma independência tão colonial, tão europeia e tão masculina ou finalmente nós vamos falar de um Brasil mais plural, mais múltiplo e mais generoso? Isso sem falar que temos eleições e Copa do Mundo.

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Autor

Edimilson Cardial, João Jonas e Laura Rachid


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