NOTÍCIA
Este artigo é sobre a dor, da urgência, da realidade brutal enfrentada por quem educa neste país
Por Irene Reis* | Na língua portuguesa, uma vírgula pode mudar o sentido de toda uma frase. Quando escrevemos “professor, cuidado!”, estamos diante de uma construção com vocativo. O termo ‘professor’ está sendo usado para chamar a atenção de alguém. É como dizer: “professor, preste atenção! Professor, proteja-se!”. É um alerta direto, uma tentativa de impedir um mal iminente.
Já quando escrevemos “professor cuidado”, sem vírgula, temos uma estrutura completamente diferente. Aqui, ‘cuidado’ funciona como um adjetivo atribuído ao professor. Podemos entender como: o professor foi cuidado ou o professor está protegido.
Trata-se de uma descrição, um estado ideal — um sonho, quase uma utopia, no cenário da educação atual. Mas este texto não é sobre sintaxe. Não é sobre as regras da gramática normativa. É sobre outra linguagem: a da dor, da urgência, da realidade brutal enfrentada por quem educa neste país.
Não é a vírgula que nos separa. É o abismo entre o que deveria ser e o que é. A verdade é que hoje, no Brasil, temos muito mais “professor, cuidado!” do que “professor cuidado”.
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O que impera são os alertas: cuidado com a sobrecarga, cuidado com o adoecimento, cuidado com o assédio, cuidado com a violência, cuidado com a solidão. Estamos vivendo uma crise que já foi silenciosa e agora chora e grita, agonizante e devastadoramente. Um apagão docente que se agrava a cada ano.
Os números falam por si: aumentam os pedidos de exoneração, as licenças por transtornos emocionais, os afastamentos por estresse, ansiedade, depressão e síndrome de burnout. A profissão que deveria ser sinônimo de transformação, reinvenção, tem sido um caminho de adoecimento.
Em 30 de maio de 2025, a professora Silvaneide Monteiro Andrade, de apenas 56 anos, morreu durante uma reunião pedagógica no Colégio Estadual Cívico-Militar Jayme Canet, em Curitiba. Segundo relatos, ela foi pressionada por metas de desempenho em plataformas digitais momentos antes de sofrer um mal súbito, possivelmente um infarto.
A morte de Silvaneide não é uma tragédia isolada. É um símbolo. Um grito. Um espelho de tudo que estamos denunciando há tanto tempo: a escola adoece. A escola mata.
Ela representa milhares de docentes que, dia após dia, entram em salas de aula superlotadas, sem apoio, sem escuta, sem os recursos prometidos pela política de ‘inclusão’ que, na prática, é apenas mais uma forma de sobrecarga e negligência institucional.
Famílias que desrespeitam. Gestores que pressionam. Alunos que reproduzem violências sociais. E entre tudo isso, o professor — sem voz, sem proteção, muitas vezes sem alternativa — recorre a remédios para dormir, para acordar, para suportar.
Trabalha dopado e não por uso de drogas recreativas e, sim, por uso de remédios que enriquecem a indústria farmacêutica. Ensina enquanto adoece. Espelha seu adoecimento a cérebros ainda em formação que também vão aprendendo sobre o desamparo aprendido e entram para as estatísticas.
Isso não é um ‘caso pontual’. É um modelo falido de gestão educacional, onde a performance vale mais do que a pessoa.
O alerta “professor, cuidado!” já não é suficiente. Porque não há cuidado possível em um sistema que adoece, estruturalmente.
“Professor cuidado”: trata-se de uma descrição, um estado ideal — um sonho, quase uma utopia (Foto: Shutterstock)
Dizer “professor cuidado” deveria ser mais do que uma frase gramaticalmente aceitável. Deveria ser uma realidade institucionalizada: professores com apoio psicológico, com valorização profissional, com condições dignas de ensinar e viver.
Professores que contassem com o cumprimento de leis a respeito de seus reajustes salariais, planos de carreira, benefícios. Professores apoiados pela família e não perseguidos pelas mesmas. Dizer “professor cuidado” deveria significar contar com o básico.
Deveria significar:
Carreiras com perspectiva;
Carga horária compatível;
Saúde mental preservada;
Respeito da comunidade;
Autonomia pedagógica;
Apoio e parceria das famílias;
Formação contínua e condizente com as demandas de cada contexto;
Escuta permanente.
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Mas isso ainda é raro. E, por isso, a vírgula — tão pequena — se torna um divisor simbólico entre o que temos e o que merecemos. Conclusão: o cuidado não pode ser só alerta. Tem que virar ação. Este não é um texto sobre pontuação. É um chamado urgente à consciência: a educação está desmoronando junto com seus educadores.
A morte de Silvaneide não pode passar como mais um dado nas estatísticas da indiferença. Que ela nos desperte. Que ela nos mova. Que ela nos empurre para a mudança que se faz urgente.
“Professor, cuidado!” — a sua vida importa!
“Professor cuidado” — é o que todas as crianças e juventudes merecem ter como parceria de aprendizagens, é por onde começa a tal da educação de qualidade, para além de um número no quadro dos ODS.
*Irene Reis é professora, especialista em neurociência e comportamento, CEO na Reinventando a Educação e coordenadora da Academia Líderes de Educação
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