NOTÍCIA

Entrevistas

Autor

Laura Rachid

Publicado em 13/09/2024

Vera Iaconelli: modelo de sociedade atual nos adoece

Psicanalista convida a propor maneiras saudáveis de viver em sociedade, cuja criança não seja tratada como estorvo e que a mãe não seja sobrecarregada. Mais que entender que o sistema neoliberal gera ansiedade, a questão está em como inibir esse feito

Quando critica o modelo que rege a sociedade atual — egoísta, que só pensa em lucrar, sem se importar com a saúde mental das pessoas —, o que Vera Iaconelli busca é mostrar à população que o neoliberalismo está fazendo as pessoas adoecerem e que as estruturas precisam ser questionadas para um outro modelo se firmar. Para ela, devemos nos inspirar em modos de vida coletivo, característicos dos povos originários.

Doutora em psicologia e psicanalista, Vera é conhecida por esclarecer o quanto a maternidade, devido a questões sociais históricas, sobrecarrega as mães. “É sempre perigoso pensarmos que o problema das crianças, do cuidado com as crianças, se resume à divisão de tarefas entre homens e mulheres no âmbito privado. Isso é um pensamento neoliberal que desincumbe a sociedade como um todo, as empresas e o Estado, da sua função de equalizar essas relações de cuidado”, enfatiza nesta entrevista.

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A psicanalista possui mais de 200 mil seguidores no Instagram. Entre seus livros, o título do mais recente, Felicidade ordinária (ed. Zahar), já indica que o que está imposto enquanto regra social da contemporaneidade não é saudável. Em agosto, lançou o podcast O Estranho Familiar, o qual em apenas uma semana do primeiro episódio ficou em segundo lugar entre os podcasts mais ouvidos no Spotify Brasil.

Vera Iaconelli estará no evento da revista Educação, Grande Encontro da Educação, que acontece na cidade de SP, em 25 e 26 de setembro. Confira, a seguir, a entrevista exclusiva, na qual também falamos sobre o aumento no diagnóstico do autismo e restrição de celular na escola.

O sofrimento, a depressão e a ansiedade da época de Freud [1856-1939, pai da psicanálise] são os mesmos de hoje? Eles são moldados? Se manifestam também na expressão corporal?

O que Freud vai formular é que cada época tem uma forma de expressão do mal-estar. Ou seja, para estarmos em sociedade, há sempre algo de que temos de abrir mão, deixar de fora. Isso causa o mal-estar. Mas cada época tem um mal-estar específico. Por exemplo, se na época de Freud, em 1900, o mal-estar mais enigmático eram as neuroses, os quadros histéricos, o que temos hoje, na nossa época, são as depressões, as ansiedades.

Então estamos falando de uma época que tem uma forma de expressão do seu mal-estar muito própria, porque a depressão, por exemplo, numa época em que se exige acima de tudo celeridade, animação, praticamente uma sociedade que prega uma mania: você tem de estar sempre disposto, sempre alerta, produzindo o máximo, performando; como é que a gente vai responder a isso? Com depressão. Porque isso é diretamente relacionado com o tipo de mal-estar, tipo de demanda que a gente tem na nossa época.

Então sim, ao longo dos tempos históricos, o sofrimento vai se transformando, vai se manifestando de formas diferentes, inclusive no corpo, porque todo o sofrimento tem impacto no corpo. Mas tem algo que é inescapável, porque não quer dizer que chegaremos no momento ao qual uma sociedade se organiza de tal forma que não haja mal-estar. Sempre existirá, mas temos de mapear e enfrentar o mal-estar da nossa época.

Você alerta que a criança tem escutado que sua família —principalmente a mãe, sobrecarregada — está exausta de cuidar dela. Se o modelo dos povos tradicionais é do cuidado coletivo, qual a saída para essa sociedade capitalista que só sabe acelerar?

Estamos passando para as crianças a ideia de que elas são um estorvo, que a infância é um horror e que é bom que passe logo essa fase porque ninguém aguenta cuidar delas. Estamos praticamente culpabilizando as crianças pelo fato de serem crianças, mas, na verdade, o que está em jogo é um modelo capitalista de sociedade no qual ninguém cuida de ninguém.

O que temos é um modelo de exploração do outro, para se proteger do outro e tentar explorar o outro. Mas não de cuidado. As pessoas que acabam tendo essa função de cuidadoras, em geral as mulheres, estão ultrassobrecarregadas, e a criança tem essa impressão de que ela é esse sofrimento na vida da mãe e por vezes do pai.

Então tem algo que teremos de modificar estruturalmente para mudar essa lógica e o modelo não está na frente, está atrás, o modelo está em povos tradicionais, em sociedades estáveis que pensam a colaboração como grande valor. Não vamos voltar para os povos originários brasileiros de 500 anos atrás, não é isso, mas a gente tem de começar a pensar, como sociedade, em formas cooperativas de funcionar. E temos alguns modelos de sociedades mais igualitárias nos quais podemos nos espelhar.

Para além de dividir as tarefas com o pai, visando amenizar esse sufocamento, principalmente da mãe, qual o papel dos governos, suas políticas públicas e das empresas?

É sempre perigoso pensarmos que o problema das crianças, do cuidado com as crianças, se resume à divisão de tarefas entre homens e mulheres no âmbito privado. Isso é um pensamento neoliberal que desincumbe a sociedade como um todo, as empresas e o Estado, da sua função de equalizar essas relações de cuidado.

Então o papel é fundamental, porque no Estado mínimo há menos recursos para oferecer à população, menos escolas públicas, menos hospitais, menos transporte e a pior qualidade desses serviços, que são ou muito caros ou privatizados.

Nisso, como é que ficam esses cuidadores e cuidadoras quando eles têm de lutar por uma vida que não tem garantia de nada e ainda cuidar em tempo integral dos filhos? Onde estão as creches? Onde estão os hospitais? E o transporte público? E a moradia que permita que as próximas gerações tenham condições de serem cuidadas? Quando todo mundo está tentando sobreviver, há uma pessoa que, além de tudo, depende de você. Do que hoje os cuidadores e a infância precisam é de uma cidade que funcione. As pautas das mulheres periféricas, as pautas das mães, das famílias, são pautas para uma cidade que funcione, ou seja, que o Estado equalize essas relações e permita que os serviços públicos funcionem. Então a gente está pensando em sociedades mais modernas.

A que se deve o aumento de crianças e adultos diagnosticados com transtorno do espectro autista?

O autismo virou um guarda-chuva gigante, fazendo desaparecer os quadros de psicose, de depressão, de neurose, de problemas de aprendizagem, problemas de comportamento, problemas sociais. A questão é que o autismo se alargou enquanto diagnóstico e não é que todo mundo é autista como pensávamos autismo há 20 anos. É que o significante autismo virou uma cobertura para diferentes quadros. Fica mais fácil dizer: todo mundo virou autista. Mas será que o autismo é o mesmo que era há 20 anos ou pegamos e esvaziamos esse termo de tal forma que ele serve para tudo?

Estamos chegando a um grau de paroxismo no uso dessa palavra que ela vai se desgastando até que não vai sobrar nada. Até porque o autismo ganhou o status positivo que outras doenças não têm. Os pais e familiares às vezes se sentem mais confortáveis de dizer que o filho é autista do que falar que ele tem esquizofrenia, psicose, problema de comportamento, quadro depressivo. Virou um termo para as pessoas fugirem de certos estigmas, porque ele se tornou um significante aceitável. Isso tudo é perigoso porque banaliza o uso do termo e não ajuda ninguém, uma vez que não se consegue fazer diagnósticos mais apropriados.

Vera Iaconelli

“[O autismo] virou um termo para as pessoas fugirem de certos estigmas, porque ele se tornou um significante aceitável”, alerta Vera Iaconelli (Foto: Renato Parada)

Curioso. Já que, em tese, há mais estudos sobre o autismo. Ou seja, isso não deveria estar ocorrendo.

Não deveria estar acontecendo porque também os estudos nunca são isentos de conceitos e os conceitos também se transformam a partir de cada época. Quando você estuda o autismo e vai redefinindo-o a partir de outras bases, a partir de outros conceitos, ele pode se tornar um conceito gigante. Nesses 20 anos ele foi sendo redefinido.

Mas, eu me pergunto: cadê os outros quadros? Não tem mais criança psicótica? Criança com mau comportamento? Não tem criança depressiva? Neurótica? Onde foram parar essas outras crianças? Elas estão todas sob esse significante que foi se esvaziando. É verdade que, em geral, houve um aumento de diagnósticos. Então, hoje temos mais detecção de doenças. Mas por que tudo ficou homogêneo, sob um mesmo nome? Essa é a questão. O que chamamos de autismo hoje é a questão porque ele está englobando coisas demais.

Muitas famílias tentam ‘palpitar’ no currículo da aula de história, por exemplo, no que seu filho deve e não deve aprender. Quais os limites e como a escola deve lidar?

Esse assunto é espinhoso. No Brasil, a história é a história da nossa formação, de um povo que tem uma formação muito triste, muito violenta, uma história de invasão dos europeus aqui, de violência com os povos originários e de sequestro da terceira etnia que nos forma que são os negros que vieram escravizados. Então, essa é a fundação do Brasil, a qual é muito dolorosa de olhar. Tão dolorosa que a gente criou o mito da democracia racial — de que a mistura entre nós foi natural. A mistura entre nós nunca foi natural, foi fruto da violência, de estupro, enfim.

Mas, não queremos saber muito sobre isso porque é duro de encarar. Então, os descendentes de brancos, descendentes de negros, de indígenas e também outros que chegaram depois como japoneses, turcos etc., toda essa miscigenação não foi feita na base da alegria e da escolha, foi muito sofrida.

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E as aulas de história do Brasil vão contar a história de um grande sofrimento que diz respeito a nós hoje, porque esse sofrimento não acabou. A gente continua matando os indígenas, a gente continua matando os negros, a gente continua numa posição de privilégios como brancos. Os professores de história estão sendo atacados porque eles estão se atrevendo a trazer essas informações que na escola sempre devem ser colocadas não como verdades absolutas, porque a pesquisa histórica é perene, mas como pontos de reflexão: temos estes dados; o que pensam sobre; você formulou essas hipóteses. A história é muito viva, ela não está escrita na pedra. Sempre surgem novos documentos e informações.

Esse embate contra a aula de história é um embate político de um país que não está a fim de encarar as suas mazelas sociais e as reparações necessárias decorrentes delas. É um longo processo que teremos de enfrentar. Quer dizer, apoiando esses professores, bancando as suas posições dentro das escolas e enfrentando as críticas também. Não vai dar para fazer essa omelete sem quebrar esses ovos, não vai ter jeito.

Está mais difícil educar as crianças e jovens? As famílias de hoje conseguem dialogar com seus filhos?

Nunca foi fácil. A nova geração sempre, por ser nova, por vir depois, por depender de nós, por ver o mundo de outra forma, ela sempre nos confronta com o novo, ela sempre é um desafio, um bom desafio. Mas sempre difícil. A nova geração é a marca do nosso envelhecimento e da nossa morte, o que também não é fácil. Temos dificuldades muito próprias e algumas incrementadas, por exemplo, pela internet, que faz com que a criança tenha muito cedo acesso à pornografia, violência, fake news. Coisas de que tentamos preservá-la ao máximo ao longo da vida e que ela já tem acesso a tudo isso com menos de 10 anos, o que era impensável épocas atrás — quer dizer, antes da Modernidade, porque na Idade Média já se vivia com isso, as crianças tinham acesso a tudo.

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Outra coisa que acontece é que a mãe, pai ou responsável estão deprimidos pela ideia de que eles precisam ser especialistas e não pais. Então eles têm de estar superinformados, têm de estudar pedagogia. Quer dizer, são casais extremamente inseguros, infantilizados e desautorizados por uma lógica de que você tem de ser especialista, não pai. Também temos uma lógica capitalista que faz com que os pais achem que o que eles têm de melhor para dar aos filhos são coisas e não presença, ou seja, mais desautorizados ainda, mais desvalorizados ainda. E junto de tudo isso se tem uma exigência em cima dos resultados. As famílias estão sendo cobradas o tempo todo.

Sinceramente, hoje a gente está vivendo um período mais difícil de educação dos filhos por essas interferências e não porque o desafio de ter filhos não seja difícil em si, mas temos interferências que atrapalham profundamente. Além do que, a cidade é hostil às crianças. Há lugares, por exemplo, em que entra cachorro, mas não entra criança. Então há um espaço público cada vez mais hostil à infância e as famílias se sentem segregadas.

Vários dos nossos direitos são recentes, inclusive o da criança enquanto sujeito de direitos. Ou seja, uma coisa é o papel, que é importante, mas o quanto esses direitos recentes estão presentes no cotidiano social, no território, é outro papo.

Temos de lembrar que vivemos um período extremamente contraditório em relação aos direitos das crianças: elas são supervalorizadas, parece que o mundo é todo virado para elas, mas, na verdade, ao mesmo tempo convive com isso uma hostilidade no espaço público. Vivemos uma contradição de um discurso de valorização da infância, mas uma realidade na qual elas não têm espaço. Essas contradições precisam ser levantadas.

As escolas estão no dilema de restringir ou não o celular. Algumas entenderam que devem conversar/formar também junto às famílias. Como avalia esse momento?

Será um longo e necessário trabalho para que as crianças não tenham acesso irrestrito de levar celular para dentro da escola. Aliás, até de ter celular na infância. Temos de ter uma ação muito ativa nesse sentido, porque nesses 20 anos de pesquisa da entrada do smartphone na vida das crianças não tem mais como esconder que existe aumento de suicídio, cutting (automutilação) e ansiedade . Pela primeira vez na história é uma geração que terá QI inferior à geração anterior. Já está mapeado. A gente já sabe.

Então, como é que a gente pode conviver com essas informações e não fazer nada? Precisamos ter uma ação clara de usar uma ferramenta, o celular, para o bem da criança e não para o mal. Isso significa selecionar ao que ela tem acesso, restringir este acesso e em alguns momentos não dar acesso ao aparelho. Até porque o celular é viciante, ele veio para vender produto, não veio com nenhuma intenção de bem da humanidade. Quem inventou não oferece celular para os filhos até a adolescência. Teremos de repensar a entrada desse recurso.

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Junto com isso, temos de, ao introduzir as redes sociais na vida da criança, ensiná-las a usar, porque não dá para dizer: não use, use pouco, e agora toma que o filho é teu e se vire. As coisas devem ir juntas. Temos de ter educação midiática, restrição, seleção e em alguns momentos abolição do uso das redes sociais. Tudo isso tem de ser pensado para cada idade e os pediatras já estão trazendo essas informações: qual a idade apropriada, o que é apropriado, como usar. Não dá para dizer que a gente não sabe.

O que está faltando é as famílias se autorizarem. É como disse anteriormente: os pais desautorizados, desqualificados, inseguros, infantilizados por uma sociedade que não consegue permitir que eles ajam de uma forma autoral, são os mesmos pais que vão ter de inibir o uso disso daí. Estamos em uma situação complicada.

O acesso a psicólogos aumentou nos últimos anos nas diferentes faixas socioeconômicas. Isso gera impacto expressivo de mudanças na sociedade?

Nunca se falou tanto de psicanálise, de psicologia, de saúde mental, como hoje. Isso também foi disseminado pelas redes sociais e não acho que seja minoritário. Antes as pessoas achavam que psicólogo era coisa para ‘louco’. Hoje já percebem que é importante, reivindicam que tenha no SUS, que tenha nas escolas públicas, em todos os lugares. Noto um ganho de consciência, sim, em relação a esses tipos de tratamento. Agora, não temos como formar, e nem é desejável, profissionais para atender toda a população. Mesmo se juntarmos todos os psicólogos, psicanalistas e psicoterapeutas que já se formaram no Brasil, eles não vão dar conta de toda a população.

A psicanálise, a psicologia são formas de tratamento. Mas a gente não pode esperar que uma vida que é vivida de um jeito ruim possa ser só tratada no consultório ‘psi’, temos de mudar os nossos modos de vida. Estamos levando uma vida adoecedora. E mesmo que tivéssemos um psicólogo para cada um, não resolveria porque a gente tem de mudar as formas de enfrentar isso. Por exemplo, você está em sofrimento, deprimido, vai ao psicólogo e estando lá se adapta à porcaria de trabalho que tem. Não. Você tem de reivindicar um trabalho melhor, reivindicar condições de vida melhor, reivindicar uma sociedade melhor.

A psicologia não deve ser usada para tapar o buraco do estilo de vida que a gente está levando, senão ela vira adaptativa, ela não pode ser adaptativa ao pior. Há coisas em que temos de começar a pensar: que estilo de vida nossa sociedade possui que leva todo mundo ao adoecimento?

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Escute nosso episódio de podcast:

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Senão, o que é psicologia? Ela é uma forma de calar a boca? Estou bem comigo mesmo, fazendo meditação, zen e dane-se todo esse sofrimento à minha volta? Isso seria a pior função do profissional da psicologia. Temos que tomar cuidado porque eu não sei se dá para ter saúde mental nas condições de vida que hoje temos e essas condições têm de ser modificadas, senão a gente entra exatamente no que estamos vivendo: medicalização. Estou deprimido, tomo remédio. Estou ansioso, vou no ‘psi’. Ok, mas por que estou ansioso? Por que estou deprimido? Quais são as minhas condições de vida? Isso tem que estar na conta. Não adianta colocar em tratamento um aluno de uma escola ruim, você tem que questionar a escola.

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