NOTÍCIA

Edição 287

Padre Júlio Lancellotti: faltam humanidade e partilha nas escolas

Teólogo e pedagogo fala sobre a importância da pedagogia conflitiva – ainda deixada de lado -, diz que a cantora Anitta tem um papel pedagógico e critica que, em um país e mundo tão desiguais, a escola não educa para defender os mais pobres

Publicado em 05/08/2022

por Laura Rachid

1 foto padre julio lancellotti_foto Luciney Martinsxx "Há muitos professores lutadores, construtivistas, freirianos, que estudam Emilia Ferreiro, que conhecem as grandes linhas do pensamento pedagógico", defende padre Júlio Lancellotti Foto: Luciney Martins

Aos 73 anos, o padre Júlio Lancellotti se dedica há décadas em prol dos “descartados pelo neoliberalismo”, como a população em situação de rua – só em 2020 eram 222 mil 869 brasileiros nessas condições, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Desde cedo e talvez de maneira inconsciente, já vinha se preparando para atuar pelos direitos humanos. Seu pai, inclusive, trabalhou na antiga Febem (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor de São Paulo), onde criança chegou a frequentar, brincar e já mais velho colaborar como agente educacional.

Teólogo formado pelos expoentes da teologia da libertação, é também pedagogo. Entre suas professoras do ensino superior, fala em tom de agradecimento de Maria da Glória Pimentel e Lais Loffredi. ”Me encantei estudando Maria Montessori e o pensamento do Piaget teve muita influência na minha maneira de pensar.” 

É um dos fundadores da Casa Vida, entidade criada em 1991 para atender crianças e adolescentes com HIV. Sua voz e solidariedade se espalham ainda nas redes sociais, como o dia em que se ajoelhou e beijou os pés de uma transexual em gesto de perdão à intolerância. Só no Instagram tem pouco mais de 1 milhão de seguidores, contudo, coleciona também os chamados haters. A aversão e rejeição ao pobre, denominada aporofobia, é atualmente uma de suas principais ações pedagógicas. Para saber mais acesse www.aporofobia.com.br e o Instagram @observatorioaporofobia.


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Confira, a seguir, entrevista exclusiva com o padre Júlio, realizada no centro da paróquia pela qual é responsável, a São Miguel Arcanjo, na Mooca, SP.

Pelo menos uma das escolas que frequentou na educação básica era católica. Isso o influenciou a seguir o caminho religioso? 

Na época em que estudei, as escolas religiosas eram muito acessíveis, de baixo custo. Então sempre estudei em escolas religiosas, mas elas não tiveram uma influência decisiva, me fizeram ter uma experiência religiosa. O que me marcou nas escolas religiosas foram algumas pessoas. Na minha primeira escola a irmã Teófila, que foi a minha primeira professora, a via quase como que um pedaço de açúcar, era uma pessoa muito doce. Na segunda escola a irmã Inezita, que tinha uma deficiência visual muito grande. Ela se ligou com os alunos que tinham mais dificuldade na escola; eu era um desses. Essa irmã ‘arrebanhava’ os mais difíceis e dava um espaço maior para eles. Me liguei à irmã Inezita a ponto de que eu aprendi a responder a missa em latim em uma semana. Foi um recorde. 

Depois fui pela primeira vez ao seminário, que era muito rígido. Apanhei de vara de bambu. A gente levava castigo pesado. Não aguentei e voltei para casa. Fiz todo o ginásio com os padres agostinianos; o Colégio Agostiniano estava recém-começado, era muito mais simples do que é hoje. Quando terminei o ginásio, fui para os agostinianos, para o seminário. Lá fiz o nível médio até que fui iniciado e depois de meio ano, o superior me mandou embora porque disse que eu perguntava muito, que contestava, enfrentava. Uma coisa engraçada, um dia ele me chamou e disse: ‘você anda de um modo muito altivo. Precisa andar de um jeito mais humilde’. Eu falei: ‘está bem’. Dali uma semana me chamou: ‘agora você está andando muito humilhado’. Falei: ‘então o senhor anda um pouco para ver como quer que eu ande’. Depois de uma semana intensa que marcou a minha vida, fui o primeiro cantor de A noite de completas, e a gente cantava em gregoriano – treinei muito para cantar em gregoriano e cantei direitinho, porque se você errasse tinha que começar outra vez, era muito vexatório, humilhante. E na segunda-feira ele [o superior] me chamou e falou: ‘nós decidimos que você vai voltar para casa, você não serve para isso’. 

E o que resolveu fazer?

Tive que voltar e fui trabalhar no hospital, porque no seminário fiz um curso de atendente de enfermagem e trabalhei na Santa Casa, em Bragança. Depois fiz a seleção e entrei no antigo Serviço Social de Menores que depois se transformou na Pró-menor, depois na Febem [Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor] e hoje na Fundação Casa. Nesses lugares tive muita experiência de trabalhar como professor, porque aí fiz pedagogia na Oswaldo Cruz e na PUC.

Trabalhei principalmente na alfabetização com crianças que na época chamávamos de aprendizagem lenta ou com dificuldade, que eram dificuldades no fundo emocionais, atraso da faixa etária com a idade escolar. Foi uma experiência rica dar aula e descobrir com as crianças, com os jovens. Ao mesmo tempo, dei aula para adultos como professor assistente em três faculdades. 

Teólogo, pedagogo com especialização em orientação educacional, como analisa a sua formação superior? O que pretendia quando ingressou nesses cursos?

É interessante porque o curso de pedagogia sempre foi meio desprestigiado. Mas a pedagogia me encantou, principalmente a história da educação, a filosofia da educação. Minha professora já falecida Maria Isabel Pitombo é referência da filosofia da educação. Fiz teologia com os mais proeminentes teólogos da teologia da libertação, foram meus professores Gilberto Gorgulho, Ana Flora, Benedito Ferraro, Enrique Dussel, Leonardo Boff, Juan Luis. A faculdade de teologia foi um momento de muita riqueza.

De que forma o senhor pratica a pedagogia? Hoje, ela pode estar para além do ambiente escolar enquanto instituição?

 

O processo educativo que a gente vive com a população em situação de rua; ontem, por exemplo, tivemos reunião sobre a aporofobia [aversão a pobre] e ela precisa de um processo educativo para a transformação, porque todos nós somos aporófogos em desconstrução, como somos homofóbicos em desconstrução, transfóbicos em desconstrução, machistas em desconstrução e temos que ser aporófogos em desconstrução. E como é que desconstrói? Pra mim é muito forte na pedagogia, a pedagogia como teologia do conflito, porque o processo educativo é um processo conflitivo, especialmente em um Estado neoliberal como o nosso. Somos um Estado de economia capitalista neoliberal. Então se dá no conflito. E por que com a população de rua é um grande desafio? O próprio centenário querido e combatido neste governo, Paulo Freire, dizia que o sonho do oprimido é ser opressor. Quantos da população em situação de rua passaram por uma educação libertadora? Então eles também querem acumular, também têm meritocracia, eles também enganam, também mentem.

Essa cumplicidade nem sempre é uma cumplicidade deliberada. Tenho aqui um rapaz que sempre defende o Bolsonaro. Hoje falei para ele: ‘vou te mostrar um argumento irrefutável’. Mostrei a Anitta fazendo campanha para o Lula. Ele falou: ‘agora esse argumento é irrefutável’.

A Anitta tem um papel pedagógico muito importante na sociedade. Ela está falando de coisas que são da força mais íntima do ser humano que é a sexualidade, muitas vezes negada ou subjugada, então ela explicita isso na dança, na música, na irreverência e por isso tem a audiência que tem.

Falei com ela por telefone, foi amável, ela mesma atendeu e falou para mim: ‘desculpe, Padre, eu não sou contra os padres’. Falei: ‘eu sei e não precisa justificar’. Ela disse que foi coroinha, que era católica, agora ela é do Candomblé. Falei: ‘Anitta, o importante é você ser humana’.

Acho que falta isso na educação, a gente não sabe matemática porque é importante saber matemática, eu não sei geometria porque é importante saber geometria, eu tenho que saber tudo isso para ser mais humano. Como é que as áreas do saber estão a serviço do humano? Da humanização? Nós educamos e somos educados no processo pedagógico formal e informal para a solidariedade? Para a partilha? Para defender os mais fracos? Para defender os mais pobres? 

O secretário de Educação do Estado de São Paulo muitíssimo festejado, um dia me convidou para visitar a Secretaria de Educação. Lá me mostrou os programas: olha os alunos que mais se destacam, temos esses cursos aqui, os que têm destaque em línguas vão fazer não sei o quê, os que têm destaque em tecnologia não sei o quê. Perguntei: ‘e com os piores, o que vocês fazem? Por que você fala dos melhores? E os que têm mais dificuldade? E os que não aprendem? E os que não conseguem? E os que não têm rede de internet, instrumentos de Tecnologia da Informação?’ Então para os piores não tem nada, só tem para os melhores, que são a sociedade meritocrática.


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Como foi sua participação na formulação do ECA, o Estatuto da Criança e do Adolescente? O que mudou no dia a dia quando o direito dos menores passou a estar destacado no documento?

Participei da equipe junto com pessoas proeminentes como a irmã Maria do Rosário Leite Cintra, a Ruth Pistor, promotores de justiça como Munir Cury, que é um grande promotor, e o Paulo Afonso Garrido de Paula. A grande riqueza do estatuto é que ele foi escrito de baixo para cima com a participação das comunidades, dos agentes de pastoral, juristas e com a Rita Camata, que foi a deputada federal que apresentou o projeto. Mas antes de apresentar o estatuto, lutamos na Constituinte de 88 pela aprovação do artigo 227 de que crianças e adolescentes são prioridade absoluta e para manter a maioridade penal aos 18 anos.

O deputado federal constituinte que apresentou tudo isso na ocasião foi o grande Plínio de Arruda Sampaio. Aprovados esses artigos na Constituição, fomos para a lei ordinária, que é o Estatuto da Criança e do Adolescente. O estatuto foi muito combatido. Foram dois anos de elaboração, líamos, relíamos, corrigíamos, apagávamos e refazíamos.

Hoje o estatuto [ECA] é uma das leis mais completas do mundo, uma das mais importantes que todos os países copiaram e que o Brasil não conseguiu implantar. Hoje os Conselhos Tutelares estão bastante deformados; o estatuto é uma lei importante, conseguimos o ordenamento jurídico, mas ainda há dificuldade de tê-lo em plenitude para funcionamento.

Sobre o neoliberalismo, é possível um outro sistema?

Mudando o sistema em que nós vivemos.

É possível? 

É difícil, porque será um processo histórico longo; o capitalismo, ele mesmo está se esgotando, porque ele tá esgotando a natureza.

A continuar do jeito que estamos, em 20 anos várias espécies vivas vão desaparecer. Se o aumento da temperatura continuar, os próprios seres humanos serão em muito inviabilizados. O próprio sistema neoliberal capitalista está destruindo a origem daquilo que produz. A questão da destruição da Amazônia, a matança dos defensores dos povos originários, da floresta. Os alertas estão sendo dados. O Papa Francisco deu alerta, a Carta da Terra deu alerta, vários ambientalistas dão alerta, mas a economia não se importa porque o Estado neoliberal tem como primado a economia e não é uma economia a serviço da vida; é uma economia a serviço do ganho.

Que tipo de cristianismo o senhor pratica, qual a sua ligação com a teologia da libertação e por que a Igreja Católica parece não apoiar esse movimento?

É uma questão histórica longa. A Revolução Sandinista na Nicarágua e a Revolução da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional em El Salvador, naquele momento os Estados Unidos acenderam um alerta. Por que o Salvador Allende foi assassinado? Por que teve que se inviabilizar a experiência do Salvador Allende no Chile? Washington acendeu uma luz de alerta de que os muitos movimentos sociais, populares religiosos, estavam se engajando na luta de transformação. A própria introdução das igrejas pentecostais no Brasil teve o papel de ir para o individualismo; Aqui em São Paulo todos os grandes cinemas se transformaram em igrejas, Cine Universo, Cine Roxy, Aladim. Quem financiou tudo isso? Qual foi a intervenção da CIA [Agência Central de Inteligência estadunidense] na introdução do pentecostalismo na Igreja Católica? Nos movimentos de Renovação Carismática? Todos têm origem nos Estados Unidos porque fazem parte de uma intencionalidade, eles aproveitaram o momento, a mídia, as comunicações, todo esse sistema é articulado. Grande parte dos pentecostais e evangélicos e pentecostais católicos são apoiadores do neofascismo, todos de ‘arminha’. E isso a gente vê em todo lugar.

O crescimento das igrejas evangélicas e da Renovação Carismática Católica é intencional. Não aconteceu por acaso. São financiados por grandes empresas justamente para neutralizar a força transformadora que o cristianismo traz.

Grandes teólogos de luta de transformação, todos eles foram sancionados. O Leonardo Boff foi calado, o Jon Sobrino foi censurado, não só no Brasil, na África, na Ásia, porque era um movimento intencional de neutralizar qualquer forma de pensamento religioso transformador. A igreja é multiclassista. Todas as classes sociais estão dentro da igreja. Mas a igreja produziu Dom Hélder Câmara, produziu Dom Paulo Evaristo Arns, Dom José Maria Pires, Dom Waldyr Calheiros, Dom Adriano Hipólito, Don Tomás Balduino, produziu o martírio de Ezequiel Ramin, de Josimo Tavares, de Margarida Alves, de Dorothy Stang, de Marielle Franco; esses dias esteve conosco a Marina Silva, todas essas pessoas têm origem nas Cebs [Comunidades Eclesiais de Base].

Padre Júlio Lancellott

Acolhimento na Catedral da Sé durante a frente fria de maio deste ano, que chegou a 1,1°C na cidade de SP
Foto: Luciney Martins

Que percepção as crianças e jovens abandonados e moradores em situação de rua lhe apresentam sobre a sociedade e sobre as pessoas? 

A mais variada possível. A população em situação de rua pensa como toda a sociedade pensa. Na rua tem terraplanista, tem bolsonarista, tem armamentista, tem machista, tem homofóbico. A condição social de ser morador de rua não é determinante da epistemologia, que é aquilo a que a gente volta: muitas vezes os oprimidos são cúmplices dos opressores. É o que a sociedade como um todo pensa e eles não são imunes. Todo mundo ouve a mesma coisa e o problema da escola é que ela também fala sempre a mesma coisa. Claro, não são todos os professores que pensam do mesmo jeito, não é uma classe homogênea. Há muitos professores lutadores, construtivistas, freirianos, que estudam Emilia Ferreiro, que conhecem as grandes linhas do pensamento pedagógico. Eu me encantei no estudo da pedagogia estudando Maria Montessori, Piaget, inclusive, o pensamento do Piaget teve muita influência na minha maneira de pensar. Convivi com Paulo Freire; esses dias publicaram as seguintes frases minhas nas redes sociais: ‘sou um fracassado, pois essa é a lógica do sistema injusto de exclusão ao qual pertencemos. Fazer sucesso é ser conivente com ele e isso eu não sou’. E a outra: ‘não se humaniza a vida numa sociedade como a nossa sem conflito’. Então a pedagogia tem vários títulos, a pedagogia piagetiana, montessoriana. E estudamos pouco a pedagogia do conflito. Porque a pedagogia freiriana é conflitiva. 

Sobre a educação brasileira, o que tem a falar?

A gente poderia perguntar: a educação brasileira está humanizando a vida? Ou o ministro da Educação está fazendo barganha para receber emendas e fazer corrupção? 

As nossas escolas perderam a cultura de alguns povos indígenas de falar para as crianças as coisas boas que elas fazem. Está cheio de criança na Vara Especial da Infância e da Juventude, crianças e adolescentes que foram promovidos a infratores na escola. Há uma porção por dano do patrimônio público, que desrespeitou a autoridade. Então, a própria escola promove infrator.

Escute a entrevista na íntegra com o padre Júlio Lancellotti em nosso podcast:

Autor

Laura Rachid


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