NOTÍCIA
Explosão silenciosa de casos mostra que é urgente cuidar da saúde mental de crianças e adolescentes — e a escola tem um papel a desempenhar
C.A. é um jovem como tantos outros do 2° ano do ensino médio de um colégio privado na zona norte de São Paulo. Craque em tecnologia, frequentemente burla as lições quando acessa as plataformas didáticas adotadas em sua escola para se perder em navegações paralelas pela web. Mas surpreendeu a todos quando, depois de uma desilusão afetiva, começou a se ferir durante as próprias aulas com objetos que tinha às mãos, até mesmo uma régua quebrada.
Na zona leste, o dia a dia da diretora N.I. já é tomado por casos como crises de ansiedade, pânico, depressão e até por cuidados com quem já tentou suicídio. Do outro lado da cidade, em uma reconhecida faculdade privada, os professores se surpreenderam com uma sessão descontrolada de choro coletivo de jovens adultos após uma prova. Os casos desta matéria são reais e optou-se pelas iniciais para proteger os menores envolvidos.
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O estado emocional da sociedade
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Assim, episódios que poderiam parecer isolados tornam-se cada vez mais exemplos de um fenômeno que toma os contornos de uma epidemia. Há uma explosão silenciosa de evidências da deterioração da saúde mental de crianças e adolescentes, alarmando especialistas.
A última edição da pesquisa Panorama da saúde mental, lançada em junho, trouxe dados que deveriam soar como sirenes. Dentro do recorte de faixa etária de 16 a 24 anos, 22,8% dos jovens disseram pensar quase todos os dias em se ferir ou que era melhor estar morto. O estudo é realizado semestralmente pelo Instituto Cactus, organização focada em direitos humanos, e pela AtlasIntel. É um dado assombroso. Para que se tenha uma ideia, no recorte etário seguinte, de 25 a 34 anos, o percentual cai a 6,5%. O mesmo estudo mostra que os jovens dormem pouco (78,8%), dizem sofrer bullying (36,1%) e demonstram um abalado sentido de autoestima: metade dos respondentes se julgam pouco inteligentes e 71,3% se percebem como pessoas pouco atraentes. “É um cenário grave, que já vinha se intensificando antes da pandemia, e agora se mostra com mais força”, diz a pesquisadora Mariana Rae, coordenadora de projetos do Cactus e mestre em saúde pública pela Universidade Harvard.
Segundo o psiquiatra Mauro Victor de Medeiros Filho, chefe da Enfermaria Infantil do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP, os dados epidemiológicos vêm mostrando que os transtornos psiquiátricos são um desafio global. Os índices que medem os transtornos mentais tendem a se agravar no tempo da adolescência — chegam, segundo ele, a 20%.
Por que os mais jovens? “Influem tanto fatores biológicos, como as mudanças hormonais, como os psicossociais, como a pressão por desempenho e autonomia, competição por prestígio”, diz o psiquiatra. Profissional que orienta diversas escolas básicas no tema da saúde
mental, Medeiros diz que vêm sendo recorrentes os casos de depressão, ansiedade, bem como de falta de maturidade e comportamentos de risco, como autolesão e mesmo o suicídio.
Fenômeno complexo, o tema da saúde mental coloca em xeque as famílias, mas também as escolas — afinal, quais são os limites do mandato dessa instituição, formada basicamente por pedagogos e educadores? E quais são as responsabilidades dos pais? Não há resposta fácil. Até porque, a sensação de um mundo que enlouquece está se difundindo em toda a sociedade, e as fronteiras entre o que pode ser caracterizado como doença e as frustrações e angústias da vida se misturam. Por isso, o primeiro passo é entender do que estamos falando.
Há diferentes formas de definir as doenças que afetam a saúde mental, que nem sempre cabem na categoria de transtornos medicamente estabelecidos. Em termos simples, transtornos são estados que geram sofrimento psíquico prolongado, levam à perda de capacidade de reação e impactam a qualidade de vida. “O diagnóstico leva em conta a quantidade e combinação de sintomas, bem como seu tempo de
duração”, explica Mariana Rae. Ela observa, no entanto, que o parâmetro não é aquele estado de vida perfeita. “Não se trata de ter como referência aquela positividade tóxica que existe nas redes sociais. Isso só acaba levando à patologização e à medicalização de sofrimentos que fazem parte da vida, e não são propriamente transtornos”, lembra.
E os problemas da vida não são poucos, não é? Crise econômica, desemprego dos jovens, insegurança, violência, incerteza, intolerância e preconceito social, desestruturação dos núcleos familiares. Mesmo as mudanças climáticas vêm sendo apontadas como um novo fator de desequilíbrio emocional. Mas, se todos estão no mesmo barco, por que os temas de saúde mental não nos afetam igualmente?
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Acusações entre família e escola prejudicam a saúde mental dos estudantes
A manipulação das tecnologias digitais
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Bem, em primeiro lugar, se há algo que o mundo contemporâneo deixa claro é que não estamos todos no mesmo barco. A desigualdade social, a intolerância e o preconceito deixam suas marcas também no campo da vida interior. Estudos apontam que os problemas da saúde mental estão entre os que mais impactam os indivíduos que se dizem não binários. Da mesma forma, no estudo do Instituto Cactus, os que se sentem deprimidos são 21,6% entre aqueles com renda de até R$ 2.000,00, e 11,2% entre os que têm renda superior a R$ 10.000,00. As mesmas correlações podem ser encontradas em vários outros recortes, como idade, gênero, renda, escolaridade e raça
Mas, ao mesmo tempo que essas diferenças devem ser notadas, o drama não se reduz aos recortes estatísticos, e permanece sendo uma bomba-relógio para todos. A piora nos indicadores de saúde mental é real e precisa ser compreendida pelos educadores.
Para o pesquisador espanhol José María Avilés, da Universidade de Valladolid, não há uma causa única, e há um contexto mais amplo de transformações. “São as exigências que a sociedade globalizada coloca para os adolescentes e jovens, como um ideal de êxito econômico, social, físico, pessoal, de fama, de brilho”, acredita o pesquisador. As redes sociais tornaram essas demandas exponenciais, promovendo uma cultura do desejo, do culto à autoimagem, do selfie, do individualismo.
A frustração acontece, segundo explica, quando o mundo virtual tropeça na vida real. No mundo lá fora, a realidade é também de recursos escassos, competição, conflitos, tristeza, vida vivida. “Estamos falando da capacidade dos jovens de administrar fracassos e outros sentimentos que, se não forem equacionados, podem ser canalizados para a violência, a depressão, a automutilação”, analisa.
Nesse pouco admirável mundo novo, a tecnologia certamente desempenha um papel que precisa ser mais bem compreendido. Está em curso, por exemplo, um debate internacional sobre a consequência do uso excessivo de telas. Para o psicólogo Rodrigo Nejm, pesquisador associado da Universidade Federal da Bahia, há controvérsias nessa discussão, mas o essencial deve ser preservado. “Há um problema na saúde mental dos adolescentes e precisamos olhar para isso”, considera.
Nejm acha perigoso apostar em uma única causa. Por isso, diz, as pesquisas vêm olhando para as correlações existentes e não para a relação direta de causa e efeito. Em outras palavras, é preciso ir além da busca do “que”, e sim procurar o “como”.
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A manipulação das tecnologias digitais
Os impactos da inteligência artificial na educação
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Assim, as redes sociais podem ser questionadas pela forma como vêm sendo utilizadas para estimular o consumo, a competição, o engajamento que adquire contornos de dependência psíquica. Deve-se discutir o acesso por faixas etárias que não deveriam receber os
conteúdos ali veiculados, bem como o design que gera o uso compulsivo em usuários mais vulneráveis.
O pesquisador chama atenção para o fato de que os próprios adolescentes identificam o mal-estar em que se encontram. Segundo a pesquisa TiC Kids Online, quase 25% dos adolescentes entre 11 e 15 anos dizem que já tentaram usar menos a internet, mas não conseguiram. Um quarto tem consciência de que fica menos tempo com a família e com os amigos por conta dos exageros digitais. Ao mesmo tempo, os jovens sentem as dificuldades de autorregulação.
“Essa é uma dimensão importante que tem a ver com desenvolvimento de competências sociais e com os limites da faixa etária”, afirma o pesquisador. “São pessoas que ainda desenvolvem a capacidade de autorregular seu comportamento, suas respostas sociais, e por isso precisam de cuidado e proteção”, diz Nejm. Até porque, lembra, a capacidade de autorregular o uso das redes, criadas para maximizar o engajamento, não é trivial, sequer para os adultos.
É verdade: a tecnologia já faz parte da vida das crianças e jovens. Mas, algo muito diferente é considerar que as novas gerações são nativos digitais — o que significaria dizer que “nasceram sabendo” utilizar esses recursos. “Não é porque nasceram agora que já trazem as habilidades sociais necessárias para se fazer um uso seguro, ético das redes”, diz. “As crianças e jovens estão à deriva e, assim, mais vulneráveis ainda às plataformas”, enfatiza.
Por isso, não têm recursos internos para lidar com a pressão das comparações, as tentativas de aliciamento, de coerção, com a discriminação. “Pior: quando entram na internet para buscar informações sobre saúde mental, correm outro risco, pois não têm habilidades para encontrar auxílio especializado e encontram fontes que vão piorar a desinformação”, alerta Nejm.
A questão não está apenas no excesso de tempo online, mas naquilo que se deixa de fazer enquanto se navega. Por exemplo, brincar, conversar, conviver, praticar esportes, tomar sol. “Os jovens têm dificuldades com questões absolutamente normais da adolescência, que são pedagógicas, como gaguejar para conversar com a paquera. Há carência na convivência básica, inclusive com a família”, alerta o pesquisador. Portanto, não é que a mediação pelas telas sempre seja ruim. “É nocivo quando se usa a mediação das telas para se blindar do constrangimento natural das convivências reais”, completa.
Recuperar o convívio
Em um cenário tão agudo, é importante diferenciar os diagnósticos médicos de transtorno e as questões que envolvem a gestão cotidiana das emoções, alerta Avilés, da Universidade de Valladolid. Afinal, escolas não são clínicas, e, no caso de transtornos, devem trabalhar em
diálogo com a família e com profissionais da psicologia e psiquiatria para melhor acolher as crianças e jovens.
Ampliar a interação com os pais é essencial. Faz parte deste cenário famílias desestruturadas, que não conseguem dar aos filhos o amparo necessário e cobram da escola que o faça. “Muitas vezes chamo os pais de um aluno para conversar e depois fico sem saber se socorro os adultos ou se protejo a criança”, se desespera a diretora S.P., de uma escola pública municipal de Bebedouro, no interior paulista. Ela vem se assustando com o crescente uso de medicamentos por jovens e por episódios tristes, como a recente tentativa de um jovem de 12 anos que saltou de um pontilhão. “Crianças usam Ritalina como se chupassem bala”, exemplifica. Os pais esperam que os professores façam algo, mas os educadores não têm formação para tanto, não sabem o que fazer e também estão adoentados”, alerta.
Com todos esses desafios, no cotidiano educativo, e com o auxílio do Estado e das instituições e outros profissionais de saúde, as escolas precisam ocupar, sim, um papel central que lhe pertence, assumindo-se definitivamente como uma instituição cujo papel vai além
do acadêmico — um espaço cujos valores e desenvolvimento emocional tenham tanta prioridade como o ensino de matemática e linguagens. “Devemos romper barreiras de uma vez e a escola deve se converter em um espaço para a convivência”, argumenta Avilés.
Na visão do pesquisador, a escola deve deixar de atuar apenas reativamente, quando os problemas estão instalados. Para ele, é preciso preparar os indivíduos para enfrentar conflitos, dúvidas e ansiedades normais da existência. “Os alunos precisam desenvolver formas de
autorregulação emocional para que controlem melhor o que acontece em suas vidas quando estão com outras pessoas”, diz Avilés.
“Devemos agir para levar os jovens a construir competências para que estejam mais preparados quando surgirem situações de frustração, da mesma forma como fazemos para desenvolvê-los em todas as áreas acadêmicas”, diz. “O que estamos fazendo para construir empatia,
proteção e outros valores fundamentais na convivência?”, questiona. Para ele, esse é o atual mandato social da escola
“As escolas precisam ter responsabilidade com a educação socioemocional e também estar preparadas para situações de crise”, concorda a psicóloga Karen Scavacini, do Instituto Alere, voltado à saúde mental. Da mesma forma, a seu ver, as instituições de ensino não podem ter nenhuma tolerância com situações de violência, como o bullying e o cyberbullying, e buscar construir ambientes saudáveis.
“Os jovens estão em um momento de vida em que o sentido de pertencimento, a escuta do que os pares acham dele são muito importantes na formação de autoestima”, diz Karen. Por isso, ambientes de muita comparação, pressão por padrões podem trazer riscos como o aumento da ansiedade, estresse, perda de sono, exemplifica. “Quando o jovem acha que está todo mundo mais feliz com ele, isso pode afetar sua saúde mental”, diz.
Na sua visão, as escolas devem atuar em três frentes: ajudar a identificar os alunos com dificuldades psicológicas e psiquiátricas, ajudar as famílias a procurar por apoio profissional e adotar programas mais inclusivos para os alunos que precisam de adaptação pedagógica e emocional. Além disso, afirma a psicóloga, é fundamental que as escolas se aproximem de outras instituições, como serviços de saúde, e invistam em formação dos professores.
Tudo é novo e desafiador, e por isso investir em aprimorar a formação das equipes é fundamental. Mas, mesmo quando tudo parece tão confuso, Avilés faz um alerta: nos tempos das redes sociais, as crianças e jovens precisam de pessoas por perto. “Quando eles não sabem o que fazer, precisamos estar fisicamente juntos, para que seja possível produzir interações sociais”, recomenda Avilés.
Isso implica, na sua análise, abrir tempo pedagógico para o “estar com”. “Precisamos estar juntos até mesmo para ajudar as crianças e jovens a construir seus relatos sobre o que sentem”, lembra. Sem isso, muitos constroem narrativas negativas sobre si mesmos.
Por fim, diz, todos precisamos colocar a mão na consciência. “Devemos pensar que tipo de sociedade estamos construindo, com que valores, com que modelo econômico. Se os desequilíbrios e as desigualdades aparecem de maneira tão bruta, como faremos para construir uma sociedade com mais igualdade e equilíbrio para eles?”, pergunta.
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