NOTÍCIA
Em passagem pelo Brasil, a fundadora do centro de pesquisa Black Education da Universidade Columbia diz que todos possuem um papel neste enfrentamento e destaca o que pode fazer diferença nas redes de ensino e em cada comunidade
Publicado em 10/10/2024
Ouvir a professora Sonya Douglass é, antes de tudo, aprender sobre como identificar e enfrentar as desigualdades sociais e raciais que afetam negativamente a educação em tantos países. Mais do que isso: ao final de uma apresentação ou de uma conversa com ela, é impossível não sair com a convicção de que, sim, podemos transformar a realidade atual.
Dedicada há mais de uma década a pesquisas e estudos sobre o tema, Sonya ressalta frequentemente a importância de se passar do diagnóstico à ação, com destaque especial para o trabalho feito dentro das escolas e em parceria com as comunidades. Sobre o atual momento da educação no mundo, a especialista enxerga com otimismo as perspectivas de mudanças, apesar dos desafios. “Eu tenho esperança porque já vejo esse debate acontecer, principalmente entre os mais jovens”, afirma.
Professora do Teachers College da Universidade Columbia, EUA, fundou e coordena o centro de pesquisa Black Education, vinculado à instituição. Publicou cinco livros e é coautora do The politics of education policy in an era of inequality: possibilities for democratic schooling (A política da política educacional em uma era de desigualdade: possibilidades para a escola democrática). Sonya atua no Plano de Ação para Equidade na Educação, financiado com US$ 25 milhões pelo Conselho da Cidade de Nova York, cujo foco é um currículo de estudos negros e um plano de aprendizagem profissional para as escolas públicas da cidade estadunidense.
Também é integrante do Conselho Consultivo do Centro Lemann de Liderança para Equidade na Educação. Sonya Douglass esteve em agosto no Brasil para participar do evento Diálogos para a equidade na educação básica, realizado por Fundação Lemann, Centro Lemann e Núcleo de Estudos Raciais do Insper (Neri). Confira a entrevista exclusiva realizada no dia seguinte à sua participação.
Apesar de indicadores educacionais evidenciarem a desigualdade racial de acesso e aprendizado na educação brasileira, nem sempre o tema ganha o destaque devido. Como enfrentar o que você chama de discurso “cego para a cor” (colorblind), que adota uma perspectiva neutra em relação à questão racial?
O primeiro passo é ampliar a consciência e o conhecimento da sociedade sobre o impacto bastante direto da desigualdade social sobre a educação, por meio de pesquisas que evidenciem a relevância do tema. Nos Estados Unidos também observamos uma lacuna de desempenho significativa entre estudantes brancos e negros. Pesquisadores, educadores e formuladores de políticas públicas devem estar conscientes desta questão para que possam apresentar propostas de iniciativas e legislações apropriadas. Mais importante ainda é que as pessoas que trabalham na escola, assim como as famílias das populações atendidas, tenham essa compreensão, para que sejam parte da solução. As comunidades que vivem às margens costumam ser foco de ações de equidade e reformas educacionais, mas raramente são envolvidas como parceiras no desenvolvimento e na implementação das iniciativas.
Qual o caminho para avançar do diagnóstico para a ação, de forma a transformar a realidade?
Quando se fala em equidade, é essencial assegurar que todos tenham garantido o direito básico à educação. Este é um dos valores centrais que devem orientar as decisões, que, por sua vez, será determinante para a abordagem utilizada e o impacto alcançado. Se a educação é um direito, como acontece no Brasil, é preciso discutir o que isso significa na prática, em termos do que cada criança deve receber por meio do ensino. É preciso quantificar os recursos financeiros necessários, por exemplo, e discutir aspectos como qualidade dos conteúdos e do ambiente de aprendizado, que deve ser acolhedor e promover a criatividade e a inovação.
É desafiador e sei que não será fácil, mas acredito que há uma janela de oportunidade: as pessoas estão prestando atenção. Precisamos aproveitar essa oportunidade para pensar sobre por que os estudantes negros são segregados do sistema educacional, e ampliar a consciência pela transformação. Eu tenho esperança porque já vejo esse debate acontecer, principalmente entre os mais jovens.
Nesse sentido, a contratação e formação de professores é uma questão-chave: devemos avançar na direção da diversidade e da capacitação antirracista, de modo que os educadores tenham condições de incorporar o tema às práticas cotidianas em sala de aula.
E vamos conversar diretamente com as comunidades negras e descobrir o que as escolas devem fazer pelos seus filhos. Provavelmente, ouviremos que querem professores que entendam como ensinar seus filhos e apreciem e reconheçam sua cultura. De modo geral, estudantes negros, famílias, educadores, líderes comunitários e especialistas devem ser engajados como parceiros no movimento de transformação educacional — para criar um ambiente em que possamos trabalhar juntos a favor das crianças. Mudanças de longo prazo dependem do desenvolvimento humano. São as pessoas que fazem diferença.
Qual o papel das lideranças políticas e dos gestores públicos?
É preciso ter alguém que facilite, mobilize e organize a comunidade escolar. Para isso, a liderança deve ter visão clara do que se quer alcançar, seja no nível da escola ou do município. São pessoas preparadas para liderar a comunidade escolar com capacidade para analisar dados, compreender as questões que envolvem o currículo, saber como supervisionar professores de forma eficiente e perceber se alunos de certos grupos sociais não estão tendo acesso ao mesmo tipo de experiência que os demais. Por isso é tão fundamental desenvolver e treinar novos líderes, para que sejam aqueles que vão ajudar e dar apoio às comunidades negras, inclusive mobilizando as famílias para que defendam o que é importante para as crianças.
Ao mesmo tempo, há os obstáculos externos à escola. De que forma enxerga a relevância de fatores históricos, sociais e políticos?
Está tudo conectado e é por isso que a educação é uma área tão difícil. Envolve todo mundo, muitos grupos de interesse e outras áreas que de alguma forma interagem com a educação e impactam o processo de ensino.
A educação é frequentemente vista como solução para os problemas da sociedade, mas, na verdade, é preciso criar um sistema e uma estrutura social que deem suporte ao trabalho das escolas.
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Passando das políticas públicas para a sala de aula e pensando no professor em seu dia a dia: é possível implementar uma abordagem antirracista localmente?
Se você me pergunta se os professores podem fazer tudo sozinhos, não acho que seja justo pedir isso a eles. Mas, com certeza, as crianças em sala de aula vão se beneficiar de um posicionamento e de um compromisso antirracista do professor. É disso que se trata a educação: informar, impactar e moldar a forma de pensar das novas gerações, para que tenham uma visão crítica destas questões. Hoje temos uma geração que entende a história e seu papel na sua comunidade e no seu país, e que pode vivenciar a experiência de contar com um professor que dá apoio e valida isso.
Cada um de nós tem um papel a desempenhar na luta pela equidade racial na educação. Trata-se de um desafio de grandes proporções que demanda o envolvimento de todos. Como no esporte, com jogadores diferentes com funções diferentes, mas trabalhando juntos para vencer o mesmo jogo.
À medida que esclarecemos o que constitui cada papel e desenvolvemos as pessoas para desempenhá-los, incluindo os professores, para serem antirracistas, e garantindo que sejam apoiados por lideranças também antirracistas, aí então aumentamos a chance de levar a educação numa direção de maior equidade.
Os professores e as escolas, muitas vezes, têm dificuldade em lidar com casos de racismo, até pela preocupação de educar antes de punir. Qual a melhor maneira de lidar com isso?
As medidas legais são, talvez, uma atitude extrema, mas necessária, para transmitir a mensagem de que o racismo não é tolerado. A solução também envolve articular um conjunto de valores que evidenciem que este não é o comportamento correto, que não é assim que se deve tratar as crianças ou lidar com as questões de raça. Mas isso requer uma abrangente mudança cultural e leva tempo. Este é um aspecto crucial que demonstra a dificuldade do trabalho antirracista e pela equidade racial na educação.
Como impulsionar a implementação de um currículo decolonial?
De fato, é importante desenvolver um currículo de estudos negros, seus valores, sua cultura e as contribuições importantes para o seu país. Esse processo começa por descolonizar o currículo no ensino superior, porque são as informações que professores e educadores utilizam na prática de sala de aula. É animador ter estudantes e jovens pesquisadores nas faculdades demandando a descolonização do currículo.
Que avaliação faz do momento atual das escolas nos Estados Unidos em relação aos temas raciais?
Há mudanças importantes no currículo da educação básica. Estamos observando esse movimento em bolsões dos Estados Unidos, como na Califórnia, com seu pacote de reparações para estudantes negros. O principal é o compromisso de ensinar a história afro-americana. Outros estados também avançam no compromisso com a igualdade e a diversidade, inclusive com a descolonização do currículo.
Embora haja locais que, ao mesmo tempo, estejam proibindo certos livros e tópicos, é emocionante ver a mudança ocorrendo em vários estados. E nossa esperança no centro de pesquisa Black Education é sermos capazes de fornecer o apoio às escolas e aos distritos que desejam descolonizar seu currículo, que desejam fazer algo diferente.
A ética democrática não é perfeita. Mas a democracia é como um músculo: se você não usa, acaba perdendo. Os momentos de mobilização, em que as pessoas dizem ‘eu posso participar e isso faz diferença’, é o que nos mantém esperançosos, animados e engajados. Isso é uma das coisas que ainda me entusiasmam nos Estados Unidos e espero que também inspire jovens de todo o mundo a lutar por equidade e justiça.
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