É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional
Publicado em 01/10/2024
É preciso eliminar a paralisia educacional e construir um projeto decolonial em diálogo com a história e cultura indígena
O Brasil parece viver em uma eterna ‘festa estranha com gente esquisita’, porque — como em poucos países — há, por estas bandas, o hábito nacional de aceitar que determinadas leis ‘não vão pegar’. Em qualquer sociedade minimamente esclarecida, a expressão em si seria absurda. Todavia, nestas terras, tratamos a frase como sentença e descaso rotineiro.
A Lei 11.645/08 que torna obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira é evidentemente transformadora porque modificou a Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9.394/96) que, por sua vez, já havia sido alterada pela 10.639/03. Contudo, é um exemplo claro de legislação que não pega. Ora devido à falta de interesse efetivo na aplicação desse dispositivo legal, ora porque quem a sugere não a fiscaliza nem pune quem não a cumpre. A deliberação é bastante interessante porque impõe às instituições de ensino o que já deveria estar ocorrendo por entendimento da contribuição clara dos povos indígenas na formação de nossa brasilidade.
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Como estamos longe de fazer valer o normativo, a lei capenga no papel e na prática das salas de aula. E se sobrevive, é devido à força e ao empenho efetivo da militância de alguns poucos profissionais de educação comprometidos com a causa e entusiasmados pela temática indígena, sobretudo com aquilo que a lei não especifica ou não aventa — como a obrigatoriedade dela no ensino superior. Lamentavelmente, estamos bem distantes ainda de tornar natural o que se forja legal.
E nessa toada de desconsideração, seguimos arraigados em estereótipos, em preconceitos coloniais e em visões deturpadas sobre quase tudo relacionado à nossa ancestralidade, provocados pela concepção colonialista impregnada na educação brasileira que oficializa o ideário positivista eurocêntrico e excluí a história e a cultura indígena como basilares na formação do país. Os materiais escolares, comprovando esse itinerário torto, afirmam que nossa história oficial começa em 1500 e escamoteia muita atrocidade feita. O que caracteriza um desprezo absoluto às populações que aqui viviam (vivem) e que tornaram (tornam), inclusive, o país preservado e habitável para toda sorte de invasores.
Estagnados em dois caminhos inférteis — a não aplicação efetiva da lei e a concepção desajustada e desastrosa no que tange os povos indígenas —, aceitamos a paralisia educacional. Para sair desse atoleiro conceitual e prático, há necessidade clara de reconstruir na escola e na sociedade rumos que corrijam essas falhas e incorreções. A começar por uma mudança de rota no que é proposto pela lei para que trilhemos um trajeto sob a perspectiva da decolonização, a fim de estabelecer compreensões mais razoáveis sobre a presença e a participação indígena na construção desta nação. Diferindo, evidentemente, nesse percurso, o ensino de história indígena — promovido em parceria com as vozes originárias — do ensino tradicional que tangencia, apenas, quando muito, a presença indígena no Brasil.
Isso exigirá, sem dúvida, uma revisão da abordagem e do imaginário que vem sendo sustentado ao longo dos anos sobre os indígenas nas diversas fontes adotadas na escola. Urge mudar essa percepção, desde as compreensões rasteiras que limitam as distinções dos povos ancestrais como se não houvesse entre eles diferenças socioculturais sólidas a preconceitos escancarados às suas crenças e aos seus modos distintos de vida.
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Nessa reavaliação retificadora da história e da cultura indígena com a polifonia (várias vozes) de representantes dos mais de 300 povos que vivem no Brasil, há necessidade de colocar o dedo na ferida e fazê-la sangrar, como se fez e se faz com esses povos desde que os portugueses aportaram por aqui. A começar pela compreensão do epistemicídio, que condena o abafamento dos saberes dos povos autóctones ao etnocídio, destruição sistemática dos modos de vida, até chegar ao ponto crucial de lançar luz aos silenciamentos históricos, políticos e culturais impostos a essas populações.
Ou seja, desnudar a indiferença às causas dos povos originários em relação às suas lutas por um lugar digno e igualitário na sociedade; revelar as insistentes manifestações e os enfrentamentos desses povos na retomada de boa parte de terras que lhes pertence (estamos em pleno embate sobre o marco temporal); entender, sem folclore e sem discriminação, que há autóctones que vivem nas florestas, nas áreas rurais e nos centros urbanos; solidarizar-se com a luta pela garantia de direitos e pela a atuação ativa nas instituições que definem os rumos do país; indignar-se diante dos insistentes assassinatos dos povos ancestrais por posseiros, grileiros e fazendeiros; e aceitar que temos muito o que aprender com a educação promovida pelos indígenas, especialmente em tempos de emergências climáticas e de esgotamento dos recursos naturais.
Não há dúvida de que a escola é uma das sustentações da colonialidade, porque atua de forma metódica na dominação epistêmica do poder. Cabe, então, a ela, contribuir para que se desvalide a supremacia do conhecimento ocidental que nega e aniquila os saberes ancestrais. Se a escola é espaço da diversidade, da pluralidade, da construção de uma sociedade íntegra e solidária, deve assumir esse papel na construção de um projeto decolonial justo e reparador. E não é com as festinhas comemorativas e com cartazes no dia 19 de abril. É no processo sólido de desconstrução do apartamento intencional que tornou o indígena uma figura abstrata e literária de contemplação ou um ser primitivo, miserável, sem direito e indigno de respeito.
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