NOTÍCIA

Gestão

Autor

Marta Avancini

Publicado em 18/11/2024

Privatização da escola pública: as experiências de Minas e Paraná

Embora parcerias público-privadas não sejam novas no setor, proposta é polêmica e divide o campo da educação

Em nome da melhoria da qualidade do ensino e da aprendizagem começam a ganhar espaço iniciativas de compartilhamento da gestão de escolas públicas com empresas ou organizações sociais, também chamadas de privatização, em pelo menos três estados brasileiros.

A partir de 2025, 80 escolas estaduais de Minas Gerais integrarão o Projeto Somar, criado em 2021 como piloto em três unidades, cuja gestão administrativa passou a ser feita por uma organização social que venceu o edital. No Paraná, 179 escolas serão incorporadas ao Parceiro da Escola, projeto de parceria público-privada que transfere a empresas da área da educação a gestão administrativa de escolas — a iniciativa começou em 2023 em três escolas.

Em São Paulo, por sua vez, o resultado da concorrência para o Novas Escolas deverá ser anunciado em novembro. A previsão é que a empresa vencedora construa 33 unidades escolares para atender 35 mil alunos dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio em 29 municípios do estado. As empresas vencedoras assumirão a gestão dessas escolas por 25 anos.

Cada iniciativa tem seu desenho específico, mas há aspectos comuns entre elas. Primeiro, a entrega da gestão administrativa a terceiros, a fim de torná-la mais eficiente. A tese é que, ao liberar o diretor das obrigações com manutenção e pessoal, há mais espaço para cuidar do pedagógico.

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O segundo ponto comum é que, geralmente, os contratos preveem repasses com base em um valor per capita (ou seja, por estudante matriculado) e contrapartidas relacionadas à melhoria do desempenho nos indicadores e avaliações oficiais, como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). No Paraná, as empresas gestoras recebem R$ 800 por aluno. Em Minas, a remuneração per capita no primeiro semestre de 2024 foi de R$ 5.470,96.

Embora as parcerias público-privadas não sejam novas na educação — nos Estados Unidos, as escolas charter (instituições públicas administradas por entidades privadas) surgiram nos anos 1990 e há registros desse tipo de parceria no Brasil durante os anos 2000 —, a proposta é polêmica e divide o campo da educação.

De um lado, estão aqueles que defendem essas iniciativas sob a justificativa de que é preciso aprimorar a gestão das escolas e redes de ensino, tornando-as mais eficientes do ponto de vista administrativo e dos resultados nas avaliações. Do outro, há aqueles que veem nessas medidas um risco à escola pública, pois ela passa a ser submetida à lógica e a interesses privados, além do risco de elas ampliarem desigualdades.

Porém, em meio ao debate, o que já se sabe sobre essas experiências? Quais são as motivações das Secretarias de Educação para optar pelas parcerias? Já existem resultados? E quais as possíveis consequências e desdobramentos dessas iniciativas? Para responder essas perguntas, é preciso olhar mais a fundo os casos de Minas Gerais e Paraná.

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No Paraná, 179 escolas serão incorporadas ao programa, que transfere a empresas da área da educação a gestão administrativa de escolas — a iniciativa começou em 2023 em três escolas. Foto do Colégio Estadual Anibal Khury Neto (Foto: Divulgação)

 

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Colégio Estadual Anibal Khury Neto (Foto: Divulgação)

 

Projetos em expansão

Desde 2021, a Associação Centro de Educação Tecnológica do Estado da Bahia (Ceteb) assumiu a gestão de três colégios da rede estadual de Minas Gerais: a Escola Estadual Francisco Menezes Filho e Maria Andrade Resende, ambas em Belo Horizonte, e a Escola Estadual Coronel Adelino Castelo Branco, em Sabará, região metropolitana da capital mineira.

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Escola Estadual Francisco Menezes Filho, em BH, gerida desde 2021 pelo Ceteb, é uma das três instituições que funcionou como piloto (Foto: Divulgação SEE)

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Escola Estadual Francisco Menezes Filho, em BH (Foto: Divulgação SEE)

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Escola Estadual Francisco Menezes Filho, em BH (Foto: Divulgação SEE)

No Paraná, o Parceiro da Escola foi lançado no primeiro semestre de 2023, transferindo para empresas a gestão administrativa de duas escolas, o Colégio Estadual Aníbal Khury, em Curitiba, e o Colégio Estadual Anita Canet, em São José dos Pinhais, região metropolitana de Curitiba.

Tanto em Minas quanto no Paraná, os projetos foram implementados como piloto, ou seja, em poucas unidades escolares, com o objetivo de testar a metodologia. Sendo os resultados avaliados como positivos pelas Secretarias de Educação, nos dois estados as iniciativas foram transformadas em programas a serem implementados a partir de 2025.

Em Minas, as três escolas do Somar melhoram no Ideb 2023 em comparação com todas as edições anteriores e superam a média estadual de 4,0 pontos no ensino médio. Além disso, as taxas de aprovação superaram a marca dos 95%, a reprovação caiu e a frequência dos estudantes aumentou. Na escola Coronel Adelino, de Sabará, por exemplo, a frequência passou a 98%, segundo dados da Secretaria.

Outro resultado considerado positivo é o aumento da participação de estudantes, familiares e docentes nas atividades previstas no calendário escolar: na Francisco Menezes Filho, a participação da comunidade passou de 23% para 34% no ano passado. Já a Secretaria de Educação do Paraná enfatiza o alto índice de aprovação das famílias dos estudantes, acima de 90%.

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Destaque para a atuação da gestão

A principal explicação das Secretarias de Educação para esses resultados é a mudança de gestão. Embora cada experiência tenha suas especificidades, em Minas e no Paraná, um dos argumentos centrais em defesa da gestão compartilhada é a vantagem da separação entre a gestão administrativa e a gestão pedagógica.

No Paraná, o Parceiro da Escola surgiu de um diagnóstico sobre o papel do diretor escolar. “A gente sabe que o foco do diretor nas atribuições pedagógicas é determinante para os resultados de uma instituição de ensino. E o diagnóstico foi que, para dar espaço para o diretor se concentrar nessas atribuições específicas, a única alternativa seria desonerá-lo de encargos administrativos”, explica João Luiz Giona, diretor-geral da Secretaria de Educação do Paraná.

 

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“Temos necessidade de escolas grandes, que atendam a população de forma mais rápida. E o privado consegue entregar isso dentro do padrão”, pontua João Luiz Giona, diretor-geral da Secretaria de Educação do Paraná (Foto: Divulgação)

Em Minas, o Somar vai numa direção semelhante. “O diretor-geral passa a ter uma função estratégica. Não é mais aquele diretor que tem que cuidar da merenda, da portaria e atender mãe. Ele passa a ter uma visão estratégica do todo, atua como um apoiador dos processos”, relata Claudenir Machado, superintendente da Ceteb, que assumiu a gestão de algumas escolas.

Para assegurar esse lugar ao diretor, a equipe de gestão do Somar possui três vice-diretores, cada um responsável por um setor: pedagógico, administrativo (manutenção e funcionamento da instituição no dia a dia) e relações comunitárias, que faz a ponte com as famílias e a sociedade, busca parceiros estratégicos, entre outras funções. Completam a equipe gestora dois coordenadores pedagógicos, encarregados de fazer chegar na sala de aula o que está nas diretrizes curriculares e no planejamento, um psicopedagogo e um psicólogo, que circulam nas escolas para dar suporte aos estudantes.

Outro diferencial, na visão de Claudenir Machado, é o plano de trabalho, que prevê acompanhamento trimestral. “Coletivamente, as escolas construíram sua missão, sua visão, seus valores e começaram a trabalhar com um plano de ação associado às definições, permitindo que todos trabalhem na mesma direção”, detalha. Entre os objetivos definidos pelas escolas está tornarem-se referência nos estados, desenvolver os estudantes e serem reconhecidas internacionalmente.

O plano de ação se organiza em torno de objetivos trimestrais, sendo um para cada área: pedagógico, administrativo e comunitário. De acordo com o superintendente da Ceteb, essa lógica permite identificar rapidamente os problemas e buscar soluções — por exemplo, quando o número de alunos com nota abaixo da média é maior do que a meta do trimestre. “A gestão é ágil, não espera o final do ano. As intervenções são feitas durante o ano.”

Do lado da Secretaria de Educação mineira, o Projeto Somar é descrito como uma iniciativa inovadora, alinhada com uma concepção de gestão que atravessa diversas áreas do governo, seguindo um plano com metas e estratégias até 2030. Para a educação, uma das metas prevista é justamente a implementação de “parcerias inovadoras com outros setores”.

A ideia de eficácia também é o que mobiliza o programa Novas Escolas, de São Paulo, cujas empresas vencedoras do edital serão responsáveis pela gestão administrativa das escolas construídas por elas.

Para Vinicius Neiva, secretário executivo da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, o formato proposto torna mais ágil a construção e a administração das escolas, já que uma única empresa se responsabilizará por todos os serviços necessários no dia a dia.

“Hoje, temos um serviço fragmentado em quatro ou cinco contratos diferentes: o vigilante é com uma empresa, a limpeza é outro contrato, a merendeira outro ainda e assim por diante. Tudo gera um custo burocrático que prejudica as escolas. E a legislação não permite fazer uma licitação com vários objetos, o que torna o processo complexo e demorado”, explica Neiva.

Além disso, acrescenta o secretário executivo, os prédios escolares construídos pelas empresas vencedoras do edital deverão ser entregues entre nove e 12 meses, enquanto no formato atual, totalmente sob responsabilidade do poder público, uma escola pode levar até três anos para ficar pronta.

“Temos necessidade de escolas grandes, que atendam a população de forma mais rápida. E o privado consegue entregar isso dentro do padrão”, justifica Neiva, ao explicar que a demanda por escolas muda ao longo do tempo, dependendo das áreas em que a população se concentra.

 

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“O diretor-geral passa a ter uma função estratégica. Não é mais aquele que tem que cuidar da merenda, da portaria e atender mãe”, diz Claudenir Machado, superintendente da Ceteb, que assumiu a gestão de três escolas mineiras (Foto: Divulgação)

Privatização ou diversificação?

Enquanto os gestores das Secretarias de Educação veem com naturalidade essa abertura para parcerias com empresas e organizações sociais, pesquisadores da área da educação questionam os efeitos desse tipo de medida, entendidos como formas de privatização e desresponsabilização do poder público em relação à oferta de educação, como estabelece a legislação.

“A chave de análise é que esses processos resultam na transferência da responsabilidade pela educação para organizações privadas, por meio da transferência de ativos, bens e serviços públicos ou pela simples indução à ampliação do mercado, com programas de crédito educativo ou renúncia fiscal para provedores privados”, explica Theresa Adrião, professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), considerada uma das principais especialistas no tema. Segundo ela, existem vários tipos de privatização, podendo assumir o contorno de convênios, parcerias público-privadas ou a transferência da gestão para organizações privadas ou sem fins lucrativos, entre outros.

Em linha com esta perspectiva, a pesquisadora Karine Morgan, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), reforça que a privatização de escolas se dá por meio de “processos de subordinação de interesses”. “No caso da educação, ocorre quando os interesses da escola são submetidos aos interesses das empresas ou organizações às quais elas estão associadas”, complementa Karine, que é também professora da Faculdade de Educação da UERJ.

 

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Para Karine Morgan, da UERJ, a privatização de escolas se dá por meio de “processos de subordinação de interesses” (Foto: arquivo pessoal)

A subordinação dos interesses da educação, da formação das crianças e adolescentes, a uma visão de gestão caracteriza-se, por exemplo, nas metas estabelecidas nos contratos das organizações e empresas com as Secretarias de Educação. Afinal, um dos critérios para os repasses de recursos é o cumprimento dessas metas, geralmente associadas à melhoria do desempenho dos estudantes e das escolas nas avaliações e indicadores oficiais.

Como argumenta Theresa Adrião, a atividade pedagógica realiza-se em um lugar (espaço escolar) e em tempos que envolvem jornadas de trabalho adequadas aos fins pedagógicos. “Em uma organização complexa como a escola, os processos administrativos respondem aos objetivos que se quer alcançar”, afirma.

“Assim, uma escola que se quer pública, inclusiva e para todos e todas, como previsto na legislação e na Constituição brasileira, não poderia ser ‘administrada’ em resposta a interesses de corporações selecionadas em função do menor preço”, complementa. Por isso, embora seja possível separar a gestão pedagógica da administrativa, tal conduta  coloca em xeque a efetivação da educação como um direito de todas as pessoas, analisa a professora da Unicamp.

 

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“Esses processos resultam na transferência da responsabilidade pela educação para organizações privadas”, alerta Theresa Adrião, professora da Unicamp (Foto: arquivo pessoal)

Essa linha de raciocínio, contudo, não é consensual. A pedagoga Guiomar Namo de Mello questiona a visão de que o compartilhamento da gestão com organizações ou empresa seja uma forma de privatização. “Privatizar seria se alguém financiasse e gerenciasse as escolas. Mas não é isso que acontece. As escolas continuam sendo financiadas e funcionando segundo as normas do poder público”, enfatiza.

Além disso, Guiomar defende a existência de vários modelos de escola, que possibilitem tanto às instituições escolherem como querem se organizar, se querem aderir a determinado modelo de gestão, quanto às famílias decidirem qual é a melhor configuração de escola para seus filhos.

 

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Experiências de fora

A visão de Claudia Costin, presidente do Instituto Singularidades e ex-diretora global de educação do Banco Mundial, aproxima-se da de Guiomar. “Eu considero bastante factível que exista uma parceria para a parte de construção e manutenção física das escolas. Em contrapartida, há modelos que interferem no pedagógico, mas não necessariamente são ruins, como os modelos que existem na Coreia e na Inglaterra”, defende a analista.

Na Coreia existem as master high schools com dois gestores: um diretor da escola pública que atua em conjunto com um diretor de uma área de tecnologia de ponta para o ensino técnico. “É bem interessante. A Inglaterra trabalha com parceria com as academies, que recebem verbas públicas e a gestão é repassada para uma organização sem fins lucrativos”, exemplifica Claudia.

Porém, usando como referência as escolas charter, Guiomar assinala que este modelo contribuiu para a melhoria de indicadores educacionais em Nova York, mas ela admite que é preciso cuidado na implementação, a fim de evitar, por exemplo, ampliação das desigualdades.

Este é um aspecto analisado por Karine Morgan, da UERJ. Para ela, a experiência das escolas charter demonstra que as parcerias público-privadas na educação contribuem para intensificar desigualdades, pois são geridas por empresas ou organizações que têm o compromisso contratual de atingir metas e melhorar indicadores. “As escolas charter são, em última instância, escolas públicas que se comportam como escolas privadas. Captam os melhores alunos, assim como as escolas privadas de elite. Não entra qualquer um numa escola de elite privada. Também não entra qualquer um nas melhores escolas charter”, explica.

No caso do Brasil, Karine vê o risco de se criarem ‘ilhas de excelência’ nas redes públicas que atraiam os alunos com desempenho mais alto nas avaliações e excluam aqueles que não se adequam aos padrões e à cultura dos gestores das escolas.

Nesse sentido, um desafio ainda sem resposta é se as parcerias público-privadas podem ser implementadas em larga escala nas redes de ensino, sustentando os bons resultados anunciados pelas Secretarias de Educação. “O ideal, para saber se os resultados positivos obtidos numa amostra pequena de escolas podem ser projetados numa escala maior, é fazer um estudo controlado. Dessa forma, é possível saber se as conclusões são válidas para sustentar a generalização de um projeto. Também é preciso levar em conta os problemas novos, que surgem quando um número maior de escolas é incorporado”, pondera o professor titular aposentado da Universidade de São Paulo (USP), Romualdo Portela.

Ao mesmo tempo, há percepções positivas sobre as escolas de projetos de parceria público-privada. É o caso do estudante Daniel Aguiar Pacheco, do 2º ano do ensino médio de uma escola do Projeto Somar, o qual conta que adquiriu diversas habilidades: “como a capacidade de fala e melhora nas apresentações, aumento no empenho e dedicação a respeito do trabalho escolar. Uma experiência completamente nova e proveitosa para mim e meus colegas”.

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