NOTÍCIA

Edição 292

Nilma Lino Gomes: descolonizar o conhecimento para incluir saberes indígenas e negros

Referência em educação e relações étnico-raciais, educadora analisa os impactos das ações firmativas no ensino básico e no superior. E alerta que, enquanto a formação continuada docente tem avançado para dialogar com o tema, o mesmo não acontece na formação inicial

Publicado em 03/04/2023

por Laura Rachid

JNilma Lino Gomes_Rafa B_2 Nilma fez estágio pós-doutoral em Portugal com Boaventura de Sousa Santos Foto: Rafa B

Estudar o movimento negro e, consequentemente, sobre racismo estrutural e relações étnico-raciais na atualidade, principalmente no campo da educação, implica ler e ouvir Nilma Lino Gomes. Primeira mulher negra a comandar uma universidade pública federal, em 2013, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), e ministra das mulheres, da igualdade racial e dos direitos humanos no segundo mandato de Dilma Rousseff, Nilma é um símbolo da luta por justiça social.


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Mineira, é professora desde os 17 anos, formada em pedagogia, doutorado em antropologia social. Cumpriu estágio pós-doutoral pela Universidade de Coimbra, em Portugal, com o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, e ainda tem pós-doutorado em educação.

Escritora de livros como Experiências étnico-raciais para a formação de professores (ed. Autêntica) e O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação (ed. Vozes). É professora titular emérita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Confira, a seguir, a entrevista.

No que diz respeito aos negros e aos povos indígenas, de que maneira a Lei de Cotas e outras políticas afirmativas vêm impulsionando a descolonização do conhecimento – rompendo com a visão única eurocêntrica?

As ações afirmativas são políticas públicas e privadas que visam corrigir desigualdades históricas que incidem sobre determinados coletivos sociais, étnicos, raciais, de gênero, entre outros. Quando públicas, elas representam uma ação do Estado de saída do lugar de neutralidade estatal e de reconhecimento de que as desigualdades existentes em determinada sociedade têm uma imbricação de motivos e que o Estado não pode ficar neutro. Tem que intervir afirmativamente para que todas as pessoas, todos os grupos, nas suas diferenças, possam ocupar lugares dignos numa posição de horizontalidade. É o que se deseja em uma democracia plena.

As políticas de ações afirmativas implementadas no Brasil surgem como uma demanda do movimento negro no terceiro milênio [de 1º de janeiro de 2001 a 31 de dezembro de 3000] visando a correção de desigualdades raciais e a concretização da luta antirracista e que foi expandindo aos poucos para outros grupos sociais com histórico de discriminação e de desigualdade.

Essa mudança trouxe inúmeros impactos e tem possibilitado uma descolonização do conhecimento e da educação. A presença de sujeitos pertencentes a coletivos diversos, e tratados historicamente como desiguais e inferiores, trouxe para as instituições educativas indagações sobre o conhecimento hegemônico que nelas perdura: o currículo, a organização acadêmica e escolar, a gestão, a assistência, a relação pedagógica e o trato da diversidade.

E as cotas são uma das modalidades de ações afirmativas. Que mudanças trouxeram para a educação?

Há cotas nas instituições públicas federais e estaduais de ensino superior. Para as federais, em especial, foi instituída a Lei 12.711 de 2012, a chamada Lei de Cotas, que implementou a modalidade das cotas sociorraciais, direcionadas para os seguintes sujeitos: população negra (pretos e pardos), indígenas e pessoas com deficiência, além de escola pública e baixa renda.

As cotas podem ser consideradas a modalidade mais radical e mais urgente de ações afirmativas. A entrada de sujeitos pertencentes aos coletivos diversos com histórico de desigualdade, de resistência e de luta por meio da política de cotas tem impactado o ensino superior brasileiro de um modo geral, seja no público ou no privado (como é o caso do ProUni, que pode ser considerado como uma modalidade de ação afirmativa). Diante disso, a primeira mudança significativa que temos visto é a presença de uma maior diversidade no ensino superior, que antes era muito mais homogêneo do ponto de vista racial, étnico, de gênero, de orientação sexual e de classe social.


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Os sujeitos diversos chegaram com tudo: com sua corporeidade, ideologias, opções políticas, conhecimentos, identidades, religiosidades, visões de mundo e experiências construídas na resistência, na sobrevivência. E tudo isso impacta a universidade como um todo. Impacta o currículo porque, atualmente, não se pode mais dar aula como se dava nos anos 80. No terceiro milênio, no contexto das ações afirmativas e da modalidade cotas, não só os sujeitos mudaram, mas a própria circulação, as indagações sobre o conhecimento são outras. Cada vez mais a ciência moderna está sendo tensionada a entender que há um conjunto de outros saberes e visões de mundo pertencentes aos sujeitos diversos, que confrontam e enriquecem o próprio cânone.

Indígenas e pessoas negras no ensino superior lutam para que os seus conhecimentos sejam reconhecidos. Eles chegam exigindo, pressionando, porque estão nesses espaços por direito. E mostram que não adianta abrir as portas para uma maior inclusão e democratização do acesso e continuar negando o fato de que eles são sujeitos de conhecimento. É preciso garantir-lhes permanência digna. Esses sujeitos trazem suas visões de mundo, experiências, culturas, apresentam-nos outros autores, autoras e mestres dos saberes com visões emancipatórias e que são ainda pouco conhecidos (ou reconhecidos) pela academia. Sua presença e análises enriquecem as nossas aulas, os debates e as pesquisas.

As faculdades de educação, os currículos de licenciaturas têm dialogado com as transformações sociais? Estão passando por revisões para englobarem as questões étnico-raciais?  

É impossível que as faculdades de educação e os cursos de licenciatura não passem por transformações, pois a sociedade está em transformação constante e tem exigido do campo da produção do conhecimento e da formação das professoras e professores mudanças que caminhem em sintonia com a dinâmica do tempo que vivemos.

No que diz respeito às questões étnico-raciais, essas têm um impulsionador muito importante que é alteração da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) pela lei 10.639 de 2003, com a introdução obrigatória do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas da educação básica e que completa 20 anos em 2023. Essa legislação foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Educação e deu origem ao parecer 03 de 2004 do Conselho Pleno e da resolução 01 de 2004, também do Conselho Pleno, que no seu conjunto formam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Essas diretrizes são muito importantes e delas se originou um plano nacional de implementação que, infelizmente, ainda é muito pouco conhecido pelo campo da educação, pelos cursos de pedagogia e pelas demais licenciaturas.

Do ponto de vista das questões étnico-raciais voltadas para a população negra, as faculdades de educação, os cursos de licenciaturas em geral têm orientações muito preciosas e importantes e que estão contidas nessas Diretrizes. Destaco que o Artigo 1°, nos seus parágrafos 1° e 2 da Resolução CNE/CP 01 de 2004, normatiza para todas as instituições de ensino superior que tratem das questões étnico-raciais, como forma de superação dos estereótipos construídos pelo racismo, rumo à construção de uma nação democrática.

Nilma Lino Gomes

Quando ministra da mulher, igualdade racial e direitos humanos durante sessão da ONU em Genebra, Suíça
Foto: ONU/Elma Okic

Só que a implementação dessas orientações e normas ainda é muito restrita perto da quantidade de cursos de pedagogia e licenciaturas que temos no Brasil e perto daquilo que já deveríamos ter feito. Porque ao se avaliar a implementação da legislação que originou toda essa discussão, que é alteração da LDB pela lei 10.639/03, nota-se que há uma irregularidade em curso. Temos ações acontecendo e mudanças muito significativas sendo desenvolvidas nos currículos das escolas. Porém, há pesquisas que registram que elas ainda dependem da liderança de uma docente negra ou de um grupo de docentes e/ou gestores e/ou coordenadores negros. Aos poucos, docentes não negros têm se envolvido.

No geral ainda não superamos o imaginário racista de que o trato da questão racial na escola é um dever somente das pessoas negras. Há instituições, cursos, secretarias e profissionais da educação que se negam a cumprir o que determina a Lei 10.639/03 e suas Diretrizes Curriculares ou que o fazem de uma forma muito precária.

Muitas vezes, a formação continuada e em serviço desenvolve mais ações voltadas para as questões étnico-raciais e africanas, na perspectiva da Lei 10.639/03, do que a formação inicial, tais como seminários, projetos, cursos de extensão, de capacitação e de especialização. Mas sabemos que é a formação inicial que prepara profissionais que atuarão nas escolas da educação básica, nas instituições públicas e privadas. Não é possível formar-se como docente, passar a atuar na escola e somente nos processos de formação em serviço tomar conhecimento da obrigatoriedade e da importância da alteração da LDB pela Lei 10.639/03 e, literalmente, aprender como trabalhá-la.


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É possível enxergar as conquistas do movimento negro brasileiro nas ruas e nos ambientes escolares? 

A maior conquista é o fato de a sociedade brasileira, principalmente o Estado brasileiro nas suas normas, Constituição Federal e legislações, reconhecerem a existência do racismo e, em particular, do racismo que incide sobre as pessoas negras. Essa é a principal conquista do movimento negro.

O reconhecimento da existência do racismo vai na contramão do imaginário social brasileiro e das práticas sociais contaminados pelo chamado mito da democracia racial, que é difícil de desconstruir. Esse mito induz a um pensamento equivocado de que houve um processo de escravização mais ameno em relação à população negra quando comparado com outras experiências de escravização dos tempos coloniais. Prega a existência de uma harmonia racial, que já foi desmistificada pela luta antirracista, atestada pelas pesquisas e pela própria vivência do racismo.

Outra conquista do movimento negro é trazer à tona e indagar a branquitude, o que tem provocado mudança de atitude de um grupo de pessoas brancas. A branquitude tem sido enfrentada e muitas pessoas brancas, hoje, começam a perceber que ser branco significa fazer parte de um grupo étnico-racial que sempre esteve nos espaços de poder e goza de inúmeros privilégios em nossa sociedade, justamente, pelo fato de serem brancas. A branquitude anda lado a lado com o poder econômico, político e acadêmico. Ou seja, não são apenas as pessoas negras que têm que lutar contra o racismo. As pessoas brancas também são responsáveis e devem fazer parte dessa luta, bem como outros grupos étnico-raciais que vivem no Brasil. O racismo aprisiona todos e todas e impede a efetivação da democracia. Aos poucos, um grupo de pessoas brancas vem entendendo que é preciso ser antirracista.

Outra conquista do movimento negro é a própria alteração da LDB pela lei 10.639 e todos os desdobramentos legais que essa inclusão possibilitou na educação.

Também entra na lista o princípio das ações afirmativas ser reconhecido como constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em 2012, além de leis como a 12.288/10, Estatuto da Igualdade Racial e a Lei 12.990/14, cotas raciais nos concursos públicos federais. Também posso citar a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em 2003, (extinta pelo governo que foi derrotado nas eleições presidenciais de 2022 e retomada como Ministério da Igualdade Racial pelo atual governo do presidente Lula); e o decreto 4887/03 que regulamenta todo o procedimento para identificação, reconhecimento e titulação das terras quilombolas.

Nilma Lino Gomes

“Não adianta abrir as portas para uma maior inclusão e democratização do acesso e continuar negando o fato de que eles [negros e indígenas] são sujeitos de conhecimento”
Foto: Marcello Casal/Agência Brasil

Há um debate mais forte sobre a questão do genocídio da juventude negra com a produção de dados e pesquisas quantitativas e qualitativas, como o Atlas das Juventudes, Atlas da Violência e o Índice de Vulnerabilidade Juvenil e várias pesquisas do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), os quais comprovam que esse genocídio existe. Isso dá instrumentos políticos para o movimento negro fazer a luta e o debate. E impulsiona o Estado a agir. A educação não pode ficar de fora desse debate.

Uma das formas de combater o racismo é retirar as pessoas negras do lugar de desigualdade, exclusão e negação de direitos em que vivem. Quando esses sujeitos conseguirem ter o direito de estar nos mais variados espaços, lugares e instituições sociais de forma horizontal e usufruindo de todos os direitos, então, será possível dizer que a nossa democracia está avançando e que a sociedade, de fato, mudou radicalmente. Essa é uma demanda histórica do movimento negro, portanto, todas as mudanças positivas nesse sentido, que assistimos nos últimos 30 anos, podem ser compreendidas como vitória desse movimento social. Um movimento que nos reeduca.


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Coletivo feminista, coletivo do cabelo crespo e outros levantes praticamente não existiam – ou não tinham a força que têm – há 15 anos nas escolas e faculdades. Como educadoras(es) podem dialogar com esses movimentos de modo a enriquecer o ensino e aprendizagem?  

Ao olhar as trajetórias das diversas organizações negras desde o século 20, percebe-se que um dos debates travados na luta contra o racismo diz respeito ao fortalecimento da autoestima e da identidade negra. O cabelo é um ícone identitário no processo de construção da identidade negra. Principalmente no terceiro milênio, notamos que foi construído pelo movimento negro um discurso afirmativo sobre o corpo e a estética negra.

O próprio movimento negro trouxe para a sociedade brasileira, desde o século 20, uma crítica aos processos de branqueamento, aos quais as pessoas negras eram (e ainda são) subjugadas. Uma dessas formas é o alisamento dos cabelos. Há uma série de questões complexas envolvendo o debate sobre os padrões estéticos, mas o fato é que para a população negra sempre existiu uma imposição de um padrão estético branco inspirado na Europa Ocidental. Isso resultou, por exemplo, em situações muito dramáticas vividas por crianças, adolescentes e mulheres negras em relação à sua estética, em relação aos seus próprios cabelos.

Sabendo disso, o movimento negro brasileiro inspirado em movimentos como Black is Beautiful, nos Estados Unidos, e nas lutas por libertação dos países africanos, implementou no Brasil a discussão sobre a estética corporal, ou seja, a valorização de todos os sinais diacríticos que nós, pessoas negras, temos e que constituem a nossa corporeidade.

E o que isso tem a ver com a escola e o processo de ensino e aprendizagem? Em primeiro lugar, as professoras e professores precisam saber essa história e o seu significado na luta pela superação do racismo. Esse conhecimento contribuirá na interação com as crianças, adolescentes, jovens e adultos negros, compreendendo a importância cultural, social e identitária dos seus padrões estéticos, principalmente as formas mais criativas de usar os seus cabelos, suas roupas, seus adereços. Docentes poderão interagir pedagogicamente ao discutir essa questão com os estudantes e as estudantes sem associá-la aos discursos preconceituosos sobre a estética negra.

As professoras e os professores podem trabalhar com seus estudantes as mudanças estéticas negras que foram acontecendo ao longo da história do Brasil e o que isso significou para o processo de combate ao racismo, estudar os movimentos estéticos que já aconteceram e ainda acontecem dentro e fora do nosso país como uma das formas, por exemplo, de trabalhar questões da lei 10.639/03.

Destaco que o reconhecimento, o respeito à história, da visão de mundo, da corporeidade e das identidades negras devem ser vistos como um direito, possibilitando um ambiente pedagógico que proporcione uma relação afirmativa e igualitária e equitativa entre estudantes negros e brancos. É possível trabalhar didaticamente o fato de que as culturas devem ser respeitadas, de que todas as pessoas devem ser vistas como sujeitos e colocadas no mesmo padrão de humanidade e de direito.

Podemos partir da compreensão da estética negra, tendo como ícone o cabelo crespo, para rever valores e aproximar professoras, professores e estudantes uns dos outros num patamar de humanidade, de solidariedade, respeito, justiça – que é aquilo que precisamos para que qualquer relação de ensino e aprendizagem seja bem-sucedida.

Escute nosso episódio de podcast:

Autor

Laura Rachid


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