NOTÍCIA

Edição 279

Autor

Laura Rachid

Publicado em 13/09/2021

Educação indígena: escola viva ainda está longe de ser alcançada

Professores indígenas do estado de SP constroem sua própria licenciatura intercultural e agora pedem recursos para a implantação. Já lideranças Tupinambá, da Bahia, e Kaiowá, de MS, apresentam suas conquistas e desafios

Indígenas de diferentes partes do país alegam que por mais que a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) garantam uma educação escolar específica, diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitária, há muitos desafios para que os seus modos de vida sejam respeitados e que seus representantes possa ser, para além de educador, coordenador e gestor escolar.

Levando em conta apenas aqueles que vivem em terras indígenas demarcadas, estão presentes no estado de São Paulo ao menos cinco povos: Guarani, Tupi-Guarani, Terena, Kaingang e Krenak. Por lá, lideranças reclamam que há cerca de 250 professores indígenas (80%) apenas com a educação básica completa.  Só que os jovens estão crescendo e a demanda por ensino médio tem aumentado. “Para dar aula no ensino médio tem que ter formação superior e o estado não dá porque argumenta que nós, professores indígenas, somos registrados na categoria O”, critica a professora indígena Cristine Takuá, do povo Maxakali, MG, mas moradora e professora na Terra Indígena Ribeirão Silveira, entre Bertioga e São Sebastião, SP, onde vivem os Guarani Mbya e Tupi-Guarani.


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A categoria O é via contrato temporário e não abre para concurso público, com isso dificulta para mais indígenas serem coordenadores pedagógicos e vice-diretores. Há alguns indígenas contratados em outras categorias, contudo Takuá alega que a grande maioria está na O.

Desatar nós

Daí a pressão para criar a carreira do professor indígena. Mas com o seguinte labirinto descrito por Cristine Takuá, fica difícil: a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) alega que para a carreira do professor é preciso criar concurso público. Contudo, concurso público só vale para quem tem ensino superior e a maioria dos indígenas residentes em São Paulo não possui e o estado relata ainda que não pode dar a formação por serem da categoria O.

No estado de SP só aconteceu uma formação superior específica para indígenas, entre 2003 e 2008, na USP. Diante de tais impasses, professores e lideranças criaram em 2015 o Fórum de Professores Indígenas do Estado de São Paulo (Fapisp) e em conjunto com o Comitê Interaldeias e parceiros construíram uma licenciatura indígena com um Projeto Político de Curso (PPC) diferenciado e a entregaram à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo em dezembro de 2019, pedindo apoio financeiro. “Criamos um PPC da licenciatura da forma que pensamos que seja bom. Não queremos que a universidade e nem a Secretaria criem um curso da forma como eles querem”, pontua Takuá. Na proposta apresentada à Seduc, os indígenas também colocaram a obrigatoriedade de concurso público e o contrato para cargos administrativos escolares.

O que fala o estado de SP

Marcelo Jerônimo, coordenador da Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação Paulo Renato Costa Souza (Efape), da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, diz que estão em diálogo com o Ministério Público Federal e representações indígenas para juntos definirem uma solução adequada para “atender às solicitações e estruturar e implementar políticas docentes, assim como atender às demandas que envolvem a educação escolar indígena”. A demora, segundo a Seduc-SP, se dá por conta da pandemia, que impactou o planejamento.

O coordenador conta ainda que a pasta está desenvolvendo “um estudo que tem como por objetivo elaborar, para além do curso, um Programa de Formação de Professores de EEI [educação escolar indígena], visando a promoção de políticas docentes que contemplem as etnias de todos os povos aldeados do estado de São Paulo… O estudo contempla a formação inicial (licenciatura) de maneira intercultural e diferenciada, considerando os diferentes perfis dos professores que atuam em escolas estaduais indígenas”.

Diferentes formas de viver

Formada em filosofia, Cristine Takuá reclama que muitos gestores não indígenas não compreendem as prioridades dos povos tradicionais. “Chamo isso de violência institucional, de proibir um professor de sair de sua aula. É uma visão quadrada, querem impor um modelo. Mas professor indígena é liderança e também atua fora da aula, no encontro das mulheres, dos jovens, dos rezadores.”

Outro desafio enquanto professor indígena, explica Takuá, é o de equilibrar saberes de fora com os da aldeia, como o Enem e o mercado de trabalho.

“Não é todo aluno indígena que sonha em fazer faculdade. Escola na aldeia serve para fortalecer nosso modo de ser e existir com a natureza, fortalecer nossa cultura. Por isso venho falando do modelo de escola viva, que não prioriza número, mas saberes sensíveis e em ligação com a cultura. Temos que sair desse espaço e enxergar que escola é cachoeira, casa de reza, todos os caminhos possíveis em que podemos acessar conhecimento. Mas não indígena ainda tem preocupação no livro”, critica Takuá.

É preciso potencializar

Tatiane Klein é doutoranda em antropologia social e pesquisadora dos povos indígenas, com ênfase nos Guarani, há mais de 10 anos. Segundo ela, “o que define o papel da escola nas comunidades indígenas tem que ser os projetos das comunidades e o que temos atualmente é, muitas vezes, as escolas trazendo o mundo e as demandas dos juruá [não indígena, na língua Guarani Mbya] para dentro da comunidade sem ouvir ritmo, iniciativas e temporalidade deles”, diz.

A pesquisadora destaca que aulas de cursos específicos para a realidade indígena, como, por exemplo, uma licenciatura, são também momentos de encontro para discutir problemas, produzirem soluções e fortalecer a comunidade. “A licenciatura que aconteceu na USP foi aceleradora. Todo mundo que passou por esse curso não só saiu ‘bem formado’, mas ajudou a fortalecer as escolas e modelos diferenciados de ensino – e é onde estão os problemas mais graves”, explica. Esses indígenas formados aprendem e inovam em seus modelos de ensino constantemente. “Aprendem a pensar sobre bilinguismo, têm mais capacidade de apoiar sua comunidade na construção de um PPC, de discutir com as secretarias de Educação sobre modelos próprios de ensino”, defende Klein.

educação indígena

José Carlos Tupinambá faz um panorama da realidade baiana
Foto: Pea Unesco

Bahia, cenário um pouco diferente

Fruto também de mobilizações, em 2003 foi criada dentro da Secretaria da Educação do Estado da Bahia (Sec-Ba) a Coordenação Estadual de Educação Escolar Indígena, cujo coordenador é indígena e escolhido pelos próprios povos via Fórum Estadual de Educação Indígena da Bahia, criado na década de 90. José Carlos, do povo Tupinambá, foi coordenador de 2018 a 2021. Saiu para se dedicar ao doutorado em antropologia social pela Universidade de Brasília (UNB).

O antigo coordenador detalha que a Universidade do Estado da Bahia (Uneb) é pioneira no território baiano no oferecimento da licenciatura intercultural para professores indígenas. A primeira turma teve início em 2008, mas a conclusão só ocorreu este ano por dificuldades financeiras, uma vez que aconteceu por conta do programa do governo federal Prolind, que estimula formação superior a professores que atuam em escolas indígenas. Por ser uma universidade estadual e não federal, para a verba chegar, demorou.

Diante desses empecilhos, em 2018 a Uneb conseguiu institucionalizar o curso, colocando assim a formação em licenciatura intercultural e também a pedagogia dentro de sua programação oficial, já oferecendo vestibular específico para os indígenas e com o recurso sendo obrigado a vir do próprio estado. “O Instituto Federal de Educação da Bahia (IFBA), em Porto Seguro, também vem oferecendo licenciatura intercultural”, explica o Tupinambá. Segundo ele, duas ou três turmas já foram formadas e há outras em curso.

Carreira do professor, falta aperfeiçoar

Um ponto positivo baiano é a lei 12.046 de janeiro de 2011, que cria a carreira de professor indígena, no grupo ocupacional educação, do quadro do magistério público do estado da Bahia, e dá outras providências, o que possibilitou a realização do primeiro – e até o momento único – concurso público para professor indígena na Bahia, em 2013. Contudo, os indígenas possuem algumas reclamações sobre a lei, as quais José Carlos Tupinambá, enquanto coordenador, coletou e resume em críticas à formação e salário.

“Os professores indígenas recebem menos de um salário mínimo. Eles recebem por subsídio e não dá, às vezes, condições de avanço horizontal e vertical. A ideia é mudar isso. A SEC criou uma comissão validada pelo Fórum que se debruçou sobre a lei e apontou o que precisa ser mudado. A lei exige que para eles subirem de nível precisam de formação específica em educação escolar indígena, mestrado ou especialização. Mas é difícil você ter no país instituição de ensino superior que oferte somente educação escolar indígena. Os professores indígenas concursados na Bahia estão em diálogo com o estado”, detalha o indígena.

Aliás, José Carlos explica ainda que o concurso público possibilitou que as escolas tivessem gestores escolares indígenas.


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Caarapó, MS, exemplo para outras escolas

Na Escola Municipal Indígena Ñandejara Poló, as crianças do povo Guarani e Kaiowá do pré ao 2º ano do fundamental têm aula totalmente na língua materna – o guarani. Localizada na aldeia Te’yikue, a 20 quilômetros da área urbana de Caarapó, Mato Grosso do Sul, na mesma terra há ainda a Escola Estadual Yvy Poty. Ambas possuem um calendário diferenciado cujas cerimônias tradicionais estão inclusas. Em junho, por exemplo, acontece o Temity Ára (dia das plantas, na tradução). “Nos reunimos na quadra e o nosso ancião, nosso rezador, faz batismo para a plantação”, conta o professor Voninho Benites, do povo Kaiowá.

A Ñhandejara Poló é referência de luta para escolas indígenas de outros municípios por ter sido reconhecida como diferenciada em 1997. Dentro do currículo diferenciado está a atividade de viveiro de mudas, produção de alimento orgânico no sistema de agrofloresta, criação de aves e peixes, um banco de sementes crioulas, dentre outras atividades.

Voninho Benites é formado em licenciatura intercultural indígena com habilitação em ciências humanas.

“Como professores a gente espera que os alunos se tornem líderes para lutar pelos seus direitos. Também esperamos que o aluno seja crítico e líder tanto em agricultura familiar – que a escola apoia muito – como em recuperação ambiental”, explica Voninho Benites.

Diferente do que ocorre em outras escolas, na Ñhandejara Poló, a direção e coordenação é composta por indígenas e há quase 70 professores indígenas. Apenas três educadores, de inglês, português e educação física, são de fora, por falta de formação nessas áreas. Já na estadual, a Yvy Poty, há mais cinco professores indígenas. São cerca de 1.620 alunos da educação infantil ao fundamental e 260 no médio. Na aldeia Te’yikue vivem pelo menos 8 mil Guarani e Kaiowá.

escola indígena

Voninho Benites em atividade junto aos professores e anciões Guarani e Kaiowá
Foto: arquivo pessoal

Trajetória de luta

Em MS há quase 600 professores indígenas com diploma de licenciatura intercultural. Esses números são frutos da persistência de professores indígenas que participaram da primeira turma de magistério Ara Verá (Tempo luminoso, na tradução) e, com mobilizações, conquistaram em 2002 a criação do curso de formação superior específica. Em 2006 veio a licenciatura indígena pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

Seis anos depois, foi instalada na UFGD a Faculdade Intercultural Indígena (FAIND). “Nossas lideranças antigas lutaram para que isso acontecesse com a comunidade, para acontecer formação diferenciada e conseguimos avançar na área da educação”, reconhece Benites.

No Mato Grosso do Sul há um concurso público diferenciado que garante a contratação do profissional da educação indígena. “Nossa escola é escola respeitada. Mesmo com a troca de prefeitos não conseguem mexer na estrutura da escola. Temos garantia de que devem respeitar o nosso projeto político-pedagógico. Quando a gente cobra a autoridade, cobrimos em cima da lei que temos. Outros municípios não; entra prefeito troca tudo”, garante o indígena.

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