NOTÍCIA
Com nível de execução em torno de 40%, na educação básica, Plano Nacional de Educação fará 10 anos este ano sem ter se consolidado como um plano de Estado, além de sofrer com a sucessiva troca de governo
Quando último Plano Nacional de Educação (PNE) foi instituído pela Lei nº 13.005, em 25 de junho de 2014, parecia que finalmente o país havia conseguido amarrar uma agenda nacional, democraticamente costurada, para enfrentar os graves problemas educacionais. Quase 10 anos depois, resta pouco da expectativa inicial. Com nível de execução médio na casa dos 40% na educação básica, depois de atravessar quatro governos e 12 ministros da Educação, o PNE, que nasceu como política de Estado, sucumbiu à dança dos governos.
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“No lançamento do PNE, havia grande expectativa. Afirmava-se que o fato de ter sido criado por uma lei seria o suficiente para transformá-lo em um projeto de Estado. Não foi o que vimos”, afirma Ivan Cláudio Siqueira, do Conselho Nacional de Educação (CNE).
“Nos últimos anos, houve descoordenação, perdemos a capacidade de monitorar muitas metas, ausência no trabalho junto aos entes federativos – e aí veio a pandemia”, lembra Zara Figueiredo, chefe da Secadi/ MEC. Por fim, é preciso virar o disco do eterno descompasso entre metas e orçamentos. “Estabeleceram-se as metas quantitativas arbitrárias, sem políticas públicas especificas para cumpri-las”, arremata Simon Schwartzman, ex-presidente do IBGE.
Agora, é preciso começar a pensar nos próximos 10 anos – sem desperdiçar os muitos avanços, como a própria ancoragem democrática, ressalta Zara.
Em algumas das metas, o cenário pede mudanças mais urgentes, caso da educação profissional. “É fundamental que o novo contemple o avanço da EPT, que tem potencial para mudar a vida das juventudes brasileiras”, afirma Ana Inoue, superintendente do Itaú Educação e Trabalho.
Está aberta, portanto, a temporada de balanços. Mas, não apenas para apontar o dedo para os governos. Os atores civis, como sindicatos, entidades de pesquisa, institutos e fundações, aos poucos deixaram de se orientar pelo PNE, fragilizando o controle social. A revista Educação convidou especialistas para um balanço inicial do plano, com base nos dados do recém-atualizado Painel de Monitoramento, publicado pelo Inep/MEC, plataforma que reúne dados dos indicadores referentes ao cumprimento das metas.
Análise de Bruna Ribeiro, doutora em educação pela USP
“Nas creches, o PNE precisou repetir a meta fixada no Plano anterior, que previa o atendimento de, no mínimo, 50% das crianças de até três anos. Esse dado já nos dá pistas de como a ampliação da oferta do atendimento para essa faixa etária tem caminhado a passos lentos. É urgente e necessário que as políticas públicas reconheçam a importância da oferta qualificada do atendimento nesta etapa. Os bebês e as crianças pequenas são a faixa etária mais vulnerável, e, no entanto, continuam invisibilizadas. Em relação à pré-escola, a universalização não será conquistada. Os dados mais recentes apresentavam inclusive retrocessos na ampliação da oferta a partir de 2019.”
Análise de Alessio Costa Lima, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais (Undime)
“O PNE teve, no geral, e especialmente no ensino fundamental, uma taxa de efetividade muito baixa. Em alguns casos, temos até mesmo uma involução. Não podemos desconsiderar a pandemia, contudo a série histórica nos leva a níveis anteriores a 2014. Precisamos mapear e ter políticas permanentes de busca ativa, buscando a inclusão sob todos os aspectos das crianças que estão fora da escola. A descontinuidade das políticas agrava muito o quadro. Historicamente, o ensino fundamental é terra de ninguém, as responsabilidades de estados e municípios foram estabelecidas de forma dúbia na LDB. Até hoje não há políticas específicas focadas nos anos finais.”
Análise de Eduardo Deschamps, ex-presidente do Conselho de Secretários de Estado da Educação (Consed), membro do Conselho Editorial desta revista
“As metas estão longe de serem atingidas. Entre as explicações deste avanço precário está a falta de um consenso efetivo das mudanças que esta etapa da educação básica deve sofrer, muitas delas propostas pela reforma de 2017 e que até hoje não foram devidamente implementadas. O atual cenário de incertezas sobre sua continuidade fragiliza ainda mais o esforço de evolução necessário. A pandemia e a falta de uma ação efetiva e articulada do MEC com os estados, entre 2018 e 2022, também contribuem para os resultados atuais. Entretanto, mudanças estruturais no currículo, na formação de professores, no uso de novas tecnologias e na ampliação das matrículas de EPT são necessárias para garantir maior engajamento dos estudantes e uma formação mais sintonizada com as competências e habilidades que eles devem desenvolver para sua inserção na sociedade do século 21.”
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Análise de Elisângela Fernandes, coordenadora de produção de conhecimento do Instituto Rodrigo Mendes
“Segundo o Painel de Indicadores da Educação Especial do DIVERSA, chegamos a 2022 com 90% das matrículas de estudantes público-alvo da educação especial em escolas inclusivas na educação básica. É um avanço, se comparado ao cenário de 2014, quando havia apenas 78,8%. Porém, com este ritmo de crescimento, dificilmente será possível cumprir a Meta 4 até 2024. Em 2023, o MEC reafirmou seu compromisso com a educação inclusiva, estabelecendo como meta de governo universalizar as matrículas em classes comuns até 2026. É um esforço que exigirá amplo diálogo e articulação com estados, municípios e sociedade civil. Para o próximo PNE, é necessário aperfeiçoar os indicadores de monitoramento. Isso, sem dúvida, foi um dos grandes gargalos para o acompanhamento do plano atual.”
Análise de Nalu Rosa, vice-presidente da Rede Latino-americana de Alfabetização
“Tratando-se de alfabetização, o caminho importa. Faz diferença como concebemos a alfabetização na escolha do caminho. A investigação didática sobre a alfabetização vem avançando e todo professor tem o direito de saber, estudar, opinar e participar dessa elaboração. O processo avaliativo precisa ser coerente com o caminho realizado. Considerar alfabetização como decodificação de palavras, como junção de fragmentos sonoros, palavras definidas por famílias de sílabas, palavras soltas, entre tantas outras práticas, ainda que ditas trabalharem com texto, é um equívoco. Se os modelos avaliativos estão ultrapassados é porque por trás deles há uma concepção de alfabetização também ultrapassada.
Além disso, há questões de outra ordem. A estratégia 2 parece fomentar o treinamento para realização das provas, prejudicando processos pedagógicos que podem ser mais adequados à aprendizagem. Os sistemas pressionados pressionam escolas e consequentemente os professores. Já há treinamentos em simulados para ter boa classificação. Outra estratégia trata sobre assegurar a diversidade de métodos. Há mais de 40 anos, a querela dos métodos já foi ultrapassada cientificamente. Neste caso, como “Alice no País das Maravilhas”, se qualquer caminho serve, não se sabe aonde ir.”
Análise de Ana Gardennya Linard, gerente de políticas públicas do movimento Todos pela Educação
“Muito se falou da expansão com a publicação da Lei do Tempo Integral, em 2016, mas a meta ainda se encontra bem distante da realidade. Mesmo que alguns estados, por esforço próprio, tenham avançado, ainda precisamos progredir bastante, e para isso é necessário maior apoio do Governo Federal.
O programa lançado recentemente vai estimular a expansão, mas é preciso ter monitoramento de implantação dessa política e metas a curto e longo prazo, planejamento mais robusto e apoio técnico e financeiro do MEC para que se tornem mais exequíveis. É um apoio primordial para secretarias conseguirem implementar políticas. O novo PNE precisa ter olhar qualitativo e quantitativo, ter temas e metas, definir qual orçamento, os responsáveis, para que haja monitoramento e responsabilização.”
Análise de Zara Figueiredo, chefe da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão do MEC
A Meta 7 diz respeito à busca de qualidade da educação, mas existe um equívoco de saída, que é o caput da meta, relacionada ao Ideb. Não se trata de ser contrário ao Ideb, mas é uma visão limitada porque desconsidera contextos, níveis socioeconômicos, aspectos raciais, étnicos. Trata-se da meta que mais estratégias tem, mas elas não conversam com a própria meta e não têm densidade para induzir as redes para avançar na qualidade.
Sem definição sólida do que é qualidade, dificilmente se consegue traduzir isso em metas e estratégias, nem indicadores para induzir políticas. Não podemos cometer os mesmos erros no novo PNE. É preciso ter metas de equidade para educação indígena, quilombola, EJA, educação especial, do campo, tudo isso precisa estar bem-posto, com metas e submetas para induzir programas e ações nos territórios e monitorar as políticas aprovadas nas conferências.
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Análise de Ana Lúcia D´Império Lima, responsável pela coordenação do Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional)
“A Meta 8 olha para a população de 15 anos ou mais, priorizando os que vivem em regiões com menores níveis de escolaridade, na zona rural ou entre os 25% mais pobres. Visa ainda eliminar a desigualdade educacional entre brancos e não brancos. A Meta 9 busca promover a queda do analfabetismo e os avanços da proporção de brasileiras e brasileiros funcionalmente alfabetizados.
Os indicadores vinham mostrando minguados avanços. Em ambos os casos, essas tendências traduziam apenas a ampliação do acesso e da escolaridade média das crianças e adolescentes que, vegetativamente, chegavam à idade adulta tendo passado mais tempo na escola do que as gerações que os antecederam. Nem poderia ser diferente, dada a fragilidade das iniciativas que buscam assegurar aos jovens e adultos deixados à margem do sistema educacional a oportunidade de participar com dignidade da sociedade letrada. Os indicadores não apenas não avançaram, mas podem vir a piorar no futuro.”
Análise de Roberto Catelli Jr, coordenador do Programa Educação de Jovens e Adultos da Ação Educativa
“É muito flagrante o fracasso dessa meta. Embora exista um discurso empresarial que considera a educação profissional uma solução para a inclusão de tantos brasileiros, não existe um correspondente investimento. As redes públicas não estão equipadas; a formação de professores para essa prática nem existe. Há também um problema de conciliar horas. Não se pode sucatear o currículo da educação básica em nome da formação profissional. O que o aluno de educação profissional mais precisa é de uma boa formação geral. Esse é o que tem maior empregabilidade. Se não é um leitor, não tem o mínimo de habilidade matemática, não tem pensamento mais autônomo, não adianta ter formação profissional. Outro aspecto é o do mercado de trabalho. Há muita propaganda sobre curso técnico, mas, salvo alguns nichos, temos pouca oferta ou com salários insuficientes, inadequados para quem já conseguiu avançar em qualidade e tem expectativa de também avançar em carreira.”
Análise de Simon Schwartzman, sociólogo, ex-presidente do IBGE
“Entre 2015 e 2022, o ensino técnico de nível médio cresceu 12,3%, muito longe da meta de triplicar. A outra meta é que metade da matrícula deveria ser no setor público. Em 2015, já era 54%, e em 2022 era 58%. O segmento que cresceu mais no período foi o de alguns estados — São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais, Ceará e Rio Grande do Sul. O que ocorreu foi que não houve nenhuma política específica do governo federal para esse setor. A legislação brasileira sobre o ensino profissional até a reforma de 2017 dificultava muito o crescimento deste setor, porque o aluno que quisesse fazer o ensino técnico teria de fazer também todo o ensino médio tradicional. A lei de reforma de 2017 procurou alterar isso, criando uma trajetória separada para o ensino profissional, mas, como sabemos, a lei não chegou a ser implementada, e agora está sendo revista.”
Análise de Cléa Ferreira, doutora em educação, pesquisadora e consultora nas áreas de currículo, políticas públicas e formação de educadores
“Houve um incremento na formação de professores com nível superior, mas ainda existem lacunas em áreas específicas e em regiões mais remotas do país. Estamos ainda longe dos 100% almejados e, no caso de algumas carreiras específicas e áreas rurais, a situação é bastante grave. Uma discussão importante que tem sido feita é sobre a qualidade dessa formação, pois a licenciatura tem sido ofertada, predominantemente, em cursos a distância.
Houve avanços no incremento salarial para equiparar o rendimento médio dos professores ao dos profissionais com igual escolaridade. O indicador melhorou, mas isso pode se dever mais à redução do rendimento mensal dos demais profissionais do que a um incremento do rendimento dos docentes.
Quanto à meta 18, avançamos em termos de plano de carreira em todas as esferas, mas não atingimos a universalização nos municípios. No que tange ao cumprimento do piso salarial e do limite máximo de 2/3 da carga horária de interação com os estudantes, ainda estamos com muitos passos a avançar.”
Análise de Nilma Lino Gomes, ex-ministra das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, professora titular da UFMG
“A gestão democrática é prevista pela Constituição, pela LDB, está no PNE e está ligada à ideia de educação como direito. Essa gestão democrática deve ser entendida dentro de um escopo maior, a participação social efetiva daqueles que compõem as instituições educativas. Participar significa acompanhar todos os processos educacionais, sociais, burocráticos, decisões que acontecem dentro da instituição escolar. Significa também deliberar, decidir coletivamente e pensar que essas decisões devem ser para garantir cada vez mais os direitos educacionais. Não podemos esquecer que nesse ponto estamos falando de financiamento, transparência, controle público da população. É mais do que escolher gestores e gestoras, diretores e diretoras.”
Análise de Ernesto Faria, economista e diretor executivo do Instituto IEDE
“O Brasil teve um período difícil em relação à priorização de investimentos em educação no governo Bolsonaro. Somado a isso, a pandemia claramente trouxe muitos desafios. Por isso, não estamos perto de atingir a meta. Mas, ainda mais importante é buscar uma lógica que traga mais equidade no investimento. Há avanços no novo Fundeb, mas ainda temos de fazer muito mais em favor das regiões menos ricas do país. O Plano de Ações Articuladas (PAR) e os regimes de colaboração União-estados-municípios também precisam ser fortalecidos.”
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