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Alexandre Le Voci Sayad

Alexandre Le Voci Sayad é jornalista, educador e escritor. Mestre em inteligência artificial e ética pela PUC-SP e apresentador do Idade Mídia (Canal Futura)

Publicado em 25/09/2023

O ‘celular-papão’ e outras fábulas reais

A recente proibição de celulares em sala de aula por alguns países coloca em dúvida o protagonismo da escola e da família ao absterem-se de educar em questões eminentes, como essa

A economia da atenção, conceito desenvolvido pelo economista Herbert Simon ainda na década de 1970, é um aspecto da vida contemporânea. Nossa escassa capacidade de concentração dissipa-se entre um oceano de plataformas, telas e informação. Se prestar atenção é difícil na vida adulta, imagine então no universo infantil. Esse tem sido o argumento central de algumas políticas educacionais de Estado recentes, que têm como foco o aparelho celular, que passou a ser banido total ou parcialmente na escola (dentro da sala de aula ou em algumas disciplinas) para evitar a distração ou falta de socialização dos estudantes.


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O debate merece a atenção porque as leis entraram em vigor em países europeus cuja legislação educacional se mostrou sempre progressista, como França, Letônia e distritos de cidades norte-americanas, mas também em ditaduras de Estado como China (o que surpreende menos). 

Difícil argumentar contra a nocividade dos aparelhos sociais na infância — autênticos vilões, ou ‘bichos-papões’ dos nossos tempos. Basta adentrar alguma escola e perceber que, se há celular, não há interação entre pessoas; isso sem contar as estratégias de plataformas na busca de atenção dos usuários, que encontram um alvo mais frágil em crianças e adolescentes, além do acesso, muitas vezes sem filtro, a conteúdo inadequado. Trata-se, portanto, de uma fábula real cujo aparelho engole pessoas e junto suas infâncias, deixando famílias e professores a ver navios. 

Infância e celular não combinam. Mas abro aqui uma provocação quando tratamos da mesma proibição a adolescentes a partir dos 15 anos.

Há algumas décadas, o alvo era o aparelho de televisão, o conteúdo por ele transmitido, por ser a mediação ‘da vez’ entre estudantes e o mundo. A escola e os pedagogos, ancorados nas críticas do consumo de cultura de massa de pensadores oriundos da Escola de Frankfurt, como Adorno e Horkheimer, preferiram defenestrar a refletir com os estudantes sobre ele. O resultado é bem palpável hoje: adultos pouco críticos ao que consomem nas telas dos celulares e muitas vezes viciados em tecnologia. 

A escola se abster de debater com a comunidade o uso de celular em seu ambiente me parece o pior caminho. Imediatista, a ação pretende resolver o problema da escassez da atenção por meio de uma ação intimidadora. À primeira vista, ela repete erros do passado ao simplesmente não permitir a entrada da realidade dentro dos muros da escola, que pretendem preservar uma espécie de utopia. 

No entanto, as propostas mais modernas de matriz curricular, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), propõem colocar a cultura digital, a expressão do estudante e suas questões, como centro da aprendizagem — e não as paranoias do mundo adulto. O fato é que os celulares passaram de mocinhos a vilões muito rapidamente. Até há alguns anos, educadores que planejavam atividades utilizando o celular eram dignos de prêmio; a ideia de BYOD (Bring Your Own Device) prevaleceu dentro da cultura maker que muito furtivamente enriqueceu os currículos escolares. Analisando mais detalhadamente os celulares, dentre muitas inutilidades, são parte do que é produzido em termos de cultura e expressão e pelos adolescentes e jovens. 


Escute nosso episódio de podcast:


Há ainda um outro aspecto. É justamente na conjunção dos ambientes familiar e escolar que hábitos como o uso demasiado do aparelho celular devem ser debatidos — mais do que isso, regras devem ser criadas e a educação construída. Grande parte das decisões que clamam por proibição vem das famílias, que não conseguem deixar de adquirir o aparelho para os filhos ou dos professores, que, por sua vez, também não conseguem integrá-los à rotina das aulas. Há uma falência educacional por todos os lados.

Proibir ou abster-se da educação e consciência dos riscos do aparelho celular é sem dúvida o caminho mais fácil, mas não o mais adequado. É justamente no trabalho escola/família, com olhar focado no campo socioemocional, que essa questão deve ser encarada de maneira educativa. Não é fácil, como qualquer ação democrática no locus escolar — mas deve ser desenvolvida.   

Um debate conjunto, com estipulação de regras, aumento do nível de consciência do uso excessivo, exploração dos males, educação midiática para lidar com os conteúdos e ainda a valorização do uso criativo são caminhos úteis e que levam em conta a experiência real dos usuários, os adolescentes e jovens de hoje. Devem-se ainda construir caminhos propositivos, como os novos desenhos de espaços de escolas, que valorizem o encontro de pessoas e disponibilizam um acesso mais fácil às bibliotecas e áreas de estudo. 

O que está em jogo no momento não é comprovar os males que os aparelhos celulares causam à nossa economia da atenção, bem-estar social ou saúde — há inúmeras pesquisas que já provam que a fábula do ‘celular-papão’ é real. Há sim a necessidade de construirmos modelos de convívio entre família e escola que se mostram eficazes em lidar com questões cotidianas, como a tecnologia, que não sairão do horizonte jamais. Ontem foi a televisão, hoje é o celular e é possível afirmar que num futuro breve serão as realidades imersivas com uso de inteligência artificial. A sensação de alívio imediato no ato da proibição pode gerar o desconforto maior de uma futura geração de adultos que — ao não serem coibidos — tornam-se usuários pouco críticos e, de fato, incapazes de lidar com uma espécie de vício digital, tal qual as famílias se comportam, de fato, hoje. 

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