NOTÍCIA
Movimento cresce com a obrigatoriedade na educação básica, mas está longe de oferecer uma formação estética e sociocultural aos alunos
Vamos chamar o vento
Vento que dá na vela
Vela que leva o barco
Barco que leva a gente
Gente que leva o peixe
Peixe que dá dinheiro, Curimã
Vamos chamar o vento
Vento que dá na vela
Vento que vira o barco
Barco que leva a gente
Gente que leva o peixe
Peixe que dá dinheiro, Curimã
(Música de Dorival Caymmi)
O mesmo vento que leva, que possibilita o trabalho e que alimenta, também é o risco de morte. E é com isso que o homem vive todos os dias. A música de Dorival Caymmi, compositor baiano, lançada em 1949, fala de um pescador que mesmo considerando o risco da tragédia (Iemanjá é a entidade para a qual confia sua vida antes de partir), enfrenta o perigo, precisa do peixe para sobreviver.
A canção foi o tema da aula de música do professor Heber Ramos Sanches, licenciado em artes e música pela USP, para o fundamental 1 do Colégio São Luís, em São Paulo. A intenção foi levar os alunos a refletirem sobre o momento histórico relatado por Caymmi e fazer um paralelo com a atualidade. Ao perguntar aos alunos e alunas se conheciam alguma profissão que trazia o mesmo perigo de morte na busca pelo sustento, estes enumeraram algumas profissões, como policiais, enfermeiros e motoboys.
Leia também
Caravana MusiLibras percorre o Nordeste ensinando música a surdos
A geração de crianças mudas e que não sabem se comunicar
Outra discussão emergiu ao notarem nas fotos apresentadas pelo professor que a maioria dos pescadores era negra, assim como os motoboys, policiais de baixa patente e soldados que enfrentam as ruas. “Será que continuamos a entregar o risco de morte às pessoas que consideramos ter ‘menos valor?”’, suscitou o professor, especializado em metodologias ativas pelo Instituto Brasileiro de Formação de Educadores (IBFE). “O médico, no hospital, tem menos risco de contaminação do que uma enfermeira, que lida com pacientes no ambulatório, faz curativos e aplica injeções todos os dias. Que cor é o médico? E a enfermeira?”
Como curiosidade, Heber destaca que as crianças perceberam, admiradas, a mesma dinâmica na sociedade que Dorival Caymmi cantou no início do século 20 com a atual.
“A música na escola pode ensinar crianças e jovens sobre a sociedade na qual estão inseridos. Sobre o que existe de importante no histórico-social e que foi construído ao longo do tempo. Esses alunos e alunas ganham um arcabouço cultural, intelectual e filosófico para que na vida adulta possam interferir na sociedade positivamente”, declara o professor, que também é criador de oficinas de formação musical na Fundação Bachiana em São Paulo.
“Esse trabalho ajuda a criança e o jovem a não servir ao sistema enquanto consumidor de maneira vazia, que é o que ocorre na maioria das vezes – grande parte do cinema que absorvemos é norte-americano e isso construiu nossos desejos de status e consumo. Tudo o que desejamos ser foi visto em alguma princesa da Disney, ou herói da Marvel ou DC Comics, efeito de um mercado que deseja estabelecer um modo de vida específico”, discorre Heber.
Inúmeros benefícios são reconhecidos pela neurociência sobre o ensino da música para crianças e jovens, desde a potencialização das aprendizagens emocionais, cognitivas e sociais até o desenvolvimento da própria estrutura cerebral. É preciso ressaltar que a presença da música nas salas de aula não pretende formar instrumentistas, mas dar formação cultural aos alunos. O próprio Ministério da Educação (MEC) recomenda que alunos conheçam a diversidade cultural do Brasil.
Em 2008, a lei nº 11.769 estabeleceu a música como conteúdo obrigatório na educação básica. E em 2016 houve uma ampliação dessa lei, com a intenção de promover a arte, que incluiu, além da música, artes visuais, dança e teatro no currículo das escolas (lei 13.278).
Mauricio Braz de Carvalho, licenciado e mestre em música e educação musical e doutorando em educação pela Faculdade de Educação da USP (Feusp), esclarece que o ensino da música passou muito tempo engessado, com aulas maçantes e mecanicistas e que ignoravam o que os alunos sentiam e o que podiam criar em termos de música.
Mauricio, que atua como professor na educação básica há 14 anos, explica que as escolas que colocam a música instrumentalizada a serviço de eventos, como o Dia dos Pais, Páscoa, festa de final de ano, ‘que adestram as crianças’ (inculcação de hábito), dispõem a música para a hora do lanche, para fazer fila e escovar os dentes, utilizam práticas empobrecedoras do ponto de vista formativo.
“A aula de música deve propor a ampliação de horizontes, o desenvolvimento da percepção estética, o aumento da capacidade de escuta, da expressão da criança por meio dos sons, o entendimento dos sons do ambiente, a compreensão de obras historicamente produzidas por diversas culturas. Para alcançarmos isso em todas as escolas do Brasil, muitos desafios precisam ser vencidos”, aponta Mauricio.
Aos poucos surgem escolas que reconhecem a música como área específica, com demandas próprias, que exige um professor licenciado na área, capaz de proporcionar aprendizagens essenciais e que tenha um olhar especial sobre a música. Assim vão surgindo nas escolas as salas de música com um número razoável de instrumentos para o professor trabalhar, o que resulta em uma importante conquista.
Uma das dificuldades é a carência de bibliografias organizadas para ensinar música para crianças e jovens. Não há, no mercado editorial brasileiro, textos de referência da cultura popular brasileira escritos para crianças, aponta Heber. Há bons livros, mas nenhum com profundidade e fatos históricos reais que enriqueçam o trabalho na escola. “Nos tornamos autores de nossas próprias aulas”, conclui.
Mateus Moraes Lago é licenciado em música, mestre em artes pela Universidade Federal da Bahia e professor de música numa escola pública para crianças de quatro e cinco anos no município baiano Dias d’Ávila. Ele conta que numa aula notou um aluno cabisbaixo e tristonho. O motivo: a criança não havia comido nada naquele dia. ”Música é essencial, mas quando me deparo com essa situação me questiono sobre a razão de fazer música na sala de aula se a criança não tem nem o que comer”, lamenta o professor, que desde que chegou à escola, há seis anos, encara situações delicadas no seu dia a dia.
Mateus trabalha com 40 crianças pequenas, sem assistente de sala e sem instrumentos, o que requer criatividade e equilíbrio emocional. Com um pandeiro velho que encontrou na escola, pedaços de madeira que usa para produzir sons e com o violão que traz de casa, ele se desdobra para dar aula.
Leia também
Folclore nacional: o Brasil merece o Brasil
“A escola pública cobra os conteúdos e as habilidades que devem ser trabalhados. Mas na sala de aula a criança não irá desenvolver, pois a escola não oferece meios, não tem estrutura. A Secretaria de Educação cobra o planejamento, mas não garante as condições para que seja executado”, argumenta. “Há dias em que não consigo dar aula e saio frustrado. Busquei ajuda psicológica e de amigos, mas sei que o problema não sou eu, pois sou um bom professor.”
Mateus conta que, em virtude da pandemia da covid-19, muitos alunos que ficaram sem aula e hoje estão no 3º ano do ensino fundamental 1 não estão alfabetizados – segundo ele, ritmos musicais e instrumentos ajudam no processo de alfabetização.
Seres humanos possuem uma memória afetiva com a música. Há quem ouça uma canção e sinta o cheiro de um perfume ou recorde uma cena, ou até quem chore por lembrar-se de alguém. Segundo Heber Sanches, essas memórias afetivas são subjetivas, não têm relação com uma formação estética, portanto, não é com isso que o professor deve trabalhar. Heber acredita que na escola deve-se aplicar tudo que será útil durante a vida e isso é educação estética.
“Você ensina o aluno a ouvir, a dar-se conta de como o discurso musical acontece. Ele vai usar essa habilidade ao ouvir qualquer repertório e aprenderá a identificar o que num determinado gênero é significativo.”
Uma canção é o acompanhamento de um instrumento e uma melodia. Se a criança aprende a ouvir essa textura, os dois elementos que se sobrepõem, ela conseguirá alcançar com qualquer canção e gênero, esclarece Heber.
Para Mauricio, que realizou em 2020 estudos e pesquisas no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, em Portugal, não faz sentido a criança vivenciar na aula de música o que faria em outro contexto. O sentido na escola é proporcionar experiências que em outros lugares não seriam possíveis. “O grande desafio é que a escola promova uma formação que amplie os horizontes da criança”, afirma.
É fundamental apresentar aos alunos a variedade de ritmos populares brasileiros, como o baião, frevo, maracatu e a ciranda. Assim como ritmos e estilos de outras culturas, como a música clássica, erudita, europeia, partitura, flauta doce, que possuam aprofundamento estético, ou seja, deve-se unir qualidade e variedade. Mostrar ao aluno que há pluralidade de estilos, ritmos e possibilidades instrumentais, harmônicas, melódicas e rítmicas. Outro desafio é acolher as preferências musicais da criança, as referências familiares que ela traz e ampliar seu olhar, construir novas pontes, fazer links para outras direções e novas paisagens musicais, sonoras e culturais, que em casa, sozinha, ela não faria, instrui Mauricio, que também é professor de música do Colégio Oswald de Andrade, em São Paulo.
O campo da música tem clareza do que não quer mais e isso é uma grande conquista. Está ciente de que não quer mais ser preconceituoso, centrado num único repertório europeu, branco, não pode mais negligenciar as culturas populares, nem estabelecer uma prática musical em que o aluno não se coloca e não tem voz. “Já sabemos o que não queremos mais, agora cabe ao campo da educação musical estabelecer diálogos e debates sobre o que é valoroso e imprescindível, quais conhecimentos musicais devem compor o currículo da escola, quais estilos e compositores que os alunos têm o direito de conhecer”, direciona Mauricio.
Um professor de literatura, português, matemática, história fala com facilidade dos conceitos que qualquer aluno no Brasil tem o direito de conhecer. Um professor de música não tem facilidade para responder sobre conceitos, temas, estilos, repertórios ou compositores que ele considera imprescindíveis, porque o campo da música ainda não tem clareza sobre isso.
“A desigualdade social do Brasil, neste momento, assim como em qualquer outro contexto, se faz presente: as escolas mais estruturadas, que têm professores com formação profissional, estrutura física propícia, são aquelas que possuem um momento musical de forma sistemática e mais consistente”, finaliza Mauricio.