NOTÍCIA

Ensino Superior

Autor

Sandra Seabra Moreira

Publicado em 07/12/2022

Com poucos professores negros, faculdades não possuem programas antirracistas consistentes

“Muitos alunos negros me procuram para dizer o quanto é importante que eu seja professora deles, por eu ser uma mulher negra e que defende essa pauta. Há os que nunca tiveram um professor negro antes”, diz a jornalista e professora Márcia Maria da Cruz, […]

“Muitos alunos negros me procuram para dizer o quanto é importante que eu seja professora deles, por eu ser uma mulher negra e que defende essa pauta. Há os que nunca tiveram um professor negro antes”, diz a jornalista e professora Márcia Maria da Cruz, única pessoa negra do departamento de jornalismo da Faculdade Promove, em Belo Horizonte (MG). Ela deu aulas na UFMG, na PUCMG e conta que sempre esteve entre os pouquíssimos professores negros dessas instituições.

“Isso acontece nas universidades públicas e privadas. É uma lacuna real que existe no ensino superior de maneira generalizada.”
professores negros
Márcia Maria da Cruz: “a falta de professores negros é generalizada no ensino superior” (foto: divulgação/Ensino)

Rubens Campos e Rita Donato também são professores da área de comunicação social e trabalham na UniSant’Anna, na capital paulista. “Quando comecei a lecionar no ensino superior, em 2007, contava nos dedos quantos professores pretos havia. Num universo de 120 professores, mal chegava a dez pessoas pretas; não autodeclaradas, mas aquelas que se via, que se podia contar. Por um período, aumentou esse número, mas ainda pouco. Depois da pandemia, o número caiu. Hoje em dia, continuo contando nos dedos”, fala Campos. Rita também é professora na Universidade Metodista de São Paulo e atesta o mesmo cenário nas duas universidades.


Leia: Escolas de elite querem desnaturalizar o racismo


De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Semesp, Márcia, Campos e Rita compõem os 22,6% de professores que se declararam negros ou pardos nas instituições de ensino superior privadas do País, em 2020. Na rede pública, o percentual é de 24,7%. A percepção dos professores entrevistados é a de que, em suas instituições, esse percentual é mais baixo. Eles também atestam que não há atividades ou iniciativas significativas voltadas às questões da diversidade étnico-racial. Campos comenta a existência de uma disciplina eletiva voltada ao tema: “No dia da prova, a sala estava vazia”. Também acontecem palestras eventuais. Rita menciona atividades desenvolvidas próximo ao dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Não há nas IES, de modo geral, a consciência da necessidade de ações antirracistas efetivas.

Para Campos, a invisibilidade ou pouco interesse no tema tem a ver com o incômodo que ele causa

Ele cita Laurentino Gomes, em especial o Volume III da trilogia Escravidão, para entender o Brasil. “Ali o autor escreve que, a partir do século 19 até os anos 30, o País assumiu de vez uma cara, e é a que ficou até hoje: acabou a escravidão, mas os negros devem se manter no mesmo lugar. Essa forma de pensar em relação ao negro não mudou. O racismo está na cabeça das pessoas, no dia a dia, no comportamento das instituições.” Apesar disso, ele diz, houve melhora nos últimos anos em relação ao contexto que perdurou ao longo do século 20. E, apesar de o tema incomodar, ou justamente por isso, a discussão acerca do racismo precisa existir.

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Para Rubens Campos, o tema “incomoda” (Foto: arquivo/Revista Ensino Superior)

Uma mudança importante em curso é o aumento de estudantes pretos e pardos no ensino superior. De acordo com pesquisa do Instituto Semesp, o percentual de alunos matriculados no ensino superior brasileiro que se declararam pretos ou pardos chegou a 45,7%, segundo dados de 2020, sendo 44,8% na rede privada e um pouco mais na rede pública, 48,8%. Em 2015, esse percentual era de 41,6%, portanto, houve aumento de quatro pontos percentuais. É o resultado das cotas nas universidades públicas e programas como Prouni e Fies nas universidades privadas. Esses alunos buscam referências, inspiração, identificação.

Rita está cursando o doutorado e seu tema é o empoderamento da mulher negra

Ela conta que passou por processo de transição capilar, parou de alisar os cabelos e os deixou crespos: “por causa do cabelo crespo, é diferente a forma como os alunos me percebem e aceitam. É muito nítida a identificação das meninas negras comigo. Percebo que, pelo menos na área da comunicação, há muitas meninas negras se posicionando, ocupando espaço. Elas se aproximam e buscam questões fora da sala de aula”. Há o aumento no interesse dos alunos em relação às questões da diversidade étnico-racial: “penso que os alunos confiam mais quando é uma pessoa negra falando”, afirma Rita. Novas epistemologias e conhecimentos mais próximos das perspectivas desses estudantes são a grande mudança, opina Márcia.

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Rita Donato é professora na Universidade Metodista de São Paulo
(Foto: arquivo/Revista Ensino Superior)

Leia: Educação indígena: escola viva ainda está longe de ser alcançada


Permanência na vida acadêmica

Na Metodista, a maioria dos alunos bolsistas é negra, conta Rita. Eles não conseguem sequer estagiar: “Eles trabalham em supermercados, por exemplo, em entregas, e não podem abrir mão de seus ganhos”. Alexsandro Santos, professor de mestrado e doutorado nos programas de pós-graduação em educação e no mestrado profissional em formação de gestores, da Universidade Cidade de São Paulo (Unicid), liderou pesquisa no Centro de Estudos e Memória da Juventude, acerca da lei de cotas, com enfoque racial. É fato que a implantação das cotas promoveu um avanço no acesso de pessoas negras à graduação, mas ele detalha:

“Isso resolve uma parte do problema, a segunda parte é justamente a permanência desses estudantes na graduação e na pós-graduação”.
Alexsandro Santos, professor de mestrado e doutorado (Foto: arquivo/Revista Ensino Superior)

A garantia de permanência desses estudantes na graduação passa por três eixos de ação, de acordo com Santos: “Apoio financeiro, com bolsas de permanência remunerando estudantes pobres e negros, que podem estar vinculadas a prestação de serviços ou realização de atividades acadêmicas. O segundo eixo de ação é a criação e o fortalecimento, dentro das IES, de setores dedicados a fazer a escuta sensível e a propor políticas para o acolhimento desses estudantes e enfrentamento das situações de racismo estrutural que ainda acontecem dentro da universidade. São núcleos de diversidade, de estudos afro-brasileiros, que tenham o poder de propor medidas para a IES se corrigir. O terceiro eixo é apostar nos estudantes negros para que possam se tornar professores, um olhar atento para esses alunos no recrutamento das IES, uma espécie de banco de talentos com ações afirmativas”.

Na pós-graduação, Santos aponta dois movimentos simultâneos que incentivam as instituições a contratar professores negros:

“A pauta da diversidade racial foi assumida nas estratégias da alta gestão das organizações. No caso da Unicid, em particular, há metas específicas para ampliar a diversidade racial. Eu percebo esse aumento, mas é um processo muito lento. Outra questão é que os critérios de avaliação da Capes têm exigido compromissos dos programas de pós-graduação, por exemplo, o percentual de professores negros no programa é uma métrica”.

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Leia: Laurentino Gomes dá uma aula sobre como a escola deve abordar a escravidão

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Há, entretanto, fatores que continuam impondo barreiras para a ascensão na carreira acadêmica

“Na área da educação, formamos muitos mestres e doutores negros, mas, nos processos de seleção e contratação, as exigências de produção acadêmica para se manter no mercado impactam muito a desigualdade racial no Brasil. De um lado, tem o que Cida Bento chama de pacto narcísico da branquitude, que ainda opera nas IES. Por outro lado, há a dificuldade das pessoas negras de responderem às exigências meritocráticas da pós-graduação. Vou dar um exemplo: nenhum programa hoje contrata para dar aula na pós-graduação alguém que não tenha artigo publicado em uma revista classificada como A1. Publicar numa revista dessas requer um tempo para produzir pesquisa e custa caro para quem não está empregado, então, disputar vaga implica para além do título de doutor, que é só o primeiro passo.”

Entre as ações afirmativas que podem realmente mudar esse cenário, Santos aponta o programa de pós-doutoramento para pesquisadoras negras brasileiras, da Universidade de São Paulo (USP), que este ano distribuiu três bolsas de pós-doutorado no valor de R$ 8.479,20.

Editais para contratação de professores negros também contribuem

Por exemplo, o Grupo Ânima, com 18 mil educadores, 18 instituições de ensino superior e mais 570 polos educacionais, já lançou dois editais neste ano para contratação exclusiva de professores negros. “Cerca de 50% da população brasileira é negra. Nossa intenção é chegar a isso no quadro de professores. Há uma demanda dos estudantes negros e há um reconhecimento nosso da importância dessa presença, é um preceito pedagógico da Ânima. Contratamos 100 professores esse semestre e não facilitamos em nada, não baixamos a régua para contratá-los”, diz Kika Gomes, diretora de desenvolvimento organizacional.

Kika diz que não é uma ação fácil e atesta a resistência de parte da instituição. “Professores negros que já estavam aqui, supergabaritados, apoiam os que estão chegando.” Para abrir o diálogo, um grupo de discussão sobre as relações étnico-raciais se reúne semanalmente, com a participação de pessoas de diferentes áreas e hierarquias e também é responsável pelas ações afirmativas.

(continua…)

*Esta matéria foi publicada originalmente pela revista Ensino Superior e escrita pela sua editora, a jornalista Sandra Moreira Seabra. Leia o conteúdo completo no site da Ensino: clique aqui.

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