NOTÍCIA
Diretrizes Curriculares para a formação de professores ganham nova versão. Documento é ponto sensível para diferentes grupos políticos e, mais do que isso, para a educação brasileira
Publicado em 14/05/2024
É possível que no momento em que você esteja lendo este texto a caneta do ministro da Educação, Camilo Santana, já tenha grafado sua assinatura na resolução decorrente do Parecer 04, de 2024, do Conselho Nacional de Educação (CNE). Como muitos documentos legais, a designação do assunto do que ele trata não escapa à regra de um título longo: Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior de profissional do magistério da educação escolar básica (cursos de licenciatura, de formação pedagógica para graduados não licenciados e de segunda licenciatura).
Caso o ministro tenha homologado o parecer, este poderá preencher uma lacuna de quase uma década com relação à concepção dos cursos de formação inicial de professores no Brasil. Isso porque, depois que a resolução 1, de 2002, do mesmo CNE, foi homologada pelo então ministro Paulo Renato Souza, as tentativas de mudança na formação inicial foram frustradas pela forte fricção política existente no campo educacional. Até o fechamento desta reportagem, a assessoria de imprensa do Ministério da Educação (MEC) não passou previsão da data de homologação do parecer. Antes da aprovação do parecer pelo CNE, em 12 de março, ele foi submetido a consulta pública para colher sugestões, processo feito mediante o envio de e-mails.
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Sob a relatoria dos conselheiros Amábile Pacios, presidenta da Comissão, de Luiz Curi, também presidente do Conselho Pleno do CNE, e de Márcia Sebastiani, imagina-se ter chegado a um consenso que só o tempo poderá ratificar. Segundo a professora Pacios, também presidente da Câmara de Educação Básica, houve um trabalho conjunto entre os membros da comissão e das secretarias de Educação Básica e Executiva do Ministério da Educação, de forma a tornar o documento menos inóspito para, principalmente, os representantes das universidades públicas. “O setor privado já havia implementado a Resolução 2/2019 sem grandes ruídos. Mas ela não teve aderência entre as públicas, que avaliaram que a formação estava muito pautada pela Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Esperamos que esse parecer seja homologado para finalmente estabelecer bases de formação”, diz a presidenta da Comissão.
A BNCC, como se sabe, é o documento que pauta a formulação dos currículos de todos os ciclos da educação básica (educação infantil, ensino fundamental 1 e 2 e ensino médio). Ela não dá tratamento específico à Educação de Jovens e Adultos, questão que resta sem atenção e análise adequada, algo preocupante quando se sabe que mais de 9 milhões de jovens entre os 15 e os 29 anos são elegíveis para a modalidade.
No que tange à distribuição de horas entre os quatro núcleos discriminados no processo formativo (ver quadro), foram atribuídas cargas específicas para os cursos de graduação em licenciatura, os de formação pedagógica para bacharéis e tecnólogos e, finalmente, para as segundas licenciaturas.
Há quem prefira esperar pela homologação, inclusive para deter-se mais a fundo sobre o conteúdo do documento. Membro e ex-presidente do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, Bernardete Gatti mantém essa precaução. “As licenciaturas estão ao léu, não há legislação vigente. No Conselho Estadual, temos nos pautado por nossa resolução 154, de 2017.” Essa resolução buscou uma composição entre o Parecer 2/2015 e uma deliberação estadual (111/2012) para nortear os cursos de formação no estado. Um ponto já presente naquele parecer e também na atual resolução é o aumento do mínimo de horas de formação para 3.200, num mínimo de quatro anos.
Após a aprovação das diretrizes para a formação de 2002, apenas os cursos de pedagogia ganharam nova normativa, em 2016. Mas uma série de questões se somaram para que o documento de 2002 fosse alvo de revisão. A universalização do acesso ao ensino fundamental, a expansão dos cursos de licenciatura em faculdades privadas, as grandes mudanças tecnológicas ocorridas nas últimas décadas e, por último, a permissão — por muitos considerada grande permissividade — para o funcionamento dos cursos de educação a distância, indicavam que a realidade da escola e, por conseguinte, de sua figura central, o professor, havia mudado.
Não à toa, praticamente tudo que se discute sobre a educação no Brasil — seja a alfabetização, a inclusão, a atratividade do ensino médio ou o fraco desempenho em matemática, por exemplo —, acaba mencionando como uma de suas vias de reestruturação a formação de professores, inicial ou continuada.
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O vácuo maior vem desde o começo da década passada, quando muitos educadores trabalharam em uma nova legislação, que resultou na Resolução 2/2015, homologada por José Henrique Paim no governo Dilma Rousseff, com apoio de várias associações nacionais que reúnem professores de universidades públicas, por exemplo, a Anped (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação). No geral, eram entidades ligadas aos governos de esquerda, petistas ou não.
Com o impeachment ou golpe (de acordo com o gosto do freguês), o Conselho Nacional de Educação teve sua composição bastante alterada, passando a responder a uma agenda mais identificada com educadores historicamente ligados ao PSDB. Na visão destes, a formação precisava adquirir um caráter mais prático, dando instrumental aos novos docentes para lidar com o aprendizado dos alunos, no lugar do que julgavam ser um ‘excesso de teorias’. Esse excesso se cristalizava na figura dos chamados fundamentos, principalmente filosofia da educação e história da educação, disciplinas pouco valorizadas pelo parecer homologado quatro anos depois, em 2019. Esses conteúdos eram vistos como objeto de ‘doutrinação política’ dos licenciandos.
À época o então novo CNE foi rápido na aprovação de suas pautas (como BNCC e o novo ensino médio) e, no primeiro ano do governo Bolsonaro, conseguiu homologar um parecer que substituía o de 2015, colocando em prática o que julgava serem os mecanismos adequados para aproximar mais os futuros professores do exercício docente. A Base Nacional Comum para os docentes, aprovada em 2020, tinha um caráter bastante prescritivo e procurava desenhar um novo professor que tivesse mais foco no aprendizado do aluno e na inteiração com as tecnologias. Apesar de prever sua incorporação, o documento de 2019 não foi específico nas diretrizes acerca do uso do ensino a distância.
Como aponta Bernardete Gatti, as duas disciplinas ligadas aos fundamentos da educação retornaram no atual documento, mas “numa perspectiva interdisciplinar”. Para ela, não era possível que esses fundamentos não estivessem presentes. “Como seria possível fazer educação sem refletir sobre quais são as suas finalidades, sem estudar os seus processos históricos?”, questiona.
Uma questão, no entanto, preocupa os educadores, talvez menos pelo que está dito pelo documento e mais pelo que ele não contempla. É o caso da educação a distância, ponto sensível em relação à formação de professores, pois a modalidade hoje já representa mais da metade dos diplomas de pedagogia.
Patrícia Diaz, diretora-executiva da Roda Educativa, entidade que trabalha com cursos de formação continuada em todo o Brasil, põe em xeque os estágios na formação em EAD, ainda que, como na modalidade presencial, eles tenham a previsão de uma carga de 400 horas.
“Interpretando o fato que o documento diz que a prática é necessária desde o 1º ano dos cursos, entendo que isso deva valer também para os de EAD. E aí torna-se algo complexo, pois a interação entre teoria e prática sem que haja experiência síncrona é muito difícil”, diz. E acrescenta um cenário que não parece implausível: que os alunos gravem aulas e mostrem a seus professores dos cursos universitários, muitas vezes horistas com pouca disponibilidade para interlocução. “A EAD precisa de um capítulo que determine seus limites”, alerta.
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O que está previsto no artigo XVI do capítulo 3 é aquilo que os formadores consideram como melhor modelo para essa interação. Segundo o texto, “a realização de estágio curricular supervisionado, com a colaboração de professores supervisores das instituições de educação básica, em cooperação com os docentes das IES [instituições de ensino superior]”.
Esse é, basicamente, o modelo do Pibid, o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, que prevê bolsas também para o docente da educação básica. Em março último, a Capes, instituição responsável, publicou a regulamentação do programa para este ano. Apesar da alta aprovação tanto do Pibid como da Residência Pedagógica, o problema dessas iniciativas é o seu alcance, sempre aquém do necessário.
Saiba mais: o documento aprovado pelo Conselho Nacional de Educação e enviado para o Ministério da Educação está em https://encurtador.com.br/fow36.
Para Patrícia Diaz, uma das grandes diferenças entre os textos das Diretrizes dos pareceres de 2015 e 2019 está ligado a uma tensão entre as universidades e as gestões governamentais. Assediadas por propostas de soluções que parecem simples, mas prometem grandes viradas, muitas vezes com um olhar mais voltado a ‘tentações mercadológicas’, gestores de municípios e estados acabam defendendo fórmulas metodológicas como a grande saída para melhorar o resultado de suas redes. Já as universidades, diz Patrícia, “ficam muito fechadas em si mesmas, e também precisam avançar sobre esse aspecto”.
Um trabalho mais próximo entre as duas instâncias pode ser o diferencial para enfrentar um problema que, se não resolvido, tende a perpetuar os problemas da docência. Afinal, um percentual bastante alto dos ingressantes nas licenciaturas teve formação precária na educação básica, e não só na área em que quer lecionar. Por isso, defende a educadora, é preciso que os currículos da formação inicial tenham alguma plasticidade, para ajudar os alunos a preencherem as lacunas de sua formação, seja do ponto de vista cultural ou político.
Essa ampliação de universo do conhecimento os ajudaria na formação continuada, que tem se desviado de sua função. Na prática ela é utilizada como tapa-buracos para as deficiências da formação, quando deveria ser uma reflexão sobre o exercício da docência, podendo melhorá-lo para lidar com seus alunos.
Um tópico elogiado nas novas Diretrizes é a questão da diversidade e da inclusão. “Utilizaram uma linguagem mais atualizada em relação à formação humana”, opina Bernardete Gatti. “Mas ainda estamos longe de conseguir atingir esse ponto indicado no documento”, completa Patrícia Diaz.
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