NOTÍCIA

Edição 300

Licenciaturas a distância estão em xeque. Governo deve mudar regras

Pressão pela formação presencial de professores aumenta e governo é sensível à demanda; instituições que oferecem EAD veem avaliação inconsistente. Resumo da ópera: os resultados em geral não são bons

Publicado em 21/02/2024

por Rubem Barros

licenciatura-ead Estudante EAD (FOTO: Shutterstock)

Os cursos superiores a distância, entre eles as licenciaturas EAD, estão em xeque. Medidas e manifestações do Ministério da Educação (MEC) e de organismos da sociedade civil mostram apreensão pela qualidade da formação dos alunos de EAD. Em 30 de novembro do ano passado, o MEC publicou a Portaria 2.041/23, suspendendo, por um período de 90 dias, os processos de autorização de novos cursos e de credenciamento de instituições de ensino superior na modalidade a distância. Entre outros, foram interrompidos os processos de autorização de vários cursos da área de saúde, ciências da religião, direito, oceanografia e de todas as licenciaturas EAD. 

O ministério já havia determinado o sobrestamento (a suspensão) dos processos de autorização de cursos de graduação, na modalidade EAD, em quatro áreas (direito, enfermagem, odontologia e psicologia), em 14 de setembro. Agora, o MEC também estuda as propostas do Grupo de Trabalho criado em março deste ano para analisar a formação docente, cujas recomendações foram entregues em junho de 2023.

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Há preocupação também de seis instituições — Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), Conselho Nacional de Secretários de Educação de Capitais (Consec), Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Frente Parlamentar da Educação, Associação de Tribunais de Contas e Todos pela Educação —, signatárias de carta entregue ao ministério em 7 de novembro de 2023, alertando para três fatores críticos na formação docente: o aumento significativo de concluintes em licenciaturas EAD; a baixa qualidade geral dos cursos de formação inicial, presenciais e EAD; e a alta evasão dos alunos de licenciaturas e pedagogia.  

O ministro Camilo Santana já sinalizou que, no caso das licenciaturas, deverá adotar já em 2024 o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) anual, para que se possa avaliar a evolução do desempenho dos ingressantes nas graduações. 

Conforme dados do Inep, hoje, concluintes de licenciaturas/pedagogia em EAD já chegam a 65%, contra a média de 31% de outros cursos. O número na área da educação praticamente dobrou desde 2010 (35%), como aponta a carta das seis instituições. Estas reconhecem que o fato de haver muitos estudantes de cursos EAD não é o único problema dessas formações, pois a área de pedagogia, nas duas modalidades, tem nota média de ingresso mais baixa do que outras áreas. Segundo gráfico apresentado pelo Inep na divulgação do Enade 22 (com dados de 2021 em pedagogia), o desempenho dos ingressantes no Enem era de cerca de 650 pontos para medicina, 570 para engenharia, 500 para direito, 460 em administração e 430 para educação (números aproximados). Ou seja, os alunos ingressantes já começam a universidade com deficiências resultantes da má formação na educação básica. 

Além disso, no Enade de 2021, 40% dos cursos de pedagogia tiveram notas entre 0 e 2 e apenas 25% entre 4 e 5. O presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE), Luiz Roberto Curi, sinaliza que o órgão está apreensivo com a situação. “Nossa preocupação é imensa com o crescimento acentuado da EAD em áreas sensíveis como essa. Mas também precisamos olhar para a baixa qualidade de cursos presenciais”, diz ele, acentuando que o maior problema da EAD é a escala. “São muitos alunos e um número insuficiente de docentes.” Mas há quem aponte, além de problemas estruturais, questões mais de ordem conceitual sobre as modalidades e a educação em geral.  

Ana Paula Duboc, professora de metodologia de ensino do inglês na Faculdade de Educação da USP (Feusp), que pesquisa também multiletramentos e mídias digitais, avalia que a legislação em vigor desde 2017 tem muito foco em questões técnicas, como o que deve estar disponível nos polos em termos de infraestrutura e tecnologia. “É um olhar que imprime muito valor a conteúdos, sobrevaloriza o conceito de aprendizagem e as tecnologias. A ideia por trás disso é que o estudante precisa correr atrás para aprender conteúdos de forma autônoma. Precisamos voltar a pensar sobre o que é a educação”, pondera. 

Ana Duboc

A sociedade precisa repensar o que quer da educação, orienta Ana Duboc, da Feusp
( FOTO: Divulgação)

A premissa da professora é verdadeira. Principalmente a partir do momento em que, cada vez mais, tenta-se fazer do uso de métricas o instrumento para julgar a efetividade do processo educacional. Assim, como a aprendizagem de conteúdo é passível de ser avaliada dessa forma, acaba por tomar o lugar de centro da educação, pois interações grupais e interpessoais e posicionamentos éticos pouco se prestam a essas métricas. 

Por isso, Duboc defende que a universidade resgate um diálogo com a sociedade e com os professores para refletir sobre o que quer da educação. “Afinal, vivemos um tempo de guerras, violência. Temos de reinventar o modo de educar”, diz ela. A não ser, deduz-se de sua fala, que se julgue a simples transmissão de conhecimentos suficiente para a inserção dos jovens no mundo social.

Seu raciocínio não exclui a utilização das tecnologias digitais, desde que estas permitam o encontro entre educadores e educandos. Como muita gente do campo educacional, ela vê grande valor para a EAD nas práticas de educação continuada e mesmo em interações com os jovens que utilizem tecnologias, como é o caso dos jogos digitais para o aprendizado de línguas estrangeiras.

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Assim como Ana Paula Duboc, muitos outros educadores que participaram do Programa Institucional de Bolsas de Formação à Docência (Pibid) defendem esse modelo de estágio. O programa ataca um dos maiores problemas das atividades práticas previstas para os licenciandos. Em muitos casos, quando não há um projeto claro estabelecido, eles apenas assistem às aulas de sua disciplina numa escola, pouco interagindo com o professor ministrante. 

No Pibid, os licenciandos e o professor escolar recebem bolsas e têm interações com o professor da universidade, o que possibilita o enriquecimento das práticas dos três vértices envolvidos, por meio desse diálogo que leva à reflexão e avaliação contínuas da efetividade do que é trabalhado nas escolas.  “O estágio supervisionado funciona bem melhor quando está lastreado por políticas públicas. No caso do Pibid, são 18 meses de integração entre licenciando, a comunidade escolar e o docente da faculdade”, finaliza Duboc. 

 

Mudança na avaliação

 

Quem está envolvido na oferta de cursos EAD, no entanto, reclama da crítica generalizada em relação à modalidade. Em artigo publicado em 24 de novembro na Folha de S.Paulo, a presidente do Semesp, entidade que representa as instituições de ensino superior privadas, Lúcia Teixeira, defendeu que, antes do fechamento de cursos, é preciso que haja uma discussão prévia e que seja introduzido um novo processo de avaliação e supervisão. 

Elton Schneider, diretor da Escola Superior de Gestão e Negócios do Centro Universitário Uninter, faz eco à crítica de Teixeira. “A função do MEC é regrar, regularizar e fiscalizar a educação no Brasil, em todas as modalidades e em todo o território. Mas ele não consegue fazer sua parte”, diz ele, para quem o Enade é bom, pois o ensino superior precisa de um instrumento de medida. “Não joguem todos na vala comum.” A nota geral da Uninter no Enade é 4. Para o gestor, é preciso que se estabeleça um desempenho mínimo no Enade e que isso passe a constar do histórico dos estudantes, para que eles também se responsabilizem pelo próprio resultado na prova.  

Elton Schneider

Elton Schneider, da Uninter: não se pode jogar todas as universidades privadas no mesmo saco
(FOTO: Divulgação)

A preocupação com a avaliação também permeia a fala de Luiz Roberto Curi. No caso da EAD, diz ele, avalia-se normalmente a sede e um ou outro polo. “Não dá para avaliar todos os polos, mas o processo avaliativo deve ser aprofundado, com um ordenamento curricular mais organizado, e mais clareza sobre o papel dos docentes em todo o processo. Também é essencial termos a integração das práticas dos estágios com as atividades que ofertam conteúdo”, diz. Para o presidente do CNE, os estágios são muito burocratizados, mesmo na modalidade presencial.

Curi defende também que as avaliações não mirem igualar todas as instituições, pois o processo deveria ver as propostas dos cursos e avaliá-los a partir delas e de suas características. “Uma avaliação é o exercício das diferenças.”

Luiz Roberto Curi

Presidente do CNE, Luiz Roberto Curi afirma: temos de refazer nossos processos avaliativos de instituições
(FOTO: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Schneider, da Uninter, refuta, no caso de sua instituição, a ideia de que os cursos em EAD não tenham ou tenham poucas atividades presenciais. Normalmente, há as 400 horas de estágio obrigatório, mais 400 horas de atividades de extensão, também obrigatórias. A Uninter tem 800 polos distribuídos entre Brasil e 14 paí­ses. Esses polos, explica Schneider, são de dois tipos: os chamados ‘super polos’, com equipamentos específicos para as áreas de saúde, e os convencionais, com softwares para engenharia e arquitetura, por exemplo. O modelo defendido é o de aproximação com os conselhos federais de profissões, como há hoje com o de química. “Eles conceituaram o que seria preciso, os simuladores virtuais para experiências e materiais para uso caseiro”, exemplifica. Os alunos de licenciatura nessa área também têm acesso a esses materiais. 

No caso da licenciatura em pedagogia, há quatro estágios obrigatórios feitos em escolas. O polo local é responsável pelo contato com as prefeituras e tem profissionais para orientar os estágios. Esses profissionais também dão orientação para professores de prefeituras em temas como combate às drogas e questões étnico-raciais. No caso de Curitiba, se envolveram também na proposta regional do Plano Nacional de Educação, a ser levada para a Conferência Estadual.

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A ‘quase ubiquidade’ da EAD

 

Quase 20 anos depois da edição pelo MEC da portaria 4.059, de 10 de dezembro de 2004, que regulamentou a introdução da oferta de disciplinas na modalidade semipresencial no currículo de cursos superiores já reconhecidos, os números tanto da oferta de matrículas quanto de matriculados surpreendem quem os analisa. Ao olharmos para o final do século passado, o ensino superior contabilizava 2,69 milhões de estudantes matriculados em cursos presenciais e apenas 1,68 mil em cursos de EAD. Depois da portaria do final de 2004, os números da modalidade a distância começaram a crescer: saltaram de 114 mil em 2005 a 207 mil em 2006. Nesse período, as matrículas presenciais também tiveram um crescimento robusto: em 2005, o número de matrículas presenciais alcançava os 4,67 milhões.

Nessa época, toda a educação brasileira começou a passar por imensas transformações, com a abertura de capital das instituições privadas de ensino superior, a aposta no financiamento estudantil, a política de cotas, investimentos na formação docente por meio de programas como a Universidade Aberta do Brasil (pública) e o Pibid.

A matrícula em cursos presenciais teve seu ápice em 2015, alcançando os 6,66 milhões de alunos. Daí em diante começou a decair, principalmente a partir de 2017, quando o decreto 9.057 liberalizou as regras para os cursos superiores EAD. Em 2022, houve 5,57 milhões de matrículas presenciais, contra 4,33 da EAD. Ou seja, cada vez mais, as curvas estão se aproximando. 

E, em meio a esse cenário, a oferta de vagas em cursos de pedagogia alcançam os patamares mais altos, com exceção da modalidade presencial nas instituições de ensino superior privadas. Em EAD, no entanto, essa oferta, seja pública ou privada, é a mais alta, assim como nas públicas presenciais. Nos cursos a distância, a oferta de vagas nas privadas foi de 790 mil, contra apenas 16,3 mil nas públicas. No presencial, as privadas ofereceram 193 mil vagas contra 34,7 mil das públicas. A taxa de ocupação nas públicas foi de 71%. Nas privadas, de 42,7%. 

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Aposta pública nas licenciaturas EAD

 

Mas a educação a distância não é um fenômeno apenas privado. A área pública também está investindo na modalidade. Em São Paulo, a Universidade Virtual do Estado de S.Paulo (Univesp), fundada em 2012, conta hoje com 65 mil alunos em nove cursos distribuídos em três eixos temáticos: licenciaturas, negócios e produção e computação. Na área de licenciaturas, há cursos de pedagogia, língua portuguesa e matemática. Segundo Simone Telles, diretora acadêmica da instituição, a projeção é chegar aos 80 mil alunos em 2024. São 424 polos distribuídos por 370 municípios, onde se concentram 93% dos habitantes do estado. 

A instituição faz parcerias com os municípios, que cedem o espaço para a oferta dos polos. “Nossa maior demanda é por pedagogia. Em relação ao público total, 50% são mulheres, 78% têm acima de 25 anos e 86% vêm de escola pública. De cada 10, oito não fizeram outro processo seletivo. Metade são pretos, pardos e indígenas, 38% ganham até dois salários mínimos e 39% são responsáveis únicos pela família. São pessoas que trabalham, muitas mulheres com jornada dupla. Estamos em muitas cidades com até 2 mil habitantes, sem nenhuma universidade”, resume a diretora. 

Segundo ela, o grande diferencial da Univesp é o trabalho com projetos e práticas contextualizadas. A partir do 2º ano, há um projeto integrador, de 80 horas, feito em grupo e vendo as necessidades de uma escola. “Estamos mudando a metodologia de sala de aula, tornando tudo mais voltado à prática. Estamos invertendo a relação teoria e prática. Propomos que o aluno primeiro vivencie a prática no Projeto Integrador, depois veja a teoria”, diz Telles. 

O público da Univesp é bastante similar ao da Uninter no caso dos cursos de educação.

Em ambos os casos, falta um acompanhamento posterior dos egressos para medir a empregabilidade e, se possível, o desempenho das turmas dos estudantes pelos quais eles se responsabilizam. É preciso saber o quanto os cursos estão suprindo as lacunas formativas dos novos professores. Sob pena de repetirmos o ciclo de nossas carências mais uma vez. 

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Autor

Rubem Barros


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