NOTÍCIA

Edição 294

“O centro não é o aluno e nem o professor”, diz José Pacheco

A experiência de Pacheco no Brasil o fez perceber que a aprendizagem acontece em uma relação tridimensional que ele chama de paradigma da comunicação. Nesta conversa, também critica avaliações como Ideb e Pisa e conta de seu terceiro e último grande projeto

Publicado em 24/05/2023

por Laura Rachid

José Pacheco_2 José Pacheco: “Temos lideranças autoritárias que proíbem que o professor tome consciência daquilo que faz e quer mudar. Proíbem que ele mude. É um crime” Foto: arquivo pessoal

O professor José Pacheco vive no Brasil há quase 20 anos. Internacionalmente conhecido como o criador da Escola da Ponte, em Vila das Aves, Portugal, ele inspira aqueles que buscam implantar uma educação contrária ao modelo tradicional. Não acredita em prova, divisão dos alunos por séries e quaisquer moldes cartesianos porque, segundo ele, as crianças e jovens não têm aprendido. “Aula não ensina”, há uma farsa em jogo, reconhece. “Então o que tem que acontecer é uma decisão ética de mudar a forma de trabalhar com as crianças, jovens e adultos.” Suas falas às vezes duras cutucam educadores e escolas que querem apenas reproduzir padrões educacionais.


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“Ninguém tem o dom da verdade. A solução nasce quando as pessoas se encontram e dialogam. Pergunto: por que o Ministério da Educação e os universitários da ciência da educação recusam dialogar? Quantas vezes já convidei? Recusam”, insiste Pacheco, que em maio agora completará 72 anos e há mais de 10 anos é colunista desta publicação. Confira, a seguir, a entrevista.

Você critica a ‘sobralização’ do Ministério da Educação porque acredita que Sobral não dialoga com a realidade brasileira e ainda acha o Ideb decoreba. Mas qual a relevância dele e de outras avaliações como o Pisa?

Corro o risco de ser impertinente e desagradável para certos setores da educação. Mas muitos anos atrás, talvez 40 anos ou mais, participei de um trabalho chamado Avaliar da avaliação, o qual me deu a compreender que apesar de estar numa escola como a Ponte, eu não fazia avaliação, fazia aplicação de prova. Com um pouco mais de critério fazia avaliação criterial, fazia avaliação normativa no campo das atitudes. Só que eu dava uma nota a partir dos dados colhidos em testes, e os testes eram os do Pisa e outros que são os instrumentos de avaliação mais falidos que se conhece. Há muitos outros instrumentos de avaliação. Então fiz uma revisão do plano em prática e acabei por encontrar uma pessoa que tinha vindo de Vermont, nos Estados Unidos, Domingos Fernandes. Um grande pedagogo português que fez doutorado numa área que era relativamente nova para nós, portfólio de avaliação.

Hoje observo que as plataformas digitais têm portfólios de avaliação de alunos, mas todos pecam por considerar que a aplicação de teste dá algo viável em termos de avaliação de aprendizagens. Não é verdade.

Os ‘piseiros’ (e a fórmula do Ideb), Prova Brasil, todos pecam por serem apenas a reprodução daquilo que é a informação colhida no discurso de um professor em sala de aula ou de uma consulta e pesquisa na internet. Ou seja, apenas aquilo que a memória a curto prazo conseguiu acumular. E essa memória a curto prazo, como o nome indica, debita num papel ou em um computador aquilo que a memória de curto prazo conserva. No quadro do instrucionismo, sabemos que numa sala de aula quase nada se aprende e no domínio cognitivo isso também acontece ou não acontece.

Portanto, aquilo que é colocado numa folha ou computador faz com que a memória, que é esperta, esqueça. Ou seja, não existe aprendizagem. Aquilo que foi colocado num teste não é prêmio, não se conserva. Por que? Quando se trabalha segundo o modelo da instrução — ele nem sequer trabalha no modelo do paradigma da aprendizagem ou comunicação —, o que acontece é exatamente o debitar de informação do consumo acéfalo de currículo. Para ter aprendizagem ela terá que ter, fundamentalmente, os cinco grandes princípios de aprendizagem de [Jerome] Bruner baseados nas propostas de [Lev] Vygotsky e [Jacques] Delors: a aprendizagem deve ser significativa, integradora, diversificada, ativa e socializadora. 

Numa sala de aula ou no espaço em que se aplica um teste, a aprendizagem não é significativa. O aprendiz não sabe porque é que está a aprender, não está ligado de forma intrínseca, ou seja, cognitivamente, afetivamente, emocionalmente, esteticamente ao objeto de estudo. Não é significativo e, portanto, não é aprendizagem, é acúmulo de informação na memória de curto prazo. As pes­soas estão viciadas em instrução e nem isso se aplica mais. 

Não tenho nada contra Sobral. Até tenho grande admiração por algumas coisas que fazem. Mas não é esse o caminho, o qual nem nos Estados Unidos resultou. É uma solução neoliberal. 

Há uma cidade, estado ou país que avalie os alunos de maneira que considere coerente?

Me pergunto onde estão essas escolas inovadoras — não sei. Não existe avaliação séria nas escolas. Existirá quando uma nova construção social de aprendizagem for construí­da. Podem falar de comunidades de aprendizagem de Ramón Flecha, mas elas não existem, são paliativos no velho modelo obso­leto. Só conheço a Escola Aberta, de São Paulo, que é diferente, mas ainda não é uma nova construção social. Conheci o Âncora [em Cotia, SP], a Ponte, conheço a rede de comunidade de aprendizagem que está a nascer em Maricá, Rio de Janeiro.

O que acontece nessas escolas [citadas] é que o conhecimento nasce a partir de um projeto de currículo tridimensional, de subjetividade daquilo que é o projeto de vida do próprio aprendiz. Parte do currículo de comunidade, que parte dos saberes, problemas e potenciais de aprendizagem, que parte de um currículo universal de aprendizagens essenciais e que não são aquelas que estão no currículo de consumo. Porque produzir conhecimento é currículo, consumir currículo não é aprender, não é produzir conhecimento. 

Sendo as escolas que conheço — e conheço muitas escolas consideradas inovadoras e que ainda não são —, sei que elas estão em um ponto de partida para a criação de um projeto que propicie aprendizagens que permitam avaliá-las. Mas quando me dizem: ‘eu considero também a participação nas aulas, considero a criatividade, considero autonomia’, eu pergunto: onde estão os testes de autonomia? Onde estão os testes de criatividade? Eu só vejo testes matemático e língua portuguesa. Que autonomia e criatividade você desenvolveu nos estudantes para poder avaliar? Estamos a brincar com isso? 

Essa pergunta só tem uma resposta: eu não conheço escolas que façam avaliação. Conheço as que têm salas, turmas e tudo mais da parafernália do século 19, onde você aplica a prova e considera que elas são suficientes para fazer uma classificação. É terrível que isso aconteça. Estamos envolvidos numa farsa. Sei que muita gente vai rea­gir mal com o meu discurso, mas estou disponível para dialogar. Não tenho a verdade ao meu lado, tenho a minha prática, ou melhor, a minha práxis fundamentada, por exemplo, no grande [Georgette] Nunziatti, o qual dizia que a escola mudará por meio da avaliação ou jamais mudará. Então, a avaliação é digamos que pedra angular de toda a mudança de inovação e enquanto ela continuar a ser aquela que o Pisa e testes do Ideb utilizam, ela é uma farsa, não é avaliação.


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Quais as diferenças do paradigma da instrução para o da aprendizagem e o da comunicação? 

Quando fui para a educação, vinha da eletrotecnia, era um bom engenheiro eletricista, mas não sabia ser professor, sabia dar aula, e começa por aí o drama da ausência da produção do conhecimento. Eu dava aula e entrei em uma crise profunda de natureza moral porque não conseguia ensinar a todos, aliás, não há nenhum professor que consiga ensinar tudo a todos em sala de aula. Fui resolver esse problema recorrendo ao paradigma da aprendizagem: coloquei na minha sala de materiais de [Maria] Montessori, [Célestin] Freinet, instalei euritmia e tudo que era arte do [Rudolf] Steiner, fui estudar taxonomia de Bloom. Botei na minha sala tudo que havia de paradigma da aprendizagem, ou seja, o centro deixa de ser o professor para ser o aluno. Isso aconteceu pela primeira vez na Escola da Ponte.

Eu não conheço escolas em que o centro seja o aluno [paradigma da aprendizagem]. Embora falem de empreendedorismo, autonomia do aluno, protagonismo, isso não acontece, está na teoria porque ultimamente, como diria meu amigo António Nóvoa, a teoria sofisticou e é um contraste com a miséria das práticas. Utilizam-se os termos, as modas, para disfarçar a miséria das práticas. Mas quando vim ao Brasil, percebi que em 30 anos na Ponte, pensando que o centro era o aluno, que o paradigma da aprendizagem era o final de tudo, compreendi que não é, o centro não é o aluno. O centro está em cada coisa, em cada pessoa, em cada objeto. O centro é relação, é criação do vínculo e isso é o paradigma da comunicação.

Então penso que é necessária uma conversa séria que reúna as contribuições do paradigma da instrução, por exemplo, o papel da memória que é muito importante, com as contribuições do paradigma da aprendizagem, porque tem que haver o sujeito de aprendizagem com autonomia e também aquilo que hoje para a língua da comunicação nos traz. Estou a falar de Ramón Flecha, Lauro Oliveira Lima, Paulo Freire, de freirianos não praticantes que utilizam os testes, mas continuam a fazer a educação bancária.

Quais camadas os educadores precisam tirar para estarem nos paradigmas da aprendizagem e da comunicação?  

O primeiro obstáculo é o eu, é a minha cultura profissional inculcada desde o berço, desde a educação familiar, passando pelos bancos da escola, pelo princípio do isomorfismo na formação, o modo como o professor aprende, como o professor ensina. Eu ensinava assim e acreditava que estava certo. Então é preciso passar pela crise moral e ética que eu passei e que todo mundo pode passar, basta que faça uma decisão ética, porque se nós trabalhamos dando aula e os resultados dos testes — voltando à avaliação — mostram que não se aprende, olha quanto analfabetismo está por aí, os miseráveis Ideb na matemática. Então se provam que dar aula não ensina, o que tem que acontecer é uma decisão ética de mudar a forma de trabalhar com as crianças, jovens e adultos. É uma mudança que leva à inovação.

Infelizmente, há muita gente que disfarça o drama com modas pedagógicas e vai adiando e proibindo os professores de tomar essa decisão ética. Muitos professores querem tomá-la, só que o sistema que temos é hierárquico, autoritário, moral e intelectualmente corrupto e excludente. Temos lideranças autoritárias que proíbem que o professor tome consciência daquilo que faz e quer mudar. Proíbem que ele mude. É um crime.

Quando escuto falar de revogar ou não o novo ensino médio — agora isso está na moda —, pergunto: por que há ensino médio? Por que há segmentação no sistema? Qual o fundamento da existência do ensino médio, ou fundamental ou superior ou inferior? Qual é o fundamento? Este modelo que está não faz sentido nenhum e, portanto, discutir o ensino médio é debater o sexo dos anjos na educação. Não vale a pena, o que é preciso é uma nova construção social e ela está a surgir no Brasil e quero convidar o Ministério da Educação para diálogo.

José Pacheco

Para haver comunidades de aprendizagem, diz que é preciso passar por uma criação de círculos de aprendizagem, círculos de vizinhança, de proximidade
Foto: arquivo pessoal

Para você a escola não é prédio, são pessoas. Os CEUs (Centros Educacionais Unificados) se aproximam desse olhar coletivo oriundo das comunidades de aprendizagem de Lauro de Oliveira Lima? 

CIEPS [Centros Integrados de Educação Pública], CEUs e todas as boas iniciativas que assisti no Brasil acabaram assimiladas pelo sistema, fazem aquilo que o sistema permite e ficam aquém do que deveriam ser. Para haver comunidades de aprendizagem é preciso passar por uma criação de círculos de aprendizagem, círculos de vizinhança, de proximidade. Teremos de passar por um processo de reelaboração de cultura profissional, de construção de protótipos da comunidade de aprendizagem, e isso nunca foi feito. Então quando alguém utiliza a expressão comunidade de aprendizagem, não sabe do que está a falar.


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Você viaja o Brasil a convite de escolas que querem ser inovadoras e também participa dos principais eventos de educação. Agora [entrevista realizada no início de abril] está na Bahia. O que faz aí? Fale de sua rotina em apoiar escolas.

Estou em Ilhéus fazendo aquilo que sei: aprender com professores. Vou a trabalhar com um professor no chão de escola, é lá que vivo há mais de 50 anos [chão de escola] e é lá que vou acabar meu percurso profissional. O Brasil tem tudo o que precisa, infelizmente mantém um sistema criminoso que impede que todos aprendam. Que a Constituição seja cumprida, que a lei de Diretrizes e Bases de Darcy seja cumprida e o Estatuto da Criança seja cumprido.  

Viajo trabalhando em escolas gratuitamente, muitas vezes à minha custa, e mantenho alguns lugares que eu posso chamar protótipos de comunidades de aprendizagem, uma nova construção social. É nesse sentido que falo da participação no chão de escola com professores. Várias Secretarias de Educação me chamaram. Eu não vou fazer a mudança e a renovação. Não é um português que vai mostrar ao Brasil como fazer. Eu apenas me disponibilizo para participar no chão de escola daquilo em que eu acredito. Eu acredito nas pessoas.

Sempre que um professor me convida a participar de sua sala de aula, parto e valorizo aquilo que o professor sabe fazer que é dar aula, e vou com ele dar aula para mudar a sua forma de trabalhar. Acredito na capacidade dos professores, em suas capacidades de mudança, de decisões éticas. É isso que dá sentido a um aposentado da educação e aí [chão da escola] vou me manter enquanto puder.

Há um projeto com Secretarias de Educação que querem implantar comunidades de aprendizagem. Em que pé está?

Tenho algumas boas notícias. Assim como me juntei à Secretaria, lá em Portugal, da Escola da Ponte, assim como tentamos com a Secretaria de Cotia fazer o projeto Âncora, agora estou com a Secretaria Municipal de Maricá, no Rio de Janeiro, para acontecer a primeira rede de comunidade de aprendizagem da história. Ou seja, uma nova construção social cuja aprendizagem acontece e onde a avaliação acontece. É o terceiro e último grande projeto da minha vida e não vou acompanhar até o final, trabalho com uma grande equipe de educação humanizada. Estou a fazer 72 anos. E até porque o Brasil não é para amadores, como diria o Darcy. Quanto mais conheço o Brasil menos eu entendo.

Você ajudou a montar a proposta da recente Open Learning School, cujo anseio é o de construir uma nova construção social de aprendizagem de inovação em educação. O que significa?

Open Learning está em um segmento que não é o da escola pública. Até agora falei de escola pública, sou professor de escola pública e trabalho no chão da escola há mais de meio século. Mas quando um empresário me pediu para fazer uma escola como a da Ponte, decidi ir além. Esse empresário tem dois filhos, quer o melhor para eles e sabe que a escola da rede pública não é a escola que dá o melhor aos seus filhos. E também não é a escola particular, que se anuncia como inovadora, porque há muito marketing errado, falso.

Portanto, ajudei a construir a chamada Open Learning School. É uma organização internacional, sede na China, e ajudo porque quero que essa nova construção social aconteça. Ela não acontece nessas escolas de mensalidades enormes e que são iguais ou piores que as escolas públicas. Quero ajudar. Ele tem recursos, tem dinheiro. É para a classe A, mas crianças e jovens da favela e da classe A merecem o mesmo respeito.

A nova construção social parte da premissa de que escolas são pessoas e na escola particular, Open Learning, eu posso fazer isso. Nas escolas ditas públicas, as lideranças não permitem. Infelizmente, são autoritárias, são igno­rantes. Ali é um empresário e posso ajudar a fazer essa nova construção que acontece onde houver famílias que se preocupam com uma boa educação, onde houver gente que se junte para um círculo de aprendizagem.

Escute nosso episódio de podcast:

Autor

Laura Rachid


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