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João Jonas Veiga Sobral

É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional

Publicado em 08/06/2023

Presságios de uma distopia escolar

A distopia, na vida crua, se avizinha às escolas, não apenas como objeto de conhecimento ou de estudo, mas como prenúncio e augúrio do há de vir

A distopia vislumbra um futuro catastrófico, sombrio, violento e corroído. Nesse ‘lugar ruim’, conforme propõe a etimologia grega, não há trilha para esperança. Na distopia, persistem os versos de Dante: “Deixai toda esperança, vós que entrais deixai´” como lema do dia.


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Todavia, é no presente que os romances e os filmes distópicos encontram eco. É preciso que no tempo em que a obra foi escrita se anuncie a possibilidade de tragédia, de infortúnio, de calamidade, de flagelo, de devastação e de convulsão social para que a verossimilhança se dê. Porque é na vida desastrosa vivida que a distopia se depara adiante com a cruel contingência.

São muitas as obras que anunciam o fim dos tempos ou a barbárie como forma naturalizada do viver. De Fim de partida, de Beckett, a Black mirror, de Charlie Brooker, percebemos tempos de corrosão de valores e de convívio com os cataclismos da vida.

Por nossas bandas, o filme Medida provisória, direção de Lázaro Ramos, baseado no premiado livro e na longeva peça Namíbia, não, de Aldri Anunciação, sugere um futuro próximo, com um governo autoritário e vingativo, ordenando que os ‘melanino-acentuados’ sejam deportados para algum país africano, como forma  mentirosa de compensação. O filme faz alusão à sanha racista, furiosa e odienta que assola nosso país, disfarçada em tolerância amistosa.  O absurdo distópico faz sentido porque vivenciamos, na vida cotidiana, com frequência, hostilidades, agressões e assassinatos contra negros. E assim, no presente tenebroso há o respaldo suficiente para que o futuro macabro abra as cortinas do horror.

A distopia, na vida crua, se avizinha às escolas, não apenas como objeto de conhecimento ou de estudo, mas como prenúncio e augúrio do há de vir. A violência em todas as suas formas dá as caras no ambiente escolar, com sutilezas e brutalidades. A lida nas escolas não vem sendo nada tranquila e razoável e, não raro, flerta com a agressividade. A relação entre os docentes e os seus gestores e pares nem sempre prima pela ética e pelo bom trato. Puxam-se tapetes por gosto, por fastio, por ambição e por maldade. Se há corporativismo, há em algumas ocasiões ausência de senso de coletividade e de grupo. 

Entre alunos e professores há muitas ranhuras. Com provocações e dissimulações de ambas as partes, a interlocução vez ou outra azeda. E não há, por parte das famílias, complacência e parceria muitas vezes. Toma-se, nas peleias, parte a favor dos filhos (alunos) com voracidade cega, usualmente. E os grupos de WhatsApp, com a máxima de que “o inferno são os outros” não cansam de reafirmar Sartre e batalha campal.

A contenda não é nova no universo escolar. O Ateneu, de Raul Pompeia, já desnudou a escola como microcosmo da sociedade: “Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta”. A novidade que veio dar à praia é a violência escancarada e armada nas escolas. 


Escute nosso episódio de podcast:


Vivemos em tempos de terror. A vulnerabilidade dos jovens às ideologias extremistas, a ausência de regulação e de controle das plataformas digitais belicosas, a falta de discussão sobre valores humanos na escola e em casa, ausência de cuidado com a saúde emocional somados ao pânico tocado por boatos e ameaças nas redes sociais são terreno fértil para o caos. Sobretudo quando os alardes se confirmam em fato e morte.

Simbolicamente, em uma escola de São Paulo um adolescente de 13 anos assassina a facadas uma professora de 71 anos, com muito serviço prestado à educação e à ciência. Em Blumenau, um homem de 25 anos mata a machadadas crianças de quatro a sete anos com brutalidade atroz. Nesse encontro bárbaro, perverso, grotesco e intolerável, vemos gerações sucumbindo ao horror. E mais precisamente a infância e a velhice abatidas terrivelmente diante de nossos olhos atônitos. Seguiram-se, depois, como de costume, outros crimes e facadas contagiados pelos exemplos violentos oferecidos e ensinados.

Esse presente tão grande do qual devemos nos afastar está adoecido. É preciso pensar esse tempo, não apenas na acepção de reflexão e de conjecturas, mas no sentido de penso, de curativo ou atadura. É preciso remediar todo esse malfeito com o qual nos acostumamos nesses últimos anos. É preciso erradicar essa doença raivosa já familiarizada para que o presente não seja o presságio de um futuro distópico nas escolas.

Não podemos aceitar que as escolas sejam lugares inseguros de violência e de morte. Não faz sentido que consideremos natural que, em um ambiente escolar, sejam necessárias medidas de penitenciárias e de campos de concentração. É quase o decreto de falência de uma sociedade quando nos obrigamos a cercar as escolas com arame farpado, cerca elétrica, portas giratórias, detector de metais, seguranças armados e toda sorte de segurança de quem está pronto para guerra. Um trabalho consistente que compreenda as dores do mundo se faz mais necessário e urgente nas escolas e nas famílias.

Periga que em um tempo distópico próximo (arquitetado?) as escolas sejam abandonadas, porque se tornaram lugar de morte e de sangue, e as famílias em seus bunkers educarão seus rebentos, em um ‘homeschooling’ do medo e da exclusão.

Para que a distopia não se cumpra com seus sortilégios, há de se ater, nas escolas, a uma educação para a vida, para a tolerância, para o amor, para o bem e para valorização do conhecimento. Estamos embebidos e embriagados em cálices de ódio e de vingança, e a taça borbulha e transborda. 

Antes que tudo isso se perca, a sociedade — em casa e nos grupos de redes sociais, nos escritórios, nos consultórios, na mídia, nas universidades — deve se dar conta desse desatino e desse destino malfadado. E, sobretudo, preparar a si, as crianças e os jovens para que na escola se viva a boa-fé, as virtudes e a fascinação pelo saber que engrandece para que esse lume agourento que acende faíscas de raiva e morte seja apagado.  Ainda há tempo, não nos afastemos, vamos de mãos dadas.

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