Buscando alternativas para avaliar seus alunos durante a pandemia, instituição de ensino brasileira UNDB incrementa ferramenta criada por professor de Harvard
Publicado em 17/08/2020
No final dos anos 1990, Ceres Murad lecionava na Universidade Federal do Maranhão. De família de educadores, sua mãe, Maria Isabel Rodrigues, fundou o Colégio Dom Bosco, em 1958, que se transformou na escola da alta classe média de São Luiz, com o ticket mais alto da cidade. Ceres acalentava o desejo de fundar a faculdade Dom Bosco e para tanto recebeu a bênção da mãe. E em 2002 foi inaugurada a faculdade, hoje Centro Universitário Dom Bosco, mas que adotou para divulgação o nome de UNDB, vindo a se tornar a escola superior da elite e também com o ticket mais alto de São Luiz.
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Hoje, colégio e centro universitário totalizam quase 5.500 alunos – 3.600 do ensino superior, mas todos seguem a mesma orientação pedagógica. Para iniciar sua faculdade, Ceres contou com o apoio do marido e da irmã, e com isso chegou em Boston, na Harvard University. Queria implantar desde o início o estudo dos famosos cases de Harvard.
E assim, a hoje UNDB iniciou sua trajetória ancorada em metodologias ativas, salas de cases, salas para hands on. Entre tantos cursos que fez ao longo dos seus quase 40 anos como educadora, um teve particular impacto, com Eric Mazur, de Harvard, que já esteve no Brasil e criador do Peer Instruction, ou instrução em pares.
E foi nesse momento da pandemia que Ceres Murad se valeu do conhecimento que tinha do Peer Instruction. Como vamos avaliar corretamente os alunos que durante dois meses estudarão em casa? A súbita transferência de atividades para os ambientes virtuais revelou maior ou menor facilidade de adaptação de professores e alunos. Aferir a aprendizagem desse imenso contingente tornou-se um grande desafio.
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Foi então que a reitora da UNDB adaptou o método de Eric Mazur, batizando-o de Peer Instruction Lacuna Zero. O lacuna zero foi de sua autoria e pretendia que o aluno fosse avaliado por outros parâmetros que não a prova convencional, mas sem deixar de fora o mais importante de cada disciplina. “Como fazer isso remotamente? O aluno poderia pesquisar e dar a resposta correta e nós estaríamos fazendo uma avaliação sem fundamento”, diz Ceres. Falei com os professores para escolherem os 10 conceitos da sua disciplina que o aluno teria que dominar. Os alunos já tinham se mobilizado para questionar como seriam as provas do bimestre. “Eles estavam com medo, e nós também.”
“A aplicação foi feita em todos os seus 14 cursos de bacharelado, envolvendo 178 professores e 3.573 alunos, nas áreas de humanas, técnica e de saúde, para detectar lacunas na aprendizagem dos alunos e tratá-las com a ajuda de pares.
A técnica Peer Instruction Lacuna Zero teve como objetivo oferecer aos alunos a oportunidade de avaliar seu domínio dos conceitos trabalhados ao longo do bimestre de aulas remotas, antes da realização da prova, de forma que professores e alunos pudessem ter uma visão panorâmica sobre a competência conceitual adquirida.
Ceres Murad enfatiza que não é uma técnica de avaliação, mas metodologia de aprendizagem com foco em conceitos, que franqueia a oportunidade de aprender mais e melhor com pares. Os objetivos básicos são: explorar a interação entre os estudantes durante as aulas expositivas e focar a atenção dos estudantes nos conceitos que servem de fundamento.
Estudiosa de Piaget, diz que o grande potencial da atividade em pares é suscitar a discussão, a interação com iguais, estimular a demonstração do raciocínio próprio e da possibilidade de avaliar o argumento contrário, de forma a refinar os conceitos. Ela lembra o princípio piagetiano de que, quando um parceiro mais experiente fala, o aprendiz se cala, não duvida, o que elimina seu crescimento intelectual. Já com o parceiro de igual competência, ele discute porque dúvida e nisto reside a riqueza desse processo, que se dá em idas e vindas, como propõe Piaget, no seu conceito de assimilação e acomodação.
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Como resultado, a experiência foi aprovada pelos alunos, quase 40% deram nota 4, sendo a máxima, 5. E 35%, nota 3. Quanto à efetividade da técnica utilizada, 80% dos alunos acharam muito efetiva e razoavelmente efetiva. O desejo de repetir a experiência foi expressivo: 56%. Mais de 80% dos professores cravaram em muito efetiva e razoavelmente efetiva.
Os alunos apontaram, entre os aspectos interessantes dessa técnica, a metodologia de perguntas e respostas para revisão (69%), em oposição à reapresentação de conteúdos pelo professor. Entretanto, em segundo lugar (53%) aparece a explicação do professor após a aplicação do questionário, revelando que essa ainda é uma forma de revisão apreciada. Os aspectos interessantes apontados pelos professores foram a interação, o feedback instantâneo e o engajamento dos alunos.
Ceres Murad diz que aplicar e apurar o questionário inteiro, não revelando aos alunos quais respostas estavam certas ou erradas, tornam a técnica muito rica. Sendo assim, ma hipótese levantada é que, dessa forma, aumentando a dúvida, incrementa-se a discussão, deixando ao aluno a decisão sobre quais questões precisam ser mais debatidas. Isso estimula a autonomia de duplas ou grupos.
Quanto à interação como forma de aprendizagem, foi aprovada tanto pelos professores como pelos alunos. Entretanto, entre estudantes do ensino presencial, ainda é considerável o número de alunos que prefere a explicação direta do professor.
Aliás, a reitora da UNDB lembra que a aprovação de uma metodologia que tem o aluno como centro, a interação entre pares como pilar e um feedback contínuo e imediato como balizador sinalizam que a comunidade acadêmica está aberta para a inovação metodológica. Ainda que alguns alunos, e mesmo docentes, continuem revelando preferência por processos didáticos mais tradicionais. Exemplo disso é como um professor revelou sua resistência: “com um pincel e um quadro eu resolveria rapidamente”.
Feliz com o desfecho de sua experiência, Ceres Murad finaliza: “Como muitas outras práticas na vida dos cidadãos, trazidas pela pandemia, essa é uma atividade que alunos e professores revelaram querer que se perpetue no ensino presencial”. Incorporá-la ao cotidiano das instituições depende da resiliência e da determinação do professor em oferecer oportunidades para que o seu aluno, revendo as próprias lacunas de aprendizagem, exercite suas habilidades metacognitivas como um caminho para o desenvolvimento da sua autonomia enquanto estudante.
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