NOTÍCIA

Edição 255

Educação infantil: o teste do marshmallow revisitado

A capacidade de espera em crianças – associada a melhores desempenhos na adolescência – ainda gera estudos úteis para a área educacional

Publicado em 19/02/2019

por Fernando Louzada

Por Fernando Louzada*: Quando meu filho era pequeno, se durante a refeição o assunto que surgia era a sobremesa, imediatamente ele perdia a fome. Essa perda repentina do apetite pode ser interpretada como uma tentativa de redução do tempo de espera pelo doce. Recusar arroz e feijão para receber mais rapidamente o sorvete. Crianças são assim: têm dificuldade para esperar – capacidade associada ao que chamamos de controle inibitório.

A importância do controle inibitório ganhou destaque após a publicação, em 1988, de um estudo realizado pelos pesquisadores Walter Mischel e Yuichi Shoda, da Universidade de Columbia, e Philip Peake, do Smith College, ambas as instituições dos EUA. O artigo, que poderia ter parte de seu título traduzida como “Competências da adolescência previstas pelo atraso da gratificação na educação infantil”, descreve avaliações que foram feitas em adolescentes que dez anos antes haviam passado pelo “teste do marshmallow”.

Nesse teste, a criança recebia um pedaço do doce e era comunicada que ficaria aguardando sozinha na sala. Caso conseguisse esperar o pesquisador voltar à sala sem tê-lo comido, ganharia outro. No estudo dos pesquisadores norte-americanos, o maior tempo de espera sem comer o marshmallow foi associado a melhores desfechos acadêmicos e socioemocionais na adolescência. Em outras palavras, um maior controle inibitório na infância é preditor de maior sucesso no futuro.

A partir da perspectiva de um adulto, pode ser difícil entender como alguém come o doce antes do tempo estipulado. Como é possível não conseguirmos esperar por outro marshmallow – ou seja, dobrar o patrimônio em 15 ou 20 minutos? A resposta não é tão simples. Para que consigamos fazer isso, dependemos do amadurecimento de sistemas cerebrais envolvidos com habilidades que formam as chamadas funções executivas.
Desde a publicação do estudo de 1988, surgiram novas evidências da importância do desenvolvimento dessas funções, que passaram a ganhar mais atenção dos educadores, principalmente na educação infantil. Em uma das construções teóricas a respeito, admite-se a existência de três dimensões das funções executivas: o controle inibitório, a memória de trabalho e a flexibilidade cognitiva. Essas dimensões dependem do amadurecimento de sistemas cerebrais semelhantes, incluindo as áreas corticais pré-frontais. Por esse motivo, o teste do marshmallow passou a ser um indicador do amadurecimento pré-frontal e das funções executivas.

Em estudo publicado no ano passado na importante revista Psychological Science, os autores, também norte-americanos, sugerem que a magnitude da associação entre o atraso da gratificação e desfechos comportamentais seria menor do que se imaginava. Tyler Watts, Greg Duncan e Haonan Quan replicaram e ampliaram dados do estudo original e constataram que quando algumas variáveis – como o ambiente familiar – não incluí­das nos estudos anteriores eram adicionadas na análise, a associação se tornava mais fraca ou inexistente.

Há uma diferença metodológica entre os dois estudos que deve ser ressaltada. No estudo original, o tempo máximo estabelecido para espera foi de 15 ou 20 minutos, dependendo da situação. No estudo mais recente, o tempo máximo foi de apenas sete minutos. A maioria das crianças de maior nível socioeconômico atingiu esse tempo. Com isso, os autores identificaram um efeito deste fator sobre a capacidade de atrasar a gratificação, mas dificultou a avaliaçãoa da associação entre controle inibitório e características comportamentais futuras nesse grupo de crianças, ou seja, aquelas com maior nível socioeconômico.

Na interpretação dos autores, o teste do marshmallow poderia capturar algo distinto do autocontrole; a habilidade da criança em atrasar a gratificação seria influenciada por diversos fatores ambientais, incluindo o nível de escolaridade das mães. Adicionalmente, argumentam que a concepção gerada pelo estudo clássico seria uma simplificação excessiva do processo da tomada de decisão nas crianças.

O estudo de Watts e colaboradores enriquece a discussão a respeito das relações entre autocontrole e trajetórias de desenvolvimento humano. Além disso, liga um sinal de alerta para interpretações precipitadas de avaliações do controle inibitório em crianças, mas de maneira alguma reduz a importância de nos preocuparmos com o desenvolvimento das funções executivas desde os primeiros anos de vida.

Os estudos apresentados mostram que há vários fatores que podem explicar a dificuldade de meu filho em esperar o sorvete. Interações sociais cotidianas, por exemplo, são decisivas para o amadurecimento dos sistemas cerebrais. Atender imediatamente o pedido da criança, encerrar a refeição e passar para a sobremesa pode ser até mais fácil, mas não contribui em nada para o desenvolvimento de seu controle inibitório.

*Fernando Louzada é doutor em Neurociências e Comportamento pela USP e pós-doutorado pela Harvard Medical School

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