NOTÍCIA

Ensino Superior

Rebelião na economia

Manifesto criado por estudantes e professores com adesão mundial reivindica incorporação de matérias históricas e mais pluralismo no plano de estudos da graduação por Christina Stephano Descontentes com o processo de aprendizado nas faculdades de economia, estudantes de 37 associações de mais de 90 países, […]

Publicado em 25/09/2014

por Ensino Superior

Manifesto criado por estudantes e professores com adesão mundial reivindica incorporação de matérias históricas e mais pluralismo no plano de estudos da graduação
por Christina Stephano
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Descontentes com o processo de aprendizado nas faculdades de economia, estudantes de 37 associações de mais de 90 países, inclusive o Brasil, elaboraram um manifesto para reivindicar mudanças nos planos de estudos da carreira, tendo em vista a incorporação de matérias históricas e sociológicas em currículos nos quais predominam aulas técnicas e matemáticas. Como argumento central, os estudantes reclamam que as aulas se apoiam somente em teóricos neoliberais e que quase não há espaço para a crítica e a reflexão. Com isso, o objetivo inicial do manifesto – que conta com o apoio de economistas célebres como Thomas Piketty, professor da Paris School of Economics, e de Andrew Haldane, diretor executivo do departamento de estabilidade financeira do Banco da Inglaterra – é denunciar a insatisfação dos estudantes e sensibilizar a comunidade acadêmica internacional e a opinião pública a respeito do problema.
No Brasil, mesmo com a carga horária obrigatória de disciplinas de história econômica sendo maior do que em países da Europa, professores concordam que a formação tem se voltado mais para o mercado de trabalho. Nesse sentido, apesar de opiniões divergentes a respeito da validade das demandas do manifesto em relação ao currículo local, docentes defendem maior espaço para o pensamento crítico.
Reflexão sobre a crise
O embrião do manifesto atual começou a ser criado em meados de 2012, na Universidade de Manchester, no Reino Unido, quando um grupo de alunos fundou a Post-Crash Economic Society, para defender a revisão dos fundamentos da economia depois da crise financeira que tem afetado a Europa desde meados de 2008. Ao mesmo tempo, em outras instituições europeias, também se formaram associações similares, entre elas a Cambridge Society for Economic Pluralism, da qual Marco Schneebalg, estudante de 23 anos do mestrado em economia na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, foi um dos criadores.
Schneebalg conta que a crise do euro motivou muitos estudantes a cursarem economia, com o objetivo de entender suas razões e possíveis formas de solucioná-la. “Porém, depois de quatro ou cinco anos, quando estamos por terminar a faculdade, percebemos que nunca se falou sobre a crise”, reclama. Com isso, os alunos identificaram um descompasso entre a teoria que é ensinada e a realidade do continente, ou seja, há pouca aplicabilidade dos modelos matemáticos aprendidos na carreira ao mundo real. Outro problema, conforme o aluno, é a falta de diálogo com disciplinas de outras áreas, de forma que o manifesto também exige mais interdisciplinaridade entre os cursos. Além disso, o estudante assegura que as faculdades de economia não desenvolvem habilidades úteis ao mercado de trabalho. “Por exemplo, na matéria de estatística, aprendemos a teoria, sabemos solucionar exercícios matemáticos, mas não como resolver problemas do mundo real”, afirma.
Como reflexo dessa insatisfação, em junho do ano passado, foi organizada a conferência Rethinking Economics, na Inglaterra, reunindo associações de diferentes países que reivindicam mudanças parecidas nos cursos de economia. Durante o encontro, os participantes redigiram o manifesto, que chamou a atenção da mídia europeia e posteriormente ganhou o mundo. De acordo com Schneebalg, em Manchester, onde o movimento foi maior, os estudantes já conseguiram uma petição como primeiro passo para introduzir na universidade um novo curso com viés menos ortodoxo. Em Cambridge, ele conta que, devido à pressão da imprensa, os alunos podem, agora, fazer aulas em outras carreiras, algo que antes era proibido.
Maior abertura
Na Universidade de Barcelona (UB) também já há uma abertura maior às propostas do manifesto. Prova dessa abertura é o depoimento do catedrático de economia da universidade, Juan Tugores, que defende a importância do manifesto no contexto europeu, “na medida em que a Europa é o local onde mais se aplicaram as receitas da ortodoxia”. Para o catedrático, grande parte do desencanto com o projeto europeu de integração deriva dos custos dessas políticas, que se converteram no pior inimigo da sociedade e da própria ideia de Europa. “Há anos, quando se constatou a gravidade da crise, ficou evidente que a economia ortodoxa foi incapaz de prevê-la e tratá-la adequadamente. Apesar disso, nas faculdades, a carreira seguiu sendo ensinada da mesma forma, algo inaceitável científica e socialmente”, defende. E, nesse contexto, o grande feito do manifesto foi ter evidenciado que a ortodoxia tem oposição e que não há um pensamento único em economia.
Já em relação a como os docentes da área receberam a notícia do manifesto, Tugores conta que, com ele, alguns docentes viram reconhecidos os pensamentos que, até então, só se formulavam em voz baixa. “O predomínio da ortodoxia na hora de contratar professores, promover ou financiar atividades chegou a ser enorme, quase inquisitorial”, garante. No entanto, os docentes ainda possuem margens de liberdade para ministrar as aulas, algo que não ocorre quando se solicita apoio a projetos e propostas de publicações.
Um dos professores da Universidade de Barcelona que, há anos, se vale dessa relativa margem de liberdade é Josep González i Calvet, professor do departamento de teoria econômica. O docente concorda com o manifesto criado pelos estudantes, ao argumentar que a economia padrão neo­liberal que predomina nas faculdades faz com que os alunos vejam a realidade de forma não conflituosa e somente a partir de conceitos sobre mercados, produtividade e competitividade. Segundo ele, nessas teorias, costuma-se ignorar os conflitos diários que ocorrem entre trabalhadores e empresários e até mesmo entre as empresas para ganhar espaço no mercado. “Os alunos são orientados somente a buscar o benefício monetário”, critica.
Calvet explica que, em suas aulas, expõe as teorias padrões, mas também outras mais heterodoxas, de modo a entrar na crítica dos fundamentos e dos conceitos apresentados. Além disso, o professor expõe as teorias ensinadas por meio de exemplos extraídos da história econômica recente. “Apresento a versão padrão dos fundamentos e estudamos suas fortalezas e debilidades. Depois, falo de ideias que permitem contrastar a visão convencional”, detalha. Segundo o docente, a carga horária de disciplinas obrigatórias em história econômica nas faculdades da Espanha é de 3% a 4% do total de aulas, diferente do Brasil onde o percentual correspondente é de 10%, conforme as diretrizes do Ministério da Educação (MEC).
Realidade brasileira
Mesmo concordando que os planos de estudos das faculdades de economia da Europa e Estados Unidos apresentam orientação mais ortodoxa se comparados aos do Brasil, docentes do país discordam a respeito da validade das demandas do manifesto em relação ao currículo local. Priscilla Tavares, professora da escola de economia da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, concorda, em parte, com a reivindicação, por entender que os estudantes veem o currículo como algo abstrato demais em relação à sua ansiedade natural de recém-ingressados na universidade. “Diferentemente de administração de empresas, economia é uma ciência e precisa de formalização. É necessário ter gente pensando, ou seja, não podem todos se formarem para o mercado de trabalho e abandonar o pensamento crítico”, argumenta. Por outro lado, as disciplinas de história econômica são importantes aos economistas em geral, sejam eles heterodoxos ou ortodoxos, conforme a docente. No entanto, ela critica cursos que abandonam métodos quantitativos, enfatizando mais a abordagem histórica conforme os olhos de somente algumas correntes teóricas.
O coordenador do curso de economia do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec), em Minas Gerais, Marcio Salvato, conta que, em geral, os cursos da Europa são mais técnicos se comparados aos do Brasil, onde há muitas escolas centradas em aspectos históricos e sociológicos. “No entanto, a formação crítica tem pouco espaço no mercado de trabalho”, pondera. Salvato reconhece que, na Europa, as demandas do manifesto podem fazer sentido, algo que não ocorre com o Brasil. “Aqui, até mesmo os cursos mais técnicos têm disciplinas de história e sociologia”, comenta. Com isso, diz ele, mesmo o Ibmec, que oferece cursos voltados ao mercado de trabalho, possui 10% da carga de aulas em disciplinas históricas. “Porém, as matérias são dadas no final do curso, depois que o aluno já aprendeu a técnica”, esclarece. Salvato tampouco acredita que uma formação mais crítica é o caminho para solucionar a crise do euro. “Para ser um economista bem formado, a área de métodos quantitativos é primordial. A argumentação teórica e técnica não pode ser somente análise histórica e social”, defende.
Pasteurização do ensino
Em outro polo de opinião está Pedro Chadarevian, professor de economia da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que há anos investiga o movimento de crítica ao ensino de economia nas universidades europeias, norte-americanas e brasileiras. Defensor convicto da reforma do currículo de economia inclusive no Brasil, ele destaca a falta de fundamento dos pressupostos que são reproduzidos nos manuais ortodoxos, “presentes em nove entre dez faculdades de economia no Brasil”. De acordo com ele, nesses manuais, veicula-se, entre outras, uma visão estereotipada dos sindicatos, como um mal maior a ser combatido em uma economia, por produzir inflação, desemprego e atraso tecnológico; um entendimento equivocado do problema ambiental, ao colocá-lo como “mera externalidade passível de uma solução de mercado”; além de associar o Estado e sua estrutura de financiamento por impostos como um “peso morto” para a sociedade.
Chadarevian opina que o manifesto recente é uma reação legítima contra o que ele chama de “processo de pasteurização no ensino de economia”, o que considera um fenômeno global. “E a América Latina também é atingida, especialmente a Argentina e o Brasil”, assegura. Esse processo, segundo ele, se caracteriza pela homogeneização dos conteúdos de disciplinas teóricas do currículo de graduação em economia, como Introdução à Economia, Macroeconomia, Microeconomia, e Econometria. “São conteúdos moldados a partir da estrutura fornecida por manuais de ensino que vêm de fora, particularmente dos EUA”, explica. Para ele, essa forma de ensinar é sintomática de uma ciência que foge ao debate e que se prende aos seus dogmas porque teme o confronto de ideias. “E sabe-se, pela história, que a ciência que se comporta assim corre o risco de estagnar”, observa.
O docente reconhece que, no Brasil, há mais espaço para a heterodoxia nos cursos de economia. “Porém, em meus estudos, noto que esse espaço vem se reduzindo progressivamente”, alerta. Nesse sentido, ele constatou que, na região Sudeste do país, quase todas as faculdades públicas de economia utilizam algum manual neo­clássico como referência obrigatória em seus programas de Introdução à Economia. Chadarevian aponta como outro dado preocupante o fato de que menos de uma faculdade em cada três apresenta os teóricos clássicos (Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx) na disciplina de Introdução à Economia. “Ou seja, já de cara o aluno de graduação é moldado conforme os dogmas do pensamento único, sem que tenha chance de comparar o instrumental neoclássico e suas políticas econômicas a outros paradigmas”, critica.
Como diretrizes gerais, o professor acredita que, para aprimorar o ensino de economia, é preciso enriquecer o debate no seu núcleo teórico, permitindo equilíbrio pleno na apresentação dos modelos heterodoxos e ortodoxos em disciplinas como Introdução à Economia, Econometria, Macro e Microeconomia. “São políticas econômicas heterodoxas, fundamentadas em modelos alternativos do funcionamento da economia, que nos tiraram da crise em diversas ocasiões”, conclui.

Impacto social
Uma das impulsoras do manifesto em Barcelona, na Espanha, Andrea Cabañero, estudante de 22 anos do quarto ano da graduação em economia na Universidade Pompeu Fabra (UPF), conta que há pessoas como ela que se aproximam da ciência para compreender melhor a realidade social e econômica da sociedade e desenvolver soluções para problemas coletivos. “No entanto, aos poucos, tomamos consciência de que o que aprendíamos nas aulas estava desconectado da realidade. Por isso, decidimos criar o manifesto”, reforça. Para ela, o grande feito da iniciativa até agora foi ter aberto um debate sobre a questão nas universidades. Já como próximo passo, ela espera que as instituições espanholas voltem a oferecer matérias como história do pensamento econômico em seus currículos, seja nas modalidades obrigatória ou optativa. No entanto, reconhece que o caminho será duro. “Como resposta geral ao manifesto, os decanos das faculdades defenderam a oferta atual de seus planos de estudos, argumentando que as matérias técnicas são as prioritárias para entender os acontecimentos econômicos”, diz.

 

Brasil no manifesto
Junto a associações do Reino Unido, Espanha, Estados Unidos, França, Alemanha, Israel, Rússia, Argentina, Austrália, Chile e Uruguai, entre outros países, o Brasil subscreve o manifesto por meio da Nova Ágora, criada por estudantes da graduação em economia da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Um dos seus fundadores, Gustavo Bernardino, aluno de 21 anos do quarto ano, conta que os estudantes chegaram até os criadores do manifesto por meio do The Institute for New Economic Thinking, fundado por George Soros. “Na nossa organização, há pessoas de diversas áreas, que se reúnem para pensar sobre problemas práticos da economia e do meio ambiente”, afirma.

 

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