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Educação no Mundo

A versão italiana das cotas

Itália institui teto máximo de alunos de pais estrangeiros por sala de aula, como forma de preservar a língua, a cultura e a cidadania locais. Será mesmo?

Publicado em 10/09/2011

por Bianca Fraccalvieri, de Roma

O próximo ano letivo na Itália será inaugurado, em setembro, com uma novidade: um teto que fixa em 30% a presença de estudantes estrangeiros nas classes dos ensinos médio e fundamental. O anúncio foi feito no final de 2009 pela ministra da Instrução, Universidade e Pesquisa (MIUR, o equivalente ao Ministério da Educação no Brasil) do governo Berlusconi, Mariastella Gelmini. Ela defendeu o teto argumentando que, em alguns casos, a presença de estrangeiros é de 100%, e isso certamente não favorece sua integração no país. "Estamos estudando os aspectos técnicos da medida para introduzir este teto, e haverá também uma nova matéria, a Educação para a Cidadania e para a Constituição", anunciou.

Uma nota emitida pelo Ministério da Instrução no dia 8 de janeiro deste ano – e enviada a todas escolas do país – especifica que este teto poderá variar de região a região, de acordo com suas especificidades. Ou seja, o limite poderá ser superior a 30% se os alunos estrangeiros apresentarem "adequadas competências linguísticas" – como frequentemente acontece com os filhos de estrangeiros nascidos na Itália (vale lembrar que o sistema jurídico italiano é baseado no iuris sanguine e não no iuris solo, isto é, o nascimento no território não garante a nacionalidade). Em contrapartida, o teto poderá ser reduzido se, no momento da inscrição, os alunos estrangeiros demonstrarem um escasso conhecimento da língua italiana, o que comprometeria "uma participação plena nas atividades didáticas".

"Estabelecer um teto de 30% para os alunos estrangeiros por classe é um modo útil, na minha opinião, de favorecer a integração, porque graças a este limite se evita a formação de ‘classes gueto’, frequentadas unicamente por alunos estrangeiros", defendeu ainda a ministra da Educação. Por sua vez, a Rede dos Estudantes do Sistema Fundamental declarou que o teto não é a solução para o problema da integração. Além disso, dizem os representantes da instituição, a medida apresenta lacunas. Citam como exemplo a indefinição sobre como será garantido o direito à educação para os estudantes que permanecerão fora da escola em função da fixação do teto.


Estrangeiros nas escolas


À primeira vista, a medida pareceria ser consequência de uma "invasão bárbara" à escola italiana. Algo de tal ordem que ameaçasse os valores e a cultura italiana. Mas, segundo os dados do Dossiê Caritas-Migrantes, realizado em parceria pela Caritas italiana (ligada ao Vaticano) e pela Fundação Migrantes, no ano escolar 2008-2009, os estudantes filhos de pais estrangeiros chegaram a 628.937, num total de 8.943.796 alunos matriculados, ou seja, 7% do total. O documento é a principal referência quanto à imigração no país.

Apesar do número relativamente pequeno de imigrantes, a questão é sua distribuição geográfica irregular, com altos índices na parte setentrional do país. A Caritas esclarece, porém, que, entre os "estrangeiros", quase quatro de cada dez alunos (37%) nasceram na Itália. E, para esses estudantes, a língua não é nem um obstáculo nem um problema. Com seus colegas italianos, eles compartilham comportamentos, consumo e incertezas existenciais.

Mas não só: esse clima político xenófobo, todavia, começa a deixar as plenárias parlamentares para ganhar repercussão no dia a dia dos jovens. Uma pesquisa apresentada em fevereiro no Parlamento aponta que, entre os estudantes "puramente" italianos, o racismo é um fenômeno que está longe de ser erradicado. Segundo o relatório, dos dois mil jovens entrevistados, quase a metade, 45%, declara, em relação aos estrangeiros, atitudes de fechamento, que para 20% se transmutam em xenofobia, enquanto a porcentagem que manifesta abertura fica em 40%.


Precedentes


O teto, na verdade, causou muito menos polêmica do que outra moção apresentada pelo Partido Liga Norte (partido de separatista de extrema direita, radicado na região da Padânia, norte do país, liderado por Umberto Bossi, ex-ministro do gabinete de Silvio Berlusconi), e que na realidade foi o berço do limite de 30%.
O parlamentar Roberto Cota propôs criar "classes de adaptação" para os alunos estrangeiros.

Na prática, o projeto, já aprovado, prevê que esses estudantes só poderão assistir às aulas depois de superarem provas de avaliação de língua italiana. Nessas classes de adaptação, além do italiano, estão previstos "percursos monodisciplinares e interdisciplinares", para uma educação voltada "à legalidade e à cidadania".  

A oposição logo se manifestou, afirmando que a moção representa "uma regressão cultural, muito mais do que política. Falou-se de humilhação, intolerância, incivilidade e apartheid: "Uma divisão assim tão clara entre crianças que falam italiano e as que ainda não falam corretamente evoca os aspectos mais obscuros do apartheid", declarou Guglielmo Epifani, secretário da Confederação Geral Italiana do Trabalho (Cgil). Para o secretário-geral da Confederação Italiana do Sindicato dos Trabalhadores (Cisl), Raffaele Bonanni, trata-se de um texto "ridículo", e se as coisas continuarem assim, em breve haverá uma escola para meninos e outra para meninas, para os do Norte e para os do Sul, para os loiros e para os morenos. "Para os trabalhadores, a escola permanece o ponto central do funcionamento da igualdade. Somente através da escola pública, o povo pode formar-se e formar os próprios filhos." Já o ex-secretário do Partido Democrático (o antigo Partido Comunista), Walter Veltroni, evocou o passado para contestar a medida, questionando se os italianos teriam tolerado algo semelhante com os próprios filhos quando eram eles próprios os imigrantes.

Nessa ofensiva contra os estrangeiros, os partidos de centro-direita acabam confundindo identidade, costume e religião. Na cidade de Goito, na província de Mantova, no norte da Itália, pela primeira vez se subordina o acesso público a uma creche a um credo religioso.

O regulamento coloca como condição para matricular o filho na creche a aceitação de uma espécie de preâmbulo religioso: a proveniência de uma família católica ou cristã, excluindo de fato muitas famílias de imigrantes de outros religiosos. Falta estabelecer ainda se na inspiração cristã estão incluídos os casais divorciados ou os ateus e agnósticos. A junta municipal alega que, mesmo sendo uma creche pública, sempre foi gerida segundo critérios que se inspiram no cristianismo. A centro-esquerda rebateu, afirmando que se trata de uma medida inconstitucional, evocando a laicidade do Estado italiano.


Contrato social x contrato cultural


"Muitas vezes, dentro deste debate, se provoca uma divisão, agitando uma injustificada polêmica de tipo ideológico. A escola deve ser o local da integração. Os nossos institutos estão prontos a acolher todas as culturas e as crianças do mundo. Do mesmo modo, a escola italiana deve manter com orgulho as próprias tradições históricas e ensinar a cultura do nosso país. (…) A presença de estrangeiros na escola italiana, frequentemente concentrados em algumas classes, não é certamente um problema de racismo, mas um problema sobretudo didático", avalia a ministra da Educação.

Nessa declaração se desfecha o dilema central que vive hoje a Itália, que vai além de uma questão meramente política ou didática. Todas essas medidas, na verdade, refletem a atmosfera que se respira hoje no país, e faz questionar a direção para onde a Itália está caminhando, se esse rumo se dá apenas em função do partido que está no poder, ou se há algo mais socialmente arraigado. 

O professor de filosofia guineense Filomeno Lopes, da Universidade Sapienza, de Roma, estudioso do fenômeno da imigração e residente na Itália há mais de 20 anos, afirma não se tratar somente de crise de identidade: "A meu ver, o que existe na realidade é a identidade territorial que jamais conseguiu ser transformada numa identidade cultural nacional e, portanto, uma identidade de sentido de pertença, de valores e ideias comuns que chamaríamos italianidade. Bem dizia Giuseppe Garibaldi, ‘construímos a Itália, agora falta construir os italianos’".

Segundo Lopes, essa tarefa foi cumprida só em parte, através da realização de um contrato social, econômico e político, sobretudo logo após a Segunda Guerra Mundial: "Falta, a meu ver, um contrato cultural. Durante vários anos, a Itália foi convivendo com esta contradição interna em todos os níveis sociais e sobretudo políticos: por exemplo, a presença da Liga Norte no atual governo, embora ela não reconheça nenhum dos principais símbolos da nacionalidade italiana; a quase impossibilidade para o Estado italiano de ter uma política externa comum que seja nacional; mas, pior ainda, o não reconhecimento até hoje da luta de libertação do país do regime fascista por parte do atual chefe do governo, que continua a fazer distinção entre a conquista da liberdade, que ele reconhece como valor, e a libertação como processo de luta antifascista, que ele não reconhece".

Essas contradições, avalia Lopes, se agravaram agora com a presença dos imigrantes, que faz com que a falta de vontade de enfrentar a questão do contrato cultural se torne explícita. Para ele, é significativo o fato de que os únicos momentos de coesão nacional sejam as disputadas esportivas, como a Copa do Mundo de futebol e os jogos olímpicos. Ou, ainda, a hostilidade em relação aos imigrantes. "Em todos estes casos, está sempre presente o elemento da territorialidade como fator de identidade", resume.

Ao que parece, o crescimento do movimento migratório na Europa e em regiões vizinhas da África e da Ásia está obrigando os italianos a enfrentar uma questão que talvez nunca teriam enfrentado abertamente. Assim como em outros países europeus – mas talvez de forma mais acentuada – o que está em jogo são valores que o continente legou ao mundo como parâmetros de civilidade.

Autor

Bianca Fraccalvieri, de Roma


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