NOTÍCIA
Sociólogo, Cesar Callegari é autor do parecer de 2008 que colocou as duas disciplinas como obrigatórias nas escolas. Também critica a reforma do ensino médio e orienta para a valorização da formação docente, que deveria atuar em um modelo similar ao adotado no Itamaraty
Publicado em 27/02/2024
Proibidas nas escolas em 1971, na ditadura, e substituídas por educação moral e cívica, filosofia e sociologia voltaram em 1986 no Brasil como optativas, mas só em 2008, quase 40 anos depois, foram retomadas como matérias obrigatórias no ensino médio, após parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), sob a autoria de Cesar Callegari.
Recentemente, estão sendo novamente excluídas do currículo obrigatório, desta vez pelo novo ensino médio, aprovado no governo Temer e que, devido a críticas, está em processo de mudança no atual governo. Governos estaduais ajudam nesse equívoco, como o estado de SP que as tem excluídas.
Sociólogo, Cesar Callegari é presidente do Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada. Foi secretário de Educação Básica do MEC e secretário de Educação do município de São Paulo, entre outras funções que o colocam como especialista em políticas públicas. Membro por 12 anos do Conselho Nacional de Educação, presidiu a Comissão de Elaboração da Base Nacional Comum Curricular, contudo, deixou em 2018 o cargo por discordâncias no encaminhamento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Confira a entrevista:
Isso é uma visão atrasada do processo educacional. Nunca, em toda a história da humanidade, foi tão importante a construção de um pensamento crítico e competência criativa. Hoje há uma abundância de informações e temos de fazer um esforço em todo o processo educacional — infantil, fundamental, ensino médio, superior e educação ao longo da vida — para que as pessoas tenham consciência do contexto, origem das coisas, como se manifestam, os vários ângulos.
Em contraposição, há quem ache que a educação deve ser puramente instrumental, principalmente para as camadas populares, como se conhecimento, o aprendizado de língua portuguesa e matemática parasse em pé sozinho. É necessário ter significado e relevância, duas categorias que devem andar juntas, e exatamente quando se aprofunda em conhecimentos de filosofia e sociologia, o aprendiz mergulha nas origens tanto do pensamento, das forças sociais, culturais, políticas, voltando-se também à contextualização das informações do conhecimento e das atitudes em relação à vida. Isso é temido porque o conhecimento é libertário e meio conhecimento não é liberdade, não é autonomia. Ou seja, forças conservadoras que querem conservar seus privilégios para continuarem a exercer dominação social e política temem que uma visão mais crítica a elas possa contestar os elementos de status quo, daí o medo, por exemplo, do pensamento crítico.
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Todos os professores, não apenas de sociologia e filosofia, devem proporcionar que seus alunos sejam bons perguntadores: criar perguntas com fundamento, compreenderem que as dúvidas são próprias do processo de conhecimento e que não são ameaças ao próprio saber do professor, mas um caminho para a exploração. Então, os professores de filosofia e sociologia, ao tratarem da origem do conhecimento, dos grupos sociais, origem das diferenças dos conflitos de poder, devem dar elementos para que os estudantes possam construir boas perguntas sobre tudo — sobre as disciplinas, sobre a vida, sobre aquilo que está estabelecido, inclusive as relações de poder entre professor e aluno.
Já a formação de professores é deficiente no Brasil. Temos hoje um apagão do magistério em praticamente todas as áreas — falta professor de sociologia, química, matemática e filosofia. Sabemos que a maioria dos que estão se formando hoje para serem professores frequentam licenciaturas a distância de precaríssima qualidade na maior parte dos casos. Claro que há exceções de boas universidades e faculdades, mas a regra é um sistema que está funcionando há muito tempo sob os olhos fechados do Ministério da Educação, que permite a precariedade na formação inicial de professores. Além disso, a formação inicial e continuada precisa desenvolver não apenas propostas curriculares, mas proporcionar aos professores domínio dos métodos e técnicas de ensino e aprendizagem para aí sim eles compreenderem como incentivar os estudantes a fazerem perguntas.
O currículo sempre é um campo de disputa política e ideológica. Não há neutralidade em qualquer tipo de formulação curricular como não há neutralidade em absolutamente nada do conhecimento, muito menos no campo da educação escolar. Sendo um campo de disputa, as forças conservadoras, que ganharam espaços de poder nos últimos anos no Brasil e mundo, têm receio desse processo livre de questionamento e criatividade, o que explica alguns retrocessos na área da educação.
Tudo bem transformar as disciplinas em áreas do conhecimento, o problema na reforma do ensino médio é que as áreas do conhecimento vieram desprovidas propositalmente do cuidado essencial de trazer ao estudante os elementos teóricos e conceituais que são próprios de cada uma dessas disciplinas, oferecendo algo apenas genérico. Então, professores de biologia foram obrigados a darem aulas de química sem conhecimento, assim como os de filosofia pegaram informática para cumprirem a grade de aulas. A reforma se transformou em um festival de improvisos.
A reforma do ensino médio foi proposta pelo governo Michel Temer e veio com a característica reducionista de direitos de aprendizagem, esse talvez seja o principal ponto que me levou à oposição da BNCC do ensino médio e da reforma. A redução de 2.400 horas de um direito do estudante de conhecimento geral para 1.800 horas significa reduzir possibilidades de aprendizagem, o que é inaceitável. Com isso vem a pergunta: quais conhecimentos ficam de fora para espremer o currículo?
Já na Base Nacional Comum Curricular do ensino médio entregue ao Conselho Nacional de Educação, os problemas foram aprofundados, conforme detalhei na resposta anterior. O terceiro ponto são os itinerários formativos completamente vazios. Quando falamos da Base Nacional Comum Curricular desde a lei do Plano Nacional de Educação, inclusive eu sou autor desse trecho da lei, a BNCC era uma necessidade, porque deveria ser a expressão, a enunciação dos direitos e objetivos de aprendizagem do desenvolvimento das crianças, jovens e adultos brasileiros. Mas os itinerários formativos vieram ausentes desses direitos de aprendizagem, se tornando uma revogação de direitos.
Também sou contra que qualquer etapa da educação básica seja feita a distância, porque é na escola, no convívio, que se desenvolve uma série de valores próprios das necessidades de um mundo contemporâneo, como o respeito à diversidade, à capacidade de construir e trabalhar de maneira colaborativa.
Por isso que hoje os profissionais educacionais mais avançados são aqueles que trabalham com a educação baseada em projetos e colaborativa: fazer perguntas, construir hipóteses, buscar respostas em torno dessas hipóteses. É na educação básica que se deve aprender que nada se constrói sozinho e que há contradições nesse coletivo, porque as pessoas são diferentes. A educação mais avançada considera todas essas variáveis não como um problema, mas como uma grande vantagem e é isso que, às vezes, aqueles detentores do poder não querem, uma vez que aspiram por pessoas que consumam pequenos pacotinhos prontos de informação sem que processem isso na forma de conhecimento. Nós aprendemos quando criamos.
É uma visão rasa e pobre do processo educacional se o governo e gestores do estado de São Paulo estiverem guiados para ir bem na nota; rankings não podem de jeito nenhum nos guiar a respeito do compromisso do gestor público de proporcionar o direito a uma educação de qualidade consistente. Mas, aqui vejo uma concepção mais grave e perigosa: transformar a formação da educação básica jovem paulista numa educação pobre para os pobres, achando de maneira equivocada que apenas língua portuguesa e matemática são suficientes — já que a gente não consegue assegurar o conhecimento mais amplo, então para os pobres basta isso. Mas se continuar proporcionando educação pobre, o estado está condenando uma parcela significativa da população a uma cidadania precária em uma contemporaneidade que em qualquer tipo de ocupação se exige conhecimento cada vez mais profundo e crítico. É um projeto de dominação de poder das elites hegemônicas no Brasil, não todas as elites, mas as hegemônicas sempre se valeram da sonegação do direito à educação de qualidade como o direito de todos, com uma forma de controle social e de dominação política e de opressão. Temos de combater esse projeto.
Primeiro ponto é reconhecer que temos não uma juventude, mas juventudes, com muitas características, condições, anseios diferentes. Reconhecer essa diversidade entre os diferentes segmentos das juventudes é fundamental para a construção não de uma política, mas políticas que digam e que sejam significativas para essas várias juventudes. O segundo ponto é que o ensino médio tem de se tornar relevante para o estudante não na perspectiva de proporcionar acesso à educação superior e a um bom emprego. Tem de ser relevante para que o estudante se torne relevante, que ele se encontre, que tenha compreensão mais completa da sua origem e possibilidades, inclusive participação na sociedade e também na política, não partidária, mas de exercício do poder, condições e direitos ainda desiguais no Brasil. Para ter relevância, o ensino médio precisa ter, volto a dizer, uma estratégia de currículo que preconize a produção autoral e colaborativa desse estudante com base no experimentalismo, numa educação baseada em projetos e, claro, proporcionando condições de acordo com as necessidades de cada grupo social dessas juventudes.
Muitos jovens brasileiros precisam de suporte para poder estudar no ensino médio, só que apenas dar uma bolsa é importante, mas não suficiente. A suficiência vem da construção e implementação de um currículo que proporcione essa relevância coletiva dos diferentes segmentos da educação dos jovens brasileiros.
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Merece, ainda que eu defenda alguns ajustes. O mais importante é que o governo se empodere da condição de liderança necessária para que os governos estaduais, que são os principais responsáveis pelo ensino médio, possam implementar essas mudanças com responsabilidade. Tem de ter força democrática.
O segundo ponto é investir, tem de dar condições materiais para que os estados avancem. Contudo, nenhuma educação de qualidade, do ensino infantil ao superior, vai progredir no Brasil se continuarmos a admitir a precarização da formação inicial dos professores brasileiros. O Brasil precisa tomar uma decisão corajosa e política de formar uma nova geração de professores. Temos condições para isso e essa nova geração precisa de um programa federal, com carreira federal, salários diferenciados, ou seja, criar na sociedade a condição de uma profissão que encante os melhores entre os melhores, é disso que o Brasil precisa. Mas qual é a coragem política de a gente se valer dos talentos que temos nas universidades? Seria algo parecido com a entrada no Itamaraty, que necessita de um concurso no Instituto Rio Branco, em que há um salário e visão a respeito do seu desenvolvimento. O Brasil precisa tomar essa decisão porque todo o resto é importante, mas é paliativo se não tomarmos a decisão estratégica e politicamente corajosa de construir já uma nova geração de professores no Brasil. Nós precisamos nesses próximos 10 anos formar 300 mil professores para a educação básica.
O ideal é uma avaliação em processo durante todo o ensino médio. Aliás, ele deveria começar já no último ano do ensino fundamental, servindo de um ‘filme’ do processo evolutivo e de desenvolvimento do jovem que vai se submeter a um exame nacional no final da educação básica. Não deveria se chamar Exame Nacional do Ensino Médio, mas Exame Nacional da Educação Básica, porque é ela inteira que precisa ser avaliada. E é claro que um novo Enem precisa estar baseado na Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio.
O Enem exerceu até hoje posições positivas em sua essência. Ele é um farol, um ponto de chegada. A própria maneira como o Enem tem se organizado, proporcionando, exigindo ou cobrando dos alunos um processo cada vez mais de interligação de áreas do conhecimento acaba induzindo mudanças no processo de ensino e aprendizagem. Com isso, espera-se que a educação básica ofereça uma visão mais crítica, interpretativa e questionadora e essa etapa precisa proporcionar que as crianças e jovens sejam rebeldes com causa, porque é na causa que existe o conhecimento necessário para projetos coletivos.
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