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Edição 285

Com a pandemia, alfabetização vive urgência na recuperação – prejuízo é de todos

Indispensável para a aquisição de todas as aprendizagens escolares, especialistas constatam que a alfabetização não ocorreu, depois de praticamente um biênio, no ensino remoto

Publicado em 23/05/2022

por Karen Cardial

O atraso na alfabetização gera impactos na vida escolar da criança, na relação que ela cria com o saber, afeta sua autoestima, dificulta o acesso a outras áreas do conhecimento, como matemática, história, geografia, ciências, e passa a depender de um adulto leitor para interpretar exercícios e localizar informações num texto. A escola espera que o aluno detenha esse conhecimento, logo, não saber ler e escrever passa a ser um entrave na vida escolar”, afirma Giulianny Russo, mestra em escrita e alfabetização pela Universidad Nacional de La Plata, Argentina.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabelece a alfabetização como foco principal da ação pedagógica nos dois primeiros anos do ensino fundamental. Fabya Alves, coordenadora geral do Colégio Anísio Teixeira, em Feira de Santana, na Bahia, conta que quando os conteúdos começaram a ser ministrados, no retorno às aulas 100% presenciais, as crianças, então com dificuldades, perceberam que alguns colegas estavam mais avançados. Essa desarmonia em sala de aula causou ansiedade, insegurança, desmotivação e indisciplina. 


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Para Giulianny Russo, que também é pedagoga pela USP e que possui experiência como professora na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, o aumento de crianças brasileiras de seis a sete anos que não sabem ler e escrever, principalmente entre as residentes de domicílios mais pobres, segundo levantamento do Todos pela Educação, não é surpreendente, visto que estas crianças não têm acesso à cultura da escrita fora da escola, parte fundamental do processo de alfabetização.

“Um adulto que lê para a criança ou que a convida a ler e a escrever, crianças que contem com livros em casa e que sejam estimuladas a explorá-los, que possuam exemplos de pais leitores, façam passeios em livrarias, etc. vivem um contexto que desperta a função social da escrita, auxiliando o processo de alfabetização”, esclarece a pedagoga Giulianny. “Ao ver a mãe fazer a lista de compras do mercado, a criança percebe que a escrita serve para guardar uma memória. Quando o pai consulta a lista telefônica e descobre onde há uma oficina mecânica, ela aprende que com a escrita descobrimos algo que antes não sabíamos. Quando o irmão escreve uma carta para o tio que mora longe, entende que a escrita serve para se comunicar com alguém que não está presente”, descreve. Sem acesso a esses contextos, dependem exclusivamente da escola para ter contato com a função da escrita.

alfabetização

“É imprescindível enxergar o que a criança sabe sobre o sistema de escrita, para planejar a ação educativa”, diz Giulianny Russo
Foto: arquivo pessoal

No Brasil há dois polos: os que trabalham a educação infantil como preparo para o ensino fundamental, trazendo os pré-requisitos para a alfabetização, e no extremo oposto, os que não permitem qualquer traço de leitura e escrita nas salas de aula. “Tenho visitado várias escolas que seguem a normativa de que não se pode alfabetizar na educação infantil, e não há marcas da escrita em sala de aula, e isso é muito sério”, relata Giulianny Russo, que atua no Centro de Estudos da Escola da Vila, em São Paulo, e é integrante da equipe pedagógica da Comunidade Educativa CEDAC (voltada ao apoio, formação e desenvolvimento de profissionais da educação pública brasileira). Ela explica que ao contrário das concepções mais tradicionais em que a alfabetização se define por aprender quais letras servem para escrever determinadas palavras, e a empregar a ordem correta dessas letras, a proposta que a psicóloga e pedagoga argentina Emília Ferreiro traz é de que a alfabetização é o processo pelo qual a criança passa a refletir sobre a linguagem escrita. “Quando uma mãe lê e conversa com seu bebê na barriga, é iniciado o processo de alfabetização, uma vez que ela aproxima o bebê do universo do escrito”, ilustra Giulianny. 

Ao atender crianças no consultório e como formadora em oficinas de linguagem, Giulianny, que também é fonoaudióloga, notou que as questões que grande parte trazia não eram patologias da fonoaudiologia, tampouco se tratava de entraves para aprendizagem decorrentes, por exemplo, de dislexia ou atraso de linguagem. Eram questões relacionadas ao processo de escolarização. “Entende-se que uma criança sabe ler e escrever quando consegue se comunicar por escrito. Não basta saber codificar e decodificar, é preciso ler e compreender o que foi lido, e isso tudo faz parte do processo de alfabetização.”

Enxergar o benefício da diversidade é crucial 

“Minha filha não conhece o a, e, i, o, u e na tarefa de casa a professora pede que ela junte as letras para formar as sílabas. Isso faz uma confusão na cabeça dela”, expõe Keyla Cristina Holanda, de Goiânia, mãe de Helloísa de seis anos. “Estão atropelando a Helloísa e ela está com muita dificuldade para aprender”, reclama a mãe. 

A diversidade de saberes dentro de uma sala de aula é vista como positiva para que as trocas aconteçam. Com a pandemia da covid-19 essa heterogeneidade foi acentuada e há muitas salas de aula onde metade das crianças estão na fase alfabética e as demais na fase pré-silábica. Diante de um cenário tão diverso, a escolha de uma proposta para a sala de aula se torna um desafio muito grande, principalmente quando a professora trabalha sozinha como ocorre na rede pública. 

Helloísa é aluna de uma escola pública e a mãe explica que ela conta de um a 10, mas não reconhece o símbolo numérico quando o vê. 

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“A escola diz que não é meu papel ensinar a lição para a Hellô, mas continua enviando para casa lições que ela não teve a oportunidade de aprender”, desabafa Keyla Cristina Holanda
Foto: arquivo pessoal

Giulianny Russo ensina a trabalhar com grupos heterogêneos, orientando os professores para que conversem com as crianças sobre como elas podem ajudar os colegas. O professor faz as intervenções usando principalmente as palavras estáveis da sala de aula, como os nomes próprios, a escrita da rotina e outras listas. “A criança precisa escrever a palavra macaco. Neste caso eu não preciso ditar a letra “m” e a letra “a”, eu posso levá-la a pensar sobre a palavra, instigando-a, chamando-a a olhar para o nome da sua amiga Mariana, por exemplo”, ensina. O aluno que precisa avançar na leitura e na escrita se beneficia dessa estratégia, já o que é alfabético vai se tornando mais consciente do procedimento e passa a usá-lo em outros contextos, esclarece.

“Através da cultura maker, do planejamento reverso e das metodologias ativas, que se baseiam na transmissão de informações entre pessoas e que sugerem estratégias para alcançar aprendizagens, colocamos nossos alunos como protagonistas, de modo que os estudantes que estavam mais avançados auxiliavam os colegas dentro da sala de aula”, legitima Fabya Alves, mestra em ciências da educação, sobre o plano de recuperação das salas de 1° e 2º anos do ensino fundamental do Colégio Anísio Teixeira.


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A avaliação ou sondagem mostra o que a criança já construiu como saber para que aconteça a intervenção do professor e assim avançar. “Essa avaliação é essencial, pois é imprescindível enxergar o que ela sabe sobre o sistema de escrita, para que eu possa pensar nas minhas propostas e intervenções, para planejar a ação educativa”, ressalta Giulianny.

“No dia da reunião pude notar que todos os pais estão na mesma situação que eu, aflitos em relação às tarefas”, desabafa Keyla. “A maioria das mães e pais trabalha fora de casa e não consegue dar nenhum respaldo com a lição”, continua a mãe de Helloísa, que se angustia com a quantidade de tarefas que a filha não consegue realizar, e que nem sempre sabe orientar. “A escola diz que não é meu papel ensinar a lição para a Hellô, mas continua enviando para casa lições que ela não teve a oportunidade de aprender, pois ficou dois anos em casa, sem aulas”, lamenta Keyla. 

“Eu não vou recuperar uma casa que nunca comprei, uma joia que não ganhei, eu só vou recuperar aquilo que já tive”, argumenta Giulianny. “A ideia da recuperação é assim: a criança fez, não conseguiu, então ela tem a oportunidade de recuperar algo a ela teve acesso”, continua a pedagoga, lembrando que as crianças que ficaram dois anos sem aulas não tiveram acesso a nada, portanto, não estão recuperando a aprendizagem. “Faz mais sentido falar de oportunidades de aprendizagem, já que não tiveram essa oportunidade em 2020 e em 2021”, associa.

Ao encontrar uma sala de aula heterogênea em relação às aprendizagens dos alunos, os professores do Colégio Anísio Teixeira, na Bahia, decidiram atuar no nivelamento da classe e pararam imediatamente o trabalho com o livro didático e com o andamento pedagógico e curricular destinados àquela determinada série. “Passamos a analisar o que cada aluno tinha de aprendizado para nos trazer. Feito o diagnóstico, trabalhamos na adaptação dos conteúdos, voltando para o ponto onde haviam parado para que acompanhassem o que era ministrado e se motivassem novamente”, expõe Fabya.

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“Passamos a analisar o que cada aluno tinha de aprendizado, para então trabalharmos a adaptação dos conteúdos e recuperarmos a autoestima e a motivação”
Foto: divulgação

Toda a cobrança recai sobre o professor

A coordenação pedagógica, a gestão da escola e as secretarias de educação também são responsáveis pelo processo de recuperação das aprendizagens dos alunos. Essa atuação deve ser compartilhada. Redução do número de alunos em sala, um assistente na classe para auxiliar o professor, materiais de apoio dentro da sala de aula e formação continuada para os docentes compõem melhores condições de trabalho. “A grande questão da alfabetização são as políticas públicas. É preciso uma política pública que seja consistente, que permaneça por um tempo, que não mude a cada governo”, propõe Giulianny. “O papel do professor é essencial, mas a escola precisa garantir condições para que o professor consiga realizar um bom trabalho. A alfabetização é algo desafiador”, finaliza.

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Autor

Karen Cardial


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