NOTÍCIA
A constante autocobrança, o anseio por ser impecável e manter a vida sob controle podem surtir efeito contrário
Publicado em 05/05/2022
Da revista Mente e Cérebro: O candidato a uma vaga de trabalho que opta pelo caminho (aparentemente) seguro de dizer que seu principal “defeito” é o perfeccionismo, na tentativa de impressionar o entrevistador, certamente não sabe que pode estar escolhendo um caminho perigoso. Afinal, exigir excelência máxima de si mesmo (e frequentemente também dos outros) costuma deflagrar expectativas vinculadas ao medo do fracasso e da perda. Ansiosa, a pessoa tende a se desencorajar por não atender aos padrões que se impõe, já que o alto grau de exigência aparece aliado à baixa tolerância à possibilidade de cometer erros. Resultado: reluta em completar tarefas e assumir desafios.
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Na prática, o excesso de autocobrança costuma produzir ineficiência, causar atrasos, dificuldade de cumprir prazos, sobrecarga de trabalho e até mesmo resultados medíocres, em comparação ao que poderia produzir se a tranquilidade fosse mantida. Embora a constante sensação de insatisfação não caracterize, por si só, um quadro que possa ser diagnosticado, aparece como sintoma que merece receber atenção e um processo psicoterápico. Não raro, a busca constante pela excelência pode ainda prejudicar relacionamentos e faz mal não só à saúde mental, mas também ao corpo, causando aumento de pressão, enxaqueca e dores musculares associadas ao estresse.
O comportamento tem sido associado a anorexia, distúrbio obsessivo-compulsivo, ansiedade social, bloqueio criativo, depressão, compulsões e alcoolismo. Apostando que tendências perfeccionistas podem ser usadas de maneira saudável, nos últimos anos alguns pesquisadores têm se empenhado em desenvolver ferramentas para analisar e medir tanto benefícios quanto aspectos prejudiciais da constante preocupação de atingir (o que a pessoa supõe ser) a perfeição.
Mas não é de hoje que o perfeccionismo chama a atenção de psicólogos. No artigo O script perfeito para a autoderrota, de 1980, o psiquiatra David D. Burns escreveu que, quando alguém busca desesperadamente atingir um objetivo e acertar (em geral tomando como parâmetro um referencial alheio), a qualidade da vivência propriamente dita pode se perder. Segundo ele, o “tiro costuma sair pela culatra”; as pessoas medem o seu próprio valor inteiramente em termos de produtividade e realização, comparando-se com outras pessoas, sem se voltar para os próprios desejos, história e condições em dado momento.
Vulneráveis à perda da autoestima e às dolorosas mudanças de humor após qualquer contratempo, os perfeccionistas correm o risco de se dedicar aos objetivos de forma inconsistente, adotar hábitos ineficientes que prejudicam seu real desempenho e trabalhar lentamente, sofrendo para definir cada detalhe e gastando muito mais tempo em um projeto do que ele merece – e, muitas vezes, sem nenhum benefício adicional.
Eles adiam atividades porque os projetos que deveriam ser perfeitos, muitas vezes, parecem assustadores. Há, em alguns casos, uma lógica defensiva nessa atitude: ao investir pouco tempo e energia em algo (como estudar para uma prova ou preparar uma apresentação de projeto, por exemplo), a pessoa pode dar a si mesma a justificativa de que se tivesse se empenhado mais poderia atingir seu objetivo. Talvez isso até se comprovasse, mas o que se tem, concretamente, é a frustração.
Um estudo de 2003 apontou para os perigos psicológicos de aspirações irracionais, que podem levar as pessoas ao fracasso. Uma equipe liderada pelo psicólogo Peter J. Bieling, da Universidade McMaster, em Ontário, avaliou características de personalidade de 198 estudantes. Em seguida, os pesquisadores perguntaram a nota que gostariam de alcançar em médio prazo. Aqueles que apresentavam traços perfeccionistas traçaram objetivos mais altos que os demais, embora os destes últimos não fossem necessariamente melhores. Os perfeccionistas, porém, eram muito mais propensos a ficar aquém de suas ambições e, em vez de ajustar suas expectativas à realidade quando não conseguiram alcançar as notas planejadas, insistiram em manter ou até mesmo aumentar a dificuldade para o próximo exame – o que fortalecia a sensação de insatisfação.
Diferentemente do que muitos imaginam, ninguém é perfeccionista em todas as situações ou áreas da vida. Algumas pessoas são muito exigentes a respeito da limpeza da casa, outras se concentram no trabalho ou na aparência física, por exemplo. Essas tendências podem ser especialmente evidentes quando as apostas são altas. Há alguns anos, o psicólogo Randy O. Geada, da Smith College, e sua então aluna Patricia Marten DiBartolo (atualmente também psicóloga da Smith College) pediram a 51 estudantes universitárias, algumas com altos escores em uma escala que mede perfeccionismo, que reescrevessem um parágrafo de um livro.
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Os pesquisadores acompanharam as variações do estado emocional das participantes antes e depois da tarefa. As voluntárias muito perfeccionistas realizaram a tarefa tranquilamente no momento em que a pressão estava baixa. Mas, quando foi dito a elas que o trabalho seria corrigido e comparado com o de outras pessoas, as participantes do experimento passaram a considerar a tarefa mais importante e se sentiram mais angustiadas que as demais participantes.
Em geral, a escrita das perfeccionistas foi inferior, provavelmente porque, temendo críticas, elas evitaram a oportunidade de ter um feedback e, consequentemente, procuraram se expor o mínimo possível. Essa constatação corrobora a opinião de outros psicólogos: à medida que aumenta a diferença entre as expectativas e os resultados, os perfeccionistas perdem cada vez mais a autoconfiança, o que os leva a evitar novos desafios.
Ironicamente, quanto maior ênfase colocam na excelência, mais se sentem perseguidos e podem minar oportunidades de sucesso. Os pesquisadores Paul L. Hewitt, da Universidade de British Columbia, e L. Gordon Flett, da Universidade de York em Toronto, chamam o fenômeno de “paradoxo do perfeccionismo”. Como disse Voltaire: “O melhor é o inimigo do bom”.
A autoexigência extrema tem raízes na infância. Muitas vezes aparece como resultado da forte cobrança dos pais ou à sobrecarga emocional a que foram expostas. Embora não seja uma regra, é muito frequente que primogênitos encarregados pelas figuras parentais de responsabilidades, muitas vezes excessivas para sua idade, tendam a se sentir incapazes de dar conta do que lhes foi atribuído e a carregar essa marca para a vida adulta, o que acarreta grande sensação de insuficiência – ainda que os dados concretos contradigam essa impressão. Por outro lado, filhos de pais negligentes podem imaginar que se fizerem tudo certo terão maiores chances de serem notados – e amados. Há ainda casos de crianças que vivem em um lar caótico e podem tentar ser perfeitas como uma forma de estabelecer algum controle sobre um ambiente imprevisível e, não raro, assustador. Além disso, costumamos reproduzir modelos: pais perfeccionistas têm grandes possibilidades de criar filhos com a mesma característica.
“Inicialmente, as crianças podem descobrir que o perfeccionismo é útil e se tornam, por exemplo, excelentes alunos para serem recompensados e, de fato, quanto mais se dedicam, mais se tornam meticulosos e melhores no que fazem”, diz a psicóloga Roz Shafran, pesquisadora da Universidade de Reading, na Inglaterra. Mas, então, a situação muda: as crianças crescem, vão para a universidade, para o mercado de trabalho, e descobrem que há variáveis demais para controlar; percebem que às vezes vão se dar bem, mas não sempre. “É aí que surge o sentimento de que não são bons o suficiente e, para tentar ‘arrumar’ a situação, alguns podem ficar acordados a noite inteira, outros somatizam e muitos caem em depressão”, afirma Roz.
O perfeccionismo também pode atrapalhar as pessoas quando aparece em áreas “inadequadas” da vida. Quando uma jovem decide colocar todo seu foco no objetivo de fazer dieta, por exemplo, é possível que, em certas condições, essa devoção a leve ao desenvolvimento de anorexia. Além disso, algumas manifestações de perfeccionismo podem ser especialmente problemáticas para relacionamentos.
Hewitt e Flett desenvolveram uma escala que identifica perfeccionistas orientados socialmente (socially prescribed), que se sentem atormentados pelas altas expectativas daqueles com quem convivem e temem desapontar, e os perfeccionistas orientados pelos outros (other-oriented), que observam as pessoas ao redor para intimidá-las e superá-las e, assim, se sentirem mais capazes. A ferramenta Adaptação da Escala (quase) Perfeita, um teste sem pretensão de oferecer diagnósticos, pode ajudar as pessoas a entenderem como lidam com a próprias autoexigências.