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Miguel Thompson

Em memória

Publicado em 05/08/2020

O Enem é adequado para avaliar a formação integral?

No Brasil, a influência das avaliações pré-vestibulares inibe muito iniciativas inovadoras das escolas

Uma das grandes novidades trazidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi o destaque dado à formação integral. No mundo educacional, desde Sócrates, Platão e Aristóteles, a ideia de autoconhecimento, investigação, formação crítica, cidadania e comportamento ético vem se afirmando a partir de gerações de educadores. Portanto, não é uma ideia nova a formação de um sujeito complexo.

Mas, o que teria acontecido ao longo da história da educação para que fosse atribuída aos currículos escolares a predominância dos aspectos cognitivos como o conhecimento conceitual e as habilidades do bem pensar?


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Se os três mosqueteiros gregos citados acima trouxeram uma transformação na forma como o ser humano se situa no planeta, não podemos negar que eles também deram grande peso à razão como fonte de conhecimento. Somamos aí o quarto mosqueteiro, René Descartes, e ao movimento Iluminista do século XVIII e temos nesse contexto toda a concepção ocidental de aprendizagem. Esse modelo foi muito importante para que pudéssemos avançar enquanto espécie construtora de cultura, mas também trouxe muitos problemas. A razão eminentemente técnica causa a destruição ambiental, a formação de um fosso distributivo de renda e o isolamento dos seres humanos a um plano individual e muitas vezes, individualista.

Passado e presente

Em resumo, o século XX foi um período no qual a pedagogia, a filosofia, a psicanálise e, mais recentemente, a neurociência, deram um grande salto em relação às possibilidades de aprendizado e formação dos indivíduos. Aspectos associados às emoções, intuição e subjetividade foram levados a um novo patamar para o planejamento do desenvolvimento humano. A ideia de um mundo complexo se firmou e contaminou as teorias curriculares. No entanto, as escolas se movimentam lentamente em torno desses novos paradigmas.

No Brasil, a influência das avaliações pré-vestibulares inibe muito iniciativas inovadoras das escolas. Não é incomum que pais perguntem já na educação infantil o ranking da escola no Enem.

Dessa forma, há um forte descompasso entre o que as reformas curriculares propõem e as avaliações em escala que aplicamos em nossos estudantes. Se o Enem inicialmente insinuou a possibilidade de fazer uma avaliação mais acurada das competências dos estudantes, tornando-a mais focada em uma análise mais sofisticada dos mesmos, desde que se transformou em um grande vestibular perdeu muito de suas características originárias. O próprio Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Básico (Saeb), por exemplo, segue o mesmo caminho cognitivista do Enem. Mesmo que sofisticássemos muito essas avaliações em escala, jamais exames de múltipla escolha abarcariam as várias dimensões que as reformas educacionais brasileiras propõem.

Desconexão

Aliás, das dez competências gerais da BNCC, contemplamos apenas três de maneira abrangente nas avaliações em escala (conhecimento, repertório cultural e argumentação) e de maneira parcial outras três (pensamento científico, crítico e criativo e comunicação, reponsabilidade social e cidadania), justamente pela dificuldade  em avaliar a  criatividade, a  comunicação oral e outras formas de comunicação não literária. Finalmente, avaliamos pouco ou não avaliamos as competências da cultura digital, o trabalho e projeto de vida, o autoconhecimento e autocuidado, a empatia e a cooperação. Os vícios dessas avaliações devem ser urgentemente revistos, principalmente no momento em que estamos discutindo as novas matrizes do Enem e do Saeb. Como podemos implementar um projeto de reforma curricular se as avaliações atuais não valorizam a maior parte das principais competências gerais da BNCC?

Ainda há outros fatores que causam dificuldade na formação integral dos nossos jovens a partir da escola, como o marketing associado aos rankings do Enem ou aos resultados dos municípios no Saeb.

Pressões mercadológicas e políticas vêm pondo em risco projetos educacionais historicamente comprometidos com o humanismo e com vínculos éticos mais profundos com a sociedade. Algumas escolas que têm o Enem como principal elemento pedagógico acabam hipertrofiando seus projetos educativos ao conhecimento conceitual e habilidades cognitivas, deixando muitas vezes outras dimensões das dez competências gerais da BNCC em segundo plano.


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Dialogar com a realidade

Evidente que devemos valorizar o sucesso dos nossos alunos nesses exames. Mas devemos demonstrar às famílias e à sociedade que esses são apenas alguns dos aspectos de uma avaliação. Sendo assim, os departamentos de comunicação institucionais devem também se esforçar para apresentar outros elementos da formação humana, como capacidade de comunicação, colaboração, vínculos políticos às questões sociais e atitudes adequadas ao meio ambiente. Atividades artísticas relacionadas à performance são cada vez mais decisivas para a inserção dos jovens em um mundo VUCA (acrônimo em inglês que significa volátil, incerto, complexo e ambíguo), que exige improvisos, respostas rápidas e autoestima elevada para o enfrentamento de um tempo de incertezas.

Demonstrar aos pais a importância de todos esses conhecimentos e competências para inserir os jovens em uma realidade complexa é decisivo para que as famílias valorizem mais o trabalho da escola além do âmbito lógico-literário. Muitas das competências necessárias para o mundo do trabalho e de uma cidadania ativa estão bem distantes dos testes de múltipla escolha. O falante competente, o trabalhador cooperativo, o cidadão empático e ético ou o parceiro curioso e insistente na resolução de problemas contribuem decisivamente para que façamos uma vida individual e social mais eficiente.

Focar os aspectos da investigação, da estética e da ética são imperativos para que possamos sair da crise democrática que enfrentamos, da marginalidade em que nos encontramos mundialmente em termos de inovação e das relações pouco virtuosas que vimos revelar-se de maneira mais aguda com a crise do novo coronavírus.

Os caminhos

Nesse sentido, mudanças nas avaliações institucionais, como vem propondo o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), incluem questões discursivas, a criatividade e o trabalho cooperativo. Associadas às avaliações processuais formativas, tornam-se mais adequadas para aferir se os jovens estão preparados para o mundo contemporâneo e como podemos ajudá-los.  Da mesma forma, muitas universidades americanas têm questionado o modelo que tenha como predominância o SAT, um dos exames vestibulares norte-americanos, somando às avaliações de múltipla escolha a produção de textos, análise de currículos individuais e o trabalho voluntário.


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No Brasil, algumas faculdades particulares como Insper, a Faculdade de Medicina do Hospital Albert Einstein e Fundação Getulio Vargas elaboram avaliações focadas em competências que extrapolam o modelo lógico-linguístico, abarcando outras competências. Já surgem propostas de coletas das informações geradas pelas escolas e que podem ser somadas ao Saeb, como uma grande plataforma integrada com as atividades avaliativas cotidiana, conectando a avaliação formativa à institucional, como propõe o professor José Francisco Soares. Segundo o professor Chico, as avaliações educacionais só são legítimas se tiverem o compromisso com a formação integral dos estudantes.

Assim, é muito importante que se entenda que a BNCC e a Reforma do Ensino Médio apontam para um caminho de ampliação das intenções educacionais da escola e que devemos ficar atentos às formas de avaliação dessa integralidade, alterando maneiras de avaliar e que de fato diagnostiquem e influenciem todo processo de formação dos jovens, como sonharam os primeiros educadores gregos e os educadores de todos os tempos.

Referência:

Soares, J. F. Avaliação Formativa. www.linkedin.com São Paulo, 23 de junho de 2020. Visitado em 20 de juho de 2020.

Soares, J. F. O Saeb e a BNCC. www.linkedin. São Paulo, 20 de maio de 2020. Visitado em 20 de julho de 2020.

Miguel Thompson é diretor acadêmico da Fundação Santillana e presidente do Conselho Editorial da Educação.

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