NOTÍCIA

Edição 265

Competências híbridas: o que são criatividade e pensamento crítico

Em entrevista, a especialista em educação integral do Instituto Ayrton Senna, Cynthia Sanches, fala dessas duas competências que envolvem tanto aspectos socioemocionais quanto cognitivos e a importância de desenvolvê-las na escola

Publicado em 27/03/2020

por Laura Rachid

Cynthia Sanches -ayrton senna "O pensamento crítico e a criatividade são competências não socioemocionais, a gente chama de híbridas", Cynthia Sanches (foto: divulgação)

Quando a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) aponta as dez competências gerais e as habilidades socioemocionais como fundamentais para o desenvolvimento do aluno, isso quer dizer que o debate sobre a importância de formar um ser humano integral está praticamente superado. Contudo, compreender o que são essas competências e habilidades ainda se faz necessário para assim, visualizar como colocá-las em prática no dia a dia escolar.


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Sabendo da importância dessa compreensão e indo além, no início de março, o Instituto Ayrton Senna organizou, na capital paulista, o Seminário Internacional Criatividade e Pensamento Crítico na Escola, que reuniu pesquisadores brasileiros e estrangeiros em palestras e debates destinados a formuladores de políticas públicas e educadores em geral. Em entrevista à Educação, Cynthia Sanches, especialista em educação integral do Ayrton Senna, explica os motivos dessas duas competências estarem recebendo destaque, conta ainda sobre a contribuição do Instituto para a educação do país, quais as características que a escola do século XXI deveria ter, entre outros assuntos. Confira.

Qual a sua contribuição no Instituto Ayrton Senna?

Atuo em uma área em que desenvolvemos protótipos educacionais. Estou à frente de um time em que a gente trabalha com essas novas ideias e com elementos das pesquisas que o próprio Instituto já realiza. Faço parte da diretoria de educação e inovação. No meu time a gente trabalha, basicamente, com conhecimentos da área da educação, pedagogia, em interlocução e interface com a área de pesquisa. O Instituto tem uma frente de pesquisa, inclusive, vários desses pesquisadores parceiros nossos estiveram no seminário [que aconteceu em 5 de março]. A gente tem uma preocupação de fazer projetos que sejam pautados em evidências, construindo assim, um diálogo entre as ciências.

De que maneira, encontros como o Seminário Internacional Criatividade e Pensamento Crítico na Escola, auxiliam efetivamente na educação brasileira? É uma contribuição imediata ou a longo prazo — caso implique em quebra de paradigmas?

O Instituto tem 25 anos e tem como histórico a busca por temas que pretendem alargar uma fronteira no que diz respeito à qualidade da educação. Agora trazemos um olhar com base na ciência sobre o que sabemos hoje de duas competências que são muito importantes para a educação integral e para a formação dos estudantes neste século, o pensamento crítico e a criatividade. Sendo assim, esse seminário é uma contribuição imediata muito valiosa, porque ele traz uma atualização sobre o tema e ainda colocou em contato pesquisadores do mundo todo em mesas redondas e palestras. Mas é também uma contribuição a longo prazo, porque sabemos que para as políticas educacionais serem efetivas existem processos. A própria Base Nacional Comum Curricular, que é o nosso último documento, diz o que é educação e como as secretarias de Educação devem se alinhar ao que é esperado em termos de aprendizagens mínimas aos estudantes. Ela também descreve alguns objetivos de desenvolvimento, que são as dez competências gerais e ao longo do texto, fala fortemente sobre pensamento crítico e criatividade.

Sabemos que, para essa política da Base Nacional ser efetivada nas escolas, tem um caminho que as secretarias já iniciaram ano passado, que é a revisão de currículos e os processos de formação dos professores. Então acho que temos uma contribuição imediata, mas isso vai gerar frutos a longo prazo também.

Criatividade e pensamento crítico são algumas das competências socioemocionais. Por que essas duas estão recebendo destaque? Em entrevista recente à Folha de S.Paulo, Andreas Schleicher, diretor de educação da OCDE, destaca as mudanças sociais oriundas da automatização/ tecnologia. Você vai na mesma linha?

Sabemos que o mundo do trabalho passa por outra revolução por conta da inteligência artificial e, consequentemente, das novas profissões. Há determinadas competências que hoje vemos máquinas executando e que o ser humano já não é necessário. Então sim, o desenvolvimento de competências que são tipicamente próprias do homem como pensar criticamente e ser criativo devem ser objetivo de desenvolvimento intencional — intencional, essa palavra é importante —, nas escolas. Mas não só por isso.

O pensamento crítico e a criatividade são competências não socioemocionais, a gente chama de híbridas. Por que são híbridas? Porque misturam tanto aspectos que são de natureza socioemocional, que tem a ver com a relação consigo mesmo, com o outro, abertura para o novo, capacidade de autogestão; mas também misturam competências da ordem cognitiva. Se pudéssemos pegar uma lupa para ver o que tem dentro dessas duas competências híbridas veríamos uma mistura entre estar aberto ao novo no sentido de ter curiosidade para aprender, ter disposição para buscar novos entendimentos sobre pontos de vistas e temas, sair da zona de conforto; mas também no que diz respeito à estruturação do pensamento lógico, ser assertivo.

Essas são tão importantes quanto as demais competências cognitivas, mas podemos destacar, por exemplo, que saber pesquisar, lidar com informações conflituosas e tomar opinião são características de domínio do pensamento crítico para não ser uma pessoa submissa ou passiva frente aos contextos de muitas informações que hoje recebemos. Ao mesmo tempo, a criatividade é uma competência que permite que a gente possa encontrar soluções para desafios que vivenciamos no dia a dia. Então, como mobilizo minha capacidade criativa junto a um grupo, seja escola ou fora, para resolver determinados problemas? Essas duas competências dizem muito respeito ao que vivemos enquanto sociedade. O Instituto vem pesquisando sobre criatividade e pensamento crítico há cinco anos.

Qual a importância de desenvolver as habilidades socioemocionais no aluno e qual o impacto para a sociedade?

Quando a gente faz uma leitura das dez competências gerais é possível ver ali um perfil de estudante que a gente gostaria de formar. Essas competências socioemocionais e cognitivas aparecem no texto sempre articuladas a um contexto e a alguns princípios éticos, políticos e estéticos que a educação já vem construindo desde as Diretrizes Curriculares Nacionais [DCNs]. Por exemplo, ‘desenvolver, exercitar o pensamento crítico e criativo para resolver dilemas da vida comum’. Então qual é o impacto? Enquanto país, a gente pensa que essas competências gerais constituem uma grande inovação que a Base trouxe para dentro do debate da educação que é, justamente, a proposta de que uma educação integral pode contribuir para a formação de pessoas que sejam críticas, participativas, que estejam em linha com os desafios contemporâneos em relação ao meio ambiente e ao uso de tecnologias de maneira responsável. Não se trata de um desenvolvimento autocentrado, mas é um desenvolvimento em relação à vida em sociedade e à vida do cidadão. Em médio a longo prazo você tem um impacto na vida dos cidadãos que estarão aí construindo o Brasil.

Com a BNCC levando as escolas a trabalharem competências socioemocionais, como fica o Enem e demais sistemas de avaliação, como as provas que individualmente cada escola aplica? Indo na linha de um ser humano integral, livre e criativo, essas avaliações também não precisam sofrer mudanças?

Sim. Acho que podemos falar em dois níveis. O primeiro é a avaliação no âmbito da escola, que tem como objetivo promover um processo de acompanhamento do estudante para sua aprendizagem e desenvolvimento e que já vem recebendo muita discussão para não ser um instrumento de barganha de nota, de punição.

Quando a gente fala em avaliação em âmbito de políticas públicas isso também precisa ser revisto. A própria Base já teve uma fase em que os estados e municípios fizeram a revisão dos seus currículos de educação infantil e ensino fundamental, agora será feita no médio. O impacto dessa revisão escolar se desdobrará na formação de professores e também nos processos de avaliação. O Enem já tem uma discussão em alguns âmbitos do quanto que pode avaliar para além do conteúdo e já está avaliando alguns tipos de competências um pouco mais complexas do que a mera memorização, ainda que cognitivas.

Então a gente já vem superando a discussão de avaliação como memorização. Acho que agora a discussão é como podemos utilizar informações de desenvolvimento de competências pensando no âmbito da escola e na maior personificação da aprendizagem para o estudante. Já no âmbito de políticas públicas o foco é em como podemos cada vez mais calibrar o que a gente está ofertando para as escolas e estudantes de acordo com o que os dados das implementações vão mostrando. Não achamos que a prova é ruim. Não se trata de substituir algo por outro. A prova pode servir para alguns propósitos, o problema é quando não existe diversificação de instrumentos de avaliação e a prova é o único.


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Os sistemas de ensino limitam a criatividade dos professores e, consequentemente, dos alunos ou podem auxiliar, uma vez que hoje estão alinhados à BNCC?

É importante que os professores utilizem os materiais, livros didáticos e outros recursos sempre com o intuito de incrementar sua aula e seu planejamento. Mas o ideal é que eles não sejam o único fio condutor. A atuação do professor precisa ir além do que está sendo sugerido, ele pode, por exemplo, acrescentar à sua aula recursos digitais que encontrar em uma busca na internet — se tiver acesso — ou oferecer espaço para os alunos fazerem pesquisas. O desafio é tornar a aprendizagem mais ativa e não presa aos livros didáticos.

Diante de tantas transformações, a escola ainda está agarrada a raízes antigas, por exemplo, a forma como o conhecimento é transmitido e avaliado. Como o Instituto Ayrton Senna enxerga que deve ser a atuação da escola do século XXI?

Essa discussão da escola como meio transmissivo e memorizador por parte dos estudantes já é realmente um paradigma superado. Não existe um professor que concorde com aquela sala de aula passiva, extremamente silenciosa em que os estudantes estão ali, mas não estão participando. Uma escola do século XXI deveria ser uma escola em que os estudantes estão engajados na aprendizagem. Aprender é um valor. E isso não é uma novidade, temos teóricos e experiências na educação, como a Escola Nova, um dos primeiros movimentos formuladores de uma renovação na educação, que buscou superar esse ensino transmissivo e que data do início do século XX.

Mas o que acontece com a sociedade que ainda não consegue fazer com que essa escola seja realmente inclusiva, que respeite a diversidade, os ritmos e tempos de cada um para aprender e que deixe de lado o ensino massificado em que o professor dá o mesmo conteúdo por 50 minutos e ‘quem pegou, pegou’ e depois vamos ver na prova? A ciência vem mostrando para a gente como o cérebro humano aprende, que existem aprendizagens que são diferenciadas. Pessoas que aprendem mais lendo, outras ouvindo e até visualmente. Então uma escola do século XXI conhece como a criança e o adolescente aprende e dialoga com essas diferenças, ritmos e estilos de aprendizagens. É uma escola que o objetivo é desenvolver integralmente o estudante na sua dimensão intelectual, socioemocional, física, cultural e que ainda inclui a tecnologia como ferramenta, mas não fim. E que prepara esses estudantes para a vida ampla, da cidadania ao futuro profissional. Enquanto política pública, como esses formadores de política vão garantir condições para isso acontecer? Uma chave importante é a formação dos professores e sua valorização.

*O Instituto Ayrton Senna desenvolveu um guia sobre criatividade e pensamento crítico na escola. Clique aqui para acessá-lo.

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Laura Rachid


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