NOTÍCIA
Diretor do Instituto Ayrton Senna, ex-reitor e ex-secretário de Educação fala dos diálogos possíveis entre universidade, governos e terceiro setor
O químico, educador e escritor pernambucano Mozart Neves Ramos, 63 anos, nunca conviveu bem com a ideia de esperar as coisas acontecerem. Para ele, é sempre melhor fazer acontecer. Engenheiro Químico pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutor (pela Unicamp) e pós-doutor (pela Politécnica de Milão, na Itália) em Química, foi professor e reitor da universidade em que se graduou. Na reitoria, atraiu atenção e respeito ao conseguir fazer com que a UFPE fosse avaliada com parâmetros europeus e americanos. Em seguida, liderou projetos importantes para a educação básica como secretário de Educação de Pernambuco. Depois, entre outros cargos, ocupou as presidências do Todos Pela Educação e do Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed). Atualmente, é diretor de Articulação e Inovação do Instituto Ayrton Senna (IAS).
Como se estabeleceu a relação do senhor com o Instituto Ayrton Senna?
Faço parcerias com o IAS desde 2003 e sou diretor há cinco anos. No período em que fui secretário de Educação de Pernambuco, fomos o primeiro estado brasileiro a implantar os programas Se Liga e Acelera no total de municípios – ao todo, 184. Esse trabalho nos ajudou, entre outras coisas, a diminuir nossa taxa de distorção entre idade e série, que era de 48% quando assumi a secretaria, em 2003, para 22%. E a atenuar problemas graves de desempenho escolar e analfabetismo. Deixei a reitoria da UFPE para assumir a secretaria. Na época, o ministro da Educação, Paulo Renato, perguntou-me se eu tinha dimensão do tamanho das dificuldades que eu iria encontrar. Não sou filiado a partidos. Fui nomeado pelo que se chama de cota técnica.
Paulo Renato criou um forte modelo de avaliações, mas sem mecanismos eficientes para transformar o resultado dessas análises em melhorias na prática. Concorda?
Parcialmente. O sistema de avaliação, fortemente impulsionado na gestão do Paulo Renato, com a colaboração da Maria Helena Guimarães de Castro – que fez um trabalho elogiável no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, o Inep –, teve consequências importantes na pós-graduação. Nenhuma universidade chegou a ser fechada em graduação, mas na pós, vários cursos foram impedidos de continuar em função das avaliações ruins naquela escala de cinco níveis: A,B,C,D e E. O Paulo Renato, quando assumiu, criou o Provão…
Que foi bombardeado para depois servir de modelo nas gestões seguintes.
Foi outro degrau. O Paulo Renato era ótimo para pensar, mas não para implementar. A maneira paulista tucana de pensar é um negócio meio complicado. Eles pensam, logo existem, logo fazem, logo executam.
Qual foi o trabalho técnico desenvolvido pelo senhor na reitoria que chamou a atenção do mundo acadêmico e também do IAS?
Acho que o maior legado deixado pelo grupo que tive a honra de coordenar como reitor foi a introdução da UFPE no sistema de avaliações internacionais. Fomos a primeira universidade pública brasileira a fazer uma avaliação internacional no modelo europeu. Era um período em que as universidades federais tinham uma agenda muito negativa com o MEC, no governo Fernando Henrique, com embates sobre privatização e outras questões polêmicas, eu resolvi inovar. Pensei o seguinte: se eu queria colocar a UFPE entre as melhores universidades do país, e dar chances aos graduados, professores e pesquisadores de serem competitivos no emprego e na pesquisa em nível internacional, era preciso comprovar o valor do trabalho desenvolvido por nós por meio de parâmetros e avaliações internacionais.
Como isso foi feito?
Um ex-reitor da Universidade do Porto, Portugal, uma pessoa próxima, tinha criado, com um grupo de educadores, um mecanismo de avaliação das universidades europeias para que elas tivessem um padrão de qualidade comum, que permitisse, além da dupla titulação, a melhoria de qualidade de forma mais abrangente. Eles desenvolveram o sistema de avaliação e instituíram o Conselho de Reitores Europeus para chancelar a avaliação das universidades. Liguei para esse professor, ocupava uma das diretorias do conselho, e disse: ‘quero avaliar a UFPE no modelo que vocês desenvolveram’. Ele disse: “envie uma solicitação formal e eu a apresentarei na próxima reunião do conselho, em Paris”. Assim foi feito: mandei a solicitação, enviei todas as informações, o pedido foi aprovado e começamos a trabalhar. A UFPE fazia parte de um grupo de dez universidades brasileiras importantes, incluída a USP. Propus que todos nós participássemos da avaliação. Ninguém topou.
Eu e minha equipe criamos um planejamento estratégico de dez anos para a UFPE. Com isso, conseguimos gerar elogios e atrair recursos para programas num momento em que a suprema maioria das federais sofria com agendas negativas. Para que se tenha ideia, a partir desse critério de qualidade, consegui recursos e enviei, em 1998, 250 alunos para fazer, integralmente, cursos de graduação nas universidades espanholas de Valladolid e Salamanca – com avião fretado e tudo.
Vinte anos depois, percebe-se que Pernambuco se coloca entre os estados que melhor equacionaram os problemas na área. Isso é mérito seu?
Mérito de um time do qual faço parte. Tive ótimos quadros na reitoria. Tenho minha participação, mas foi um trabalho coletivo, que me levou, junto com alguns dessa equipe, para a Secretaria de Educação de Pernambuco. Graças a isso, entramos na secretaria pela porta da frente. Foi nosso passaporte.
Ceará e Pernambuco mostram que, apesar da série de dificuldades que todos conhecemos, é possível dar passos adiante na educação com rigor, esforço, gestão e criatividade.
Costumo brincar que, se fosse criado o estado de Cearabuco, seria perfeito para a busca de soluções na área. Os trabalhos que fizemos na secretaria, na área de alfabetização e de correção de distorção entre idade e série, infelizmente não foram continuados, e aí os problemas relacionados à alfabetização em Pernambuco retomaram força. Se Eduardo Campos e outros governadores tivessem alertado seus secretários para dar continuidade aos programas, não teria havido retrocesso. A distorção entre idade e série, por exemplo, que era de 48% quando entrei na secretaria, caiu para 22%, menos da metade, quatro anos depois. Se esses programas não tivessem sido interrompidos, Pernambuco certamente estaria no mesmo patamar atual do Ceará em relação aos primeiros anos de alfabetização.
Como o senhor analisa a evolução do Ceará na educação?
Graças ao regime de colaboração entre o estado e os municípios na área, o Ceará se posicionou como uma das referências nacionais de alfabetização e ensino nos anos iniciais e finais do fundamental. No médio, acho até que eles tentaram “importar” o nosso modelo, mas um pouco à frente cometeram um equívoco: colocaram turno integral, mas dividido entre regular, pela manhã, e técnico, à tarde. Se tivessem feito um pouco das duas coisas nos dois turnos, teriam bons resultados igualmente no médio. Então, Ceará está bem no fundamental, e Pernambuco, no médio. Por isso digo que o Cearabuco, para esta fase do país, seria o ideal. Os índices de avaliação do estado e da cidade de São Paulo, por exemplo, estão vergonhosos. No último ranking, a capital paulista ficou em 38º lugar entre os 39 municípios de sua região metropolitana, à frente apenas de Cotia. Nos anos iniciais do fundamental, ficou em 31º lugar. Uma cidade e um estado com esse porte, essa riqueza, esse parque de universidades, não pode tolerar resultados como esses.
Quais são as áreas de atuação do senhor na diretoria do IAS?
Nesses cinco anos tenho atuado na articulação política e institucional, comunicação e um pouco de inovação e tecnologia, mas nesses dois últimos quesitos há gente muito melhor do que eu lá. Quando eu não atrapalho está bom.
Como o senhor avaliava o IAS antes de se tornar seu diretor?
Sinceramente, admirava e tinha gratidão pelo instituto. E fica fácil perceber os motivos. Todo esse trabalho que fizemos nos quatro anos de secretaria de Educação de Pernambuco, premiado e vitorioso, teve forte incentivo e participação do IAS, o que fortaleceu minha relação com a Viviane [Senna, irmã de Ayrton e presidente do IAS].
Parte considerável das ONGs no Brasil trabalham em escala relativamente baixa em comparação ao volume de recursos públicos e isenções conquistados.
Concordo que muita gente abriu ONG para aproveitar a onda. Quando o Cristovam Buarque lançou a campanha para erradicar o analfabetismo no país, o que teve de gente que sequer sabia o que é alfabetizar abrindo ONG foi uma festa. Nós mesmos sofremos um pouco as consequências disso. Às vezes somos tidos como arrogantes ou seletivos quando recusamos ser parceiros em projetos. Mas as recusas, no nosso caso, ocorrem se não houver evidências de que a metodologia funciona. Ou se o projeto não funcionar em escala. As ações do IAS unem quantidade e qualidade. Infelizmente, como você destacou, muitas vezes não vemos isso em parte considerável das ONGs surgidas na onda.
Temos, por exemplo, o dilema de grande parte das fundações, que usam dinheiro público na forma de isenção e apresentam resultados pífios, às vezes nulos e quase sempre com pouca ou nenhuma avaliação.
Em alguns casos, nós fazemos parcerias com empresas que utilizam recursos com isenção para financiar projetos executados pelo IAS. Mas nós apresentamos e medimos os resultados. Em alguns casos nos envolvendo, os resultados são apresentados até em audiência pública. Então, quando uma fundação ou empresa consegue isenção, deve procurar uma ONG que apresente, comprove e mensure os resultados, porque dinheiro isento de fato é público e essa ladainha de alardear trabalho social com recurso não taxado sem medir resultado não pode se perpetuar.
É o que deveriam fazer todos que envolvem dinheiro isento de imposto em seus projetos, mesmo porque transformar uma escola ou uma pequena experiência em modelo é fácil. Dureza é transformar modelos em sistemas – e é disso que o país precisa, não é mesmo?
Correto, mas é preciso estabelecer e destacar uma diferença importante, definidora, ligada a essa observação. Uma coisa é implantar um método que resolva o problema de uma única unidade, piloto ou não, mas não mostre condição técnica, de custo, de reprodução em escala, ou todas essas coisas juntas, para ser replicada com viabilidade. Outra coisa, radicalmente distinta, é testar uma metodologia que resolva o problema da mesma forma e, além disso, exiba condição de gerar resultados e boa relação entre custo e benefício para reprodução em escala. Por isso, é preciso entender bem a diferença e a distância entre ter a metodologia e o projeto na mão, mesmo para coisas grandes, e implantar uma política pública. Para essa última, é preciso haver decisões e poderes mais abrangentes, que nem sempre dependem da ONG ou dos institutos. Agora, saber que por aí há dinheiro de renúncia fiscal aplicado em ONG que não gera e tampouco comprova resultado, em todas as áreas, isso a gente sabe que, infelizmente, existe.
Com tantos resultados ruins, o senhor acha que o Brasil, em termos de política pública de educação, fracassou?
Não. Depende do ponto para o qual você mira a lupa. Minha mãe faz essa pergunta para mim. O Brasil conseguiu colocar a criança na escola. Houve o Fundef, que teve um papel extraordinário. Acho que a Educação talvez seja, no Brasil, o setor que mais sofre com a falta de continuidade de projetos que deram bons resultados. Comentei aqui a questão do ensino médio em Pernambuco, onde houve continuidade, e de projetos do fundamental, que foram interrompidos. Temos um dos melhores, senão o melhor, sistemas de avaliação de pós-graduação do mundo. O Enem, em abrangência, só é menor, no mundo, do que o sistema chinês. Hoje ainda temos problemas sérios de aprendizagem nos anos finais do fundamental e no médio, mas desde 2003 estamos exibindo clara evolução em alfabetização, ensino infantil e primeiros anos do fundamental. Pode-se dizer que a situação está resolvida? Claro que não. Ainda precisamos gerar quantidade e qualidade na educação básica. Mas dizer que fracassamos, na abrangência do termo, seria exagerado e injusto.
A fotografia, sobretudo a da educação básica, ainda está longe de ter a nitidez necessária, apesar de termos triplicado o investimento por aluno nos últimos 20 anos. Algumas coisas poderiam ter diminuído essa frustração. Em primeiro lugar, a gente jamais profissionalizou a gestão da educação. Depois, vem a não responsabilização pela falta de apresentação do resultado. Sabe qual é o segredo do sucesso da educação no Ceará, além do projeto pedagógico belíssimo? Lá, a redistribuição do ICMS não é pelo número de crianças, mas sim pelo número de crianças alfabetizadas. No Brasil, a gente sempre dá e nunca cobra, libera e não pede contrapartida. A gente não consegue definir quem cobra de quem por um motivo simples: a corporação não deixa. É fundamental enfrentar a parte negativa da corporação que, sabemos, não é pequena.
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