ARTIGO
Inversão de sílabas, pronúncia de vocábulos, frases que parecem simplesmente “escapar” de nossos lábios e até estranhos esquecimentos pontuais mostram intenções que vão além do racional
Publicado em 21/07/2020
Algumas vezes cômicos, outras constrangedores, os lapsos verbais dificilmente passam despercebidos. Se o autor do deslize é famoso, na certa o episódio vai parar na internet. Nos últimos dias de dezembro, por exemplo, o apresentador da rede Globo William Bonner falava sobre um eclipse solar quando trocou a palavra “Lua” por “lula”. O erro foi cometido enquanto apareciam imagens do fenômeno.
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Porém, foi possível perceber que o apresentador notou o equívoco, pois riu e se corrigiu imediatamente. “Milhões de terráqueos que vivem na Ásia puderam testemunhar hoje um eclipse solar anular. A lula…a lula…a Lua (risos) se posicionou entre a Terra e o Sol”, disse Bonner. O engano repercutiu nas redes sociais e muitos associaram a falha à enorme preocupação do apresentador e da emissora com o reconhecimento que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva possa ter, a despeito da aparente antipatia da emissora por ele.
O fato é que, além da diversão que proporcionam ao público e do embaraço que causam aos autores, lapsos podem ser bastante intrigantes? Por que acontecem? O que podem nos dizer sobre o funcionamento da mente? Entre os precursores das pesquisas sobre lapsos de linguagem estão o filólogo Rudolf Meringer e o psiquiatra Karl Meyer, autores do livro Erros na fala e na leitura: um estudo psicológico, no qual constam cerca de 8.800 erros verbais de escrita e de leitura. O principal objetivo era elaborar classificações, mas os autores também tentaram determinar a existência de mecanismos psíquicos associados ao fenômeno, particularmente aos sons proferidos, pois atribuíam valor psicológico aos fonemas.
Sigmund Freud abordou o lapso com profundidade em Psicopatologia da vida cotidiana, de 1901. O pai da psicanálise não poupou críticas à abordagem de Meringer e Mayer e propôs que o lapso seria a confissão involuntária de um conflito interior, de um pensamento escondido em si mesmo e removido da consciência. Para Freud, é a dimensão involuntária que dá valor particular ao lapso. “No procedimento psicoterapêutico que utilizo para resolver e eliminar os sintomas neuróticos apresenta-se com frequência a tarefa de encontrar um conteúdo mental nos discursos e nas ideias aparentemente casuais do paciente”, escreveu.
Esse conteúdo tenta ocultar-se, mas não consegue evitar trair-se inadvertidamente de diversas maneiras. É para isso que, em geral, servem os lapsos. Por exemplo, falando da tia, um paciente insiste em chamá-la de ‘minha mãe’ sem perceber seu erro, ou ainda uma senhora que fala do marido como se fosse o ‘irmão’. Para esses pacientes, tia e mãe, marido e irmão são, portanto, ‘identificados’, ligados por uma associação pela qual se evocam mutuamente”, escreveu.
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Não há consenso sobre as interpretações psicológica e psicanalítica dos lapsos verbais ou “escorregões” da fala. Para alguns autores, a explicação freudiana dos lapsos é útil apenas em um número limitado de casos. Uma hipótese muito mais simples sugere que esse tipo de erro ocorre devido à complexidade cognitiva da linguagem. Segundo essa abordagem, os lapsos revelariam muito mais sobre sua estrutura e uso que sobre nossas intenções inconscientes. Hoje, algumas áreas da linguística e da psicolinguística consideram os equívocos fenômenos esperados no fluxo do discurso e os analisam como reflexos do mecanismo de produção da linguagem.
No entanto, não conseguem explicar por que, quando investigados mais a fundo, os tropeços invariavelmente esbarram em conteúdos psíquicos inconscientes. Essa constatação, entretanto, não elimina a evidência de que o lapso não é uma forma normal de comunicação, mas seu funcionamento fornece informações preciosas que ajudam a compreender certos aspectos cognitivos da fala. Isso não exclui, naturalmente, a interpretação freudiana, segundo a qual os lapsos expressam medos ou desejos que escondemos até de nós mesmos.
Experiências realizadas pelo pesquisador Michael T. Motley, da Universidade da Califórnia em Davis, ampliam o enfoque psicanalítico. Seu grupo elaborou uma série de testes que manipulavam os desejos dos sujeitos, induzindo-os a cometer enganos.
Grande parte do crédito à abordagem moderna do estudo dos lapsos cabe a Victoria Fromkin, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, que nos anos 60 deu início a um paciente trabalho de coleta de milhares de exemplos. De suas pesquisas conclui-se que os lapsos verbais seguem, em geral, as mesmas regras. A troca de palavras (por exemplo, “sacuda os pratos e lave a toalha”), observada quando se invertem dois vocábulos na mesma frase, ocorre quase sempre com termos que pertencem à mesma categoria gramatical ou sintática (verbos por verbos, substantivos por substantivos).
Já os lapsos de substituição, nos quais uma palavra é trocada por outra externa à frase, acontecem entre termos da mesma categoria semântica (“gato” no lugar de “cachorro”). É o caso, extremamente constrangedor, mas não raro, de alguém que vai ao velório e ao se dirigir à família do falecido diz “Parabéns” em vez de “Meus pêsames”.
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Existem também erros de deslocamento (de um ponto a outro na frase), de perseverança (reutilização de um elemento depois de sua colocação no lugar correto), de antecipação (utilização de palavra ou sílaba antes de sua colocação correta) ou de amálgama (união de dois elementos para formar um terceiro, quase sempre inexistente).
Um exemplo de lapso de perseverança é dizer que Roma foi fundada pelos irmãos “Rômolo e Rêmolo”, quando o correto é “Rômulo e Remo”.
Os enganos mais comuns implicam a troca de palavras e de fonemas, o que sugere que esses dois elementos são particularmente importantes na elaboração do discurso. No entanto, segundo a teoria linguística, existe uma hierarquia entre as várias unidades da linguagem (frase, palavra, morfema, sílaba, fonema), mas diversos tipos de lapsos podem ocorrer em qualquer um desses níveis.
Afinal, falar é uma tarefa cansativa. Uma verdadeira corrida contra o tempo. Escolhemos em média três palavras por segundo de um vocabulário de pelo menos 40 mil, que para serem pronunciadas recrutam aproximadamente 100 músculos. As possibilidades de errar, portanto, são inúmeras.
Algumas vezes cômicos, outras constrangedores, os lapsos de linguagem dificilmente passam despercebidos. Se o autor do deslize é famoso, na certa o episódio vai parar na internet. Nos últimos dias de dezembro, por exemplo, o apresentador da rede Globo William Bonner falava sobre um eclipse solar quando trocou a palavra “Lua” por “lula”. O erro foi cometido enquanto apareciam imagens do fenômeno.
Porém, foi possível perceber que o apresentador notou o equívoco, pois riu e se corrigiu imediatamente. “Milhões de terráqueos que vivem na Ásia puderam testemunhar hoje um eclipse solar anular. A lula…a lula…a Lua (risos) se posicionou entre a Terra e o Sol”, disse Bonner. O engano repercutiu nas redes sociais e muitos associaram a falha à enorme preocupação do apresentador e da emissora com o reconhecimento que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva possa ter, a despeito da aparente antipatia da emissora por ele.
O fato é que, além da diversão que proporcionam ao público e do embaraço que causam aos autores, lapsos verbais podem ser bastante intrigantes? Por que acontecem? O que podem nos dizer sobre o funcionamento da mente? Entre os precursores das pesquisas sobre lapsos de linguagem estão o filólogo Rudolf Meringer e o psiquiatra Karl Meyer, autores do livro Erros na fala e na leitura: um estudo psicológico, no qual constam cerca de 8.800 erros verbais de escrita e de leitura. O principal objetivo era elaborar classificações, mas os autores também tentaram determinar a existência de mecanismos psíquicos associados ao fenômeno, particularmente aos sons proferidos, pois atribuíam valor psicológico aos fonemas.
Sigmund Freud abordou o lapso com profundidade em Psicopatologia da vida cotidiana, de 1901. O pai da psicanálise não poupou críticas à abordagem de Meringer e Mayer e propôs que o lapso seria a confissão involuntária de um conflito interior, de um pensamento escondido em si mesmo e removido da consciência. Para Freud, é a dimensão involuntária que dá valor particular ao lapso. “No procedimento psicoterapêutico que utilizo para resolver e eliminar os sintomas neuróticos apresenta-se com frequência a tarefa de encontrar um conteúdo mental nos discursos e nas ideias aparentemente casuais do paciente”, escreveu.
Esse conteúdo tenta ocultar-se, mas não consegue evitar trair-se inadvertidamente de diversas maneiras. É para isso que, em geral, servem os lapsos. Por exemplo, falando da tia, um paciente insiste em chamá-la de ‘minha mãe’ sem perceber seu erro, ou ainda uma senhora que fala do marido como se fosse o ‘irmão’. Para esses pacientes, tia e mãe, marido e irmão são, portanto, ‘identificados’, ligados por uma associação pela qual se evocam mutuamente”, escreveu.
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Não há consenso sobre as interpretações psicológica e psicanalítica dos “escorregões” da fala. Para alguns autores, a explicação freudiana dos lapsos é útil apenas em um número limitado de casos. Uma hipótese muito mais simples sugere que esse tipo de erro ocorre devido à complexidade cognitiva da linguagem. Segundo essa abordagem, os lapsos revelariam muito mais sobre sua estrutura e uso que sobre nossas intenções inconscientes. Hoje, algumas áreas da linguística e da psicolinguística consideram os equívocos fenômenos esperados no fluxo do discurso e os analisam como reflexos do mecanismo de produção da linguagem.
No entanto, não conseguem explicar por que, quando investigados mais a fundo, os tropeços invariavelmente esbarram em conteúdos psíquicos inconscientes. Essa constatação, entretanto, não elimina a evidência de que o lapso não é uma forma normal de comunicação, mas seu funcionamento fornece informações preciosas que ajudam a compreender certos aspectos cognitivos da fala. Isso não exclui, naturalmente, a interpretação freudiana, segundo a qual os lapsos expressam medos ou desejos que escondemos até de nós mesmos.
Experiências realizadas pelo pesquisador Michael T. Motley, da Universidade da Califórnia em Davis, ampliam o enfoque psicanalítico. Seu grupo elaborou uma série de testes que manipulavam os desejos dos sujeitos, induzindo-os a cometer enganos.
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Grande parte do crédito à abordagem moderna do estudo dos lapsos verbais cabe a Victoria Fromkin, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, que nos anos 60 deu início a um paciente trabalho de coleta de milhares de exemplos. De suas pesquisas conclui-se que os lapsos verbais seguem, em geral, as mesmas regras. A troca de palavras (por exemplo, “sacuda os pratos e lave a toalha”), observada quando se invertem dois vocábulos na mesma frase, ocorre quase sempre com termos que pertencem à mesma categoria gramatical ou sintática (verbos por verbos, substantivos por substantivos).
Já os lapsos de substituição, nos quais uma palavra é trocada por outra externa à frase, acontecem entre termos da mesma categoria semântica (“gato” no lugar de “cachorro”). É o caso, extremamente constrangedor, mas não raro, de alguém que vai ao velório e ao se dirigir à família do falecido diz “Parabéns” em vez de “Meus pêsames”.
Existem também erros de deslocamento (de um ponto a outro na frase), de perseverança (reutilização de um elemento depois de sua colocação no lugar correto), de antecipação (utilização de palavra ou sílaba antes de sua colocação correta) ou de amálgama (união de dois elementos para formar um terceiro, quase sempre inexistente).
Um exemplo de lapso de perseverança é dizer que Roma foi fundada pelos irmãos “Rômolo e Rêmolo”, quando o correto é “Rômulo e Remo”.
Os enganos mais comuns implicam a troca de palavras e de fonemas, o que sugere que esses dois elementos são particularmente importantes na elaboração do discurso. No entanto, segundo a teoria linguística, existe uma hierarquia entre as várias unidades da linguagem (frase, palavra, morfema, sílaba, fonema), mas diversos tipos de lapsos podem ocorrer em qualquer um desses níveis.
Afinal, falar é uma tarefa cansativa. Uma verdadeira corrida contra o tempo. Escolhemos em média três palavras por segundo de um vocabulário de pelo menos 40 mil, que para serem pronunciadas recrutam aproximadamente 100 músculos. As possibilidades de errar, portanto, são inúmeras.
Muitos lapsos terminam em brincadeira. Foi o caso do sacerdote anglicano e professor da Universidade de Oxford William Spooner (1844-1930), cuja inclinação para trocar a primeira letra ou sílaba das palavras tornou-se célebre, dando origem a uma categoria particular de jogos de palavras chamados “spoonerismos”. São atribuídos a ele lapsos como tons of soil (toneladas de terra) em vez de sons of toil (filhos do sacrifício) e our queer dean (o nosso excêntrico presidente) no lugar de our dear queen (nossa prezada rainha).
O equivalente francês é a contrepèterie, espécie de jogo que parece ter sido introduzido na França pelo renascentista François Rabelais (1483-1553). Entre os notáveis praticantes dessa “arte da palavra” estão outros franceses, como o escritor Victor Hugo (1802-1885), o pintor e escultor Marcel Duchamp (1887-1968) e o poeta Jacques Prévert (1900-1977), autor do trocadilho Partir c’est mourir un peu/ Martyr c’est pourrir un peu (partir é morrer um pouco/ mártir é apodrecer um pouco).
Na língua portuguesa, quando um fonema (ou um de seus elementos) é deslocado de uma sílaba a outra (por exemplo, “tauba ‘, no lugar de tábua) fala-se em hipértese – fenômeno muito comum no modo de falar caipira. Se essa troca se estender à frase (como no divertido “transmimento de pensação”) temos a hipértese intervocabular. O que soaria apenas como uma brincadeira de palavras, uma informalidade jocosa da língua, tornou-se recurso literário nas mãos de escritores como Millôr Fernandes na fábula “A baposa e o rode”, escrita toda com spoonerismos. No poema “Diversonagens suspersas”, Paulo Leminski (1944-1989) juntou as palavras personagens, suspensas, dispersas para falar do fazer poético. Na literatura em geral, os erros linguísticos, longe de constranger, encantam e comovem. Como disse Leminski: “A única razão de ser da poesia é o antidiscurso. Poesia, num certo sentido, é o torto do discurso. O discurso torto”.
*Matéria da revista Mente e Cérebro.
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