NOTÍCIA

Educação no Mundo

O ajuste alemão

Desde que apresentou péssimos resultados no Pisa, a Alemanha busca alternativas ao seu sistema secular de ensino; os resultados, porém, estão sendo diversos

Publicado em 06/09/2013

por Rafael Targino, de Berlim

Como assim, não há divisão? Todos fazem a mesma escola até o final?”, questionou, incrédula, a professora alemã Gabriela Lehnen, quando informada pela reportagem da revista Educação de que os alunos brasileiros têm aulas até o final do ensino médio todos juntos, sem separação. A reação faz sentido na Alemanha: aos 9 ou dez anos de idade, os estudantes são separados em dois ou três tipos de escolas diferentes – e essa divisão é tão importante que pode determinar se o aluno vai para a faculdade ou não.

No país onde nasceu Johann Wolfgang von Goethe, o sistema escolar funciona assim pelo menos desde a época do império, no século 19 (apesar de ter modificado o nome de suas instituições durante o tempo). O aluno entra com seis anos de idade no ensino primário, chamado de Grundschule. Após quatro anos, o futuro dele começa a ser definido. Mas, mesmo após séculos de experiência, o modelo passou a ser questionado quando houve um choque em 2001: os resultados do primeiro Programa Internacional para Avaliação de Estudantes (Pisa) mostravam que os estudantes da Alemanha tinham desempenho abaixo da média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Como cada Bundesland (o equivalente aos estados no Brasil) tem independência para virar o esquema de ponta-cabeça, se assim o desejar, diferentes métodos foram (e estão sendo) testados, com resultados também diversos. Hoje, todos os 16 Bundesländer (plural de Bundesland), de uma forma ou outra, iniciaram algum processo/discussão de reforma. Se ainda não mudaram, já estão testando algo como “modelo” (caso da Renânia-Patinado, na questão da duração do Gymnasium) ou estão esperando o ano para começar a mudança (o caso de Schleswig-Holstein).
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O choque do Pisa
A divisão dos estudantes alemães depende do desempenho escolar, que determina a recomendação para um dos níveis seguintes: Hauptschule, que, a princípio, dura cinco anos; Realschule, de seis; ou o Gymnasium, que dura oito e permite ao estudante fazer o Abitur, uma espécie de prova final da educação básica e que dá a oportunidade de tentar uma vaga em uma universidade. O estudante que conclui a Hauptschule dificilmente consegue fazer um Abitur. Por isso, acaba geralmente indo a uma escola vocacional, voltada a profissões que não requerem forte especialização. Em tese, uma mudança da Hauptschule para o Gymnasium é possível; na prática, ela é bastante difícil. A Hauptschule tem uma péssima imagem na Alemanha, já que os “piores” alunos acabam lá.

Os resultados do Pisa 2000 (divulgados em 2001) mostraram que em leitura, por exemplo, a nota dos alunos alemães era ligeiramente maior à de Liechtenstein, um pequeno principado escondido entre a Áustria e a Suíça. Em matemática e ciências, a Alemanha ficou atrás da República Tcheca, um país quatro vezes menor e com um oitavo da população (a título de comparação, o Brasil teve a menor nota entre os 32 paí­ses avaliados). O resultado abriu um forte movimento de reformas no sistema alemão. “Foi um choque na Alemanha. As pessoas aqui acreditavam que o país era um modelo de educação para a Europa”, explica o professor Reiner Lehberger, da Faculdade de Pedagogia, Psicologia e Ciências do Movimento da Universidade de Hamburgo. As reformas em cada Bundesland têm, por tabela, levado a mudanças na idade em que os estudantes são separados. É o caso de Berlim, onde Lehnen dá aula. “[Mas] A separação dos alunos no sistema foi um tema lateral. A discussão se concentrou na melhoria do ensino”, afirma Lehberger.

Berlim: divisão também aos 16
Em 2009, o governo de Berlim decidiu mudar o seu sistema. Depois da Grundschule, havia cinco diferentes possibilidades para o aluno: além de Hauptschule, Real­schule e Gymnasium, existiam mais dois modelos que juntavam as diferentes modalidades em um só (Gesamtschule e Verbundene Haupt- und Realschule). A reforma simplificou o sistema: depois do primário, ou o estudante vai para o Gymnasium ou para a Integrierte Sekundarschule (escola secundária integrada).

A principal diferença no novo sistema da capital – governada atual­mente por uma coalizão entre o SPD (Partido Socialdemocrata da Alemanha, a principal oposição a Angela Merkel) e o próprio partido da chanceler alemã, a CDU (União Democrata-Cristã) – é que, mesmo frequentando a escola secundária integrada, o aluno tem a possibilidade de fazer o Abitur.  Na prática, isso significa que, ao invés de “cortar” a possibilidade logo aos 10 anos de o aluno entrar na faculdade, a opção pode acontecer também aos 16. Quem frequenta a nova escola integrada e quer fazer o Abitur precisa, além de bom desempenho acadêmico, fazer ao final da 10ª série um exame de conclusão (chamado Mittlerer Schulabschluss). Se for aprovado, o aluno pode passar para o nível seguinte e, depois de dois ou três anos, prestar a prova.

Segundo o departamento de educação de Berlim, a diferença entre o Gymnasium e Integrierte Sekundarschule é que a primeira tem perfil mais acadêmico, e a segunda, mais prático, voltado à formação profissional.

Outra mudança foi a redução do peso da recomendação docente em relação a qual escola o estudante deve ir após o primário: a decisão, agora, é única e exclusivamente dos pais, mesmo com recomendação contrária. É mais fácil entrar em um Gymnasium com uma recomendação do professor, mas a decisão final é dos responsáveis pela criança.

Sabendo que isso poderia provocar um aumento de demanda em determinadas instituições, o governo de Berlim também criou um sistema de reserva de vagas: 60% delas são preenchidas por critérios internos; 10%, por casos especiais, definidos pela direção da escola; e, os 30% restantes, por sorteio.

Ainda não há pesquisas que mostrem os impactos das mudanças no desempenho acadêmico dos estudantes. Porém, um estudo divulgado em julho deste ano pelo departamento responsável pela área de educação em Berlim, em cooperação com a Universidade de Potsdam, mostrou que cerca de 70% dos diretores de Gymnasium da cidade estão satisfeitos com a mudança. O índice é ainda maior entre os diretores das escolas primárias: 80%.

O “lado vencedor”
Mas o que pensa Gabriela Lehnen? “Estou do lado vencedor”, diz a docente que, antes da integração, dava aula em uma Hauptschule. “Hoje tenho 26 alunos em vez de 60. Antigamente, nenhum estudante fazia o dever de casa. Claro que não são todos que fazem hoje, mas uma grande maioria. Isso me deixa muito contente”, afirma, rindo.

Gabriela dá aula de alemão na Röntgen-Schule. Essa escola, além de ficar localizada no bairro de Neukölln, onde há uma forte concentração de imigrantes (especialmente turcos e árabes), está exatamente do lado de onde passava o Muro de Berlim.

Ela afirma que a mudança atenuou o “estigma” de ser aluno da Hauptschule. “Estar na Hauptschule significa ser o último. Quando, por exemplo, uma turma de Real­schule encontrava a minha turma de Hauptschule, era estresse na certa. Eles se provocavam”, diz.

E como as coisas mudaram? “A gente estava há pouco tempo em um passeio por Tempelhof [aeroporto de Berlim que foi desativado e virou um parque]. Nós [os docentes] queríamos ir e os estudantes, ficar. De repente, um deles começou a falar: ”olha, gente, ali tem outra turma de alemão [de outra escola]. Se a gente puder ir lá talvez consigamos mais uns amigos no Facebook””, conta.

Isso não quer dizer, no entanto, que o novo sistema em Berlim seja imune a falhas. Detlev Bachmann dá aulas também de alemão na mesma escola de Gabriela e acha que as turmas poderiam ser ainda menores. “Depois de três anos de experiência [no novo sistema], eu diria que as turmas podiam ser menores. Hoje são [em média] 26, mas poderia haver um limite de 20”, diz. “Ou poderia haver mais aulas compartilhadas por dois professores”, completa Gabriela.

Bavária: ser igual pode ser pior
A Bavária, Bundesland mais rico da Alemanha e onde fica Munique, tinha um sistema ligeiramente diferente do “sistema-base”: os estudantes que não iam para o Gymnasium entravam automaticamente na Hauptschule. Depois de dois anos, poderiam ir para uma Realschule ou permanecer onde estavam.

Após o “choque do Pisa”, o governo conservador do CSU (União Social-Cristã, espécie de representante bávaro do partido de Angela Merkel) decidiu que não haveria mais esse “degrau”. Saindo do primário, o estudante passaria a ir automaticamente para uma das três modalidades. A mudança foi uma das primeiras feitas após a divulgação dos resultados.

Em fevereiro deste ano, um estudo do economista Marc Piopiunik, do Centro Ifo, de Munique, mostrou, no entanto, que o desempenho dos alunos nas novas Haupt­schule (chamada de Mittelschule) e Realschule piorou. A conclusão foi feita levando em conta notas de um exame complementar ao Pisa (o Pisa-E, aplicado a alunos alemães a cada dois anos), que usa a mesma base de avaliação da prova internacional e tem correção feita por Teoria de Resposta ao Item (TRI), a mesma utilizada no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), no Brasil.

E não foi pouco: na média das duas escolas, foram dez pontos de queda nas três áreas avaliadas pelo Pisa (matemática, ciências da natureza e leitura). Traduzindo em efeitos práticos, isso é o equivalente ao que os estudantes aprendem em metade de um ano escolar.

Queda nos “mais fortes”
Quando são analisados os resultados de cada uma das áreas, o quadro fica mais claro: em leitura, a queda foi, na média, de 15,6 pontos entre os estudantes dos dois tipos de escola. Em comparação, os alunos do Gymnasium da Baviera, assim como os estudantes (das três modalidades de ensino) de outros oito Bundesländer tiveram acréscimo na nota, ainda que pequeno. Em matemática, a nota caiu seis pontos; em ciências da natureza, 9,7.

A pesquisa também traz outro dado que mostra um pouco do efeito da mudança na Baviera. Piopiunik analisou separadamente os dados da Hauptschule e da Real­schule e concluiu que somente na primeira houve um crescimento da proporção de alunos “mais fracos” em leitura. Já na Realschule, houve queda nos “mais fortes”.

Uma das hipóteses cogitadas por Piopiunik para o resultado ruim é o impacto que a reforma teve nos próprios alunos: como eles já saem direto da escola primária para uma das três etapas, sem os dois anos intermediários de “preparação” que possibilitavam uma nova mudança, não haveria mais a “necessidade” de se dedicar tanto ao curso. Outra possibilidade é que simplesmente mais alunos tenham sido enviados para a escola errada.

Problemas no corpo docente podem ter ajudado a deixar a situação ruim. “Como, nos primeiros anos depois da reforma na Realschule, um grande número de novos professores precisou ser contratado, uma eventual falta de docentes pode explicar uma parte dos efeitos negativos. Em todo caso, mesmo vários anos após a reforma, o desempenho dos estudantes continua pior do que antes da reforma.”

Piopiunik se diz descrente com novas mudanças no sistema. “Uma volta ao antigo modelo com certeza não vai acontecer, por razões políticas, mesmo que – pelo menos em longo prazo – isso levasse a uma melhora do desempenho”, disse.

Schleswig-Holstein: indo rápido demais
A ideia era implantar um novo sistema em 2012. Pouco tempo depois, decidiu-se adiar para 2013. No meio do caminho, no entanto, uma eleição mudou o governo de Schleswig-Holstein, no norte da Alemanha, e a nova secretária de Educação foi taxativa: as coisas estavam indo rápido demais.

“Com essa velocidade, nós iríamos cometer erros”, disse em 2012 a secretária Waltraud Wende – apesar de a discussão se arrastar pelo menos desde 2010. “Profundidade [na discussão] vem antes da velocidade”, completou, para uma plateia de 130 especialistas que foram à capital Kiel (a 350 km de Berlim) para discutir o que fazer.

Agora, segundo o governo de Schleswig-Holstein, a reforma defi­nitiva virá no ano escolar 2014/2015 (o regime de aulas na Alemanha vai de setembro a julho). A mudança é parecida com a que houve em Berlim, apesar de o estado já ter uma escola secundária unificada há mais tempo: o estudante que frequentá-la poderá tentar o Abitur, e a decisão de em que instituição colocar o filho será dos pais.

Segundo Lehberger, é difícil fazer uma comparação entre os diferentes sistemas após a reforma. Porém, a preocupação de todos eles, na opinião do professor, tem de ser evitar que os novos modelos repitam vícios dos antigos.

“Para o futuro, é preciso prestar atenção para que essas escolas [pós-reforma] não virem, de novo, uma Hauptschule”, afirma. “É preciso torná-las atrativas. Fazer delas melhores escolas com melhor desempenho.”

Crítica antiga
Já em 2006, um estudo da Universidade de Freiburg (cidade que fica a cerca de 800 km da capital Berlim) mostrava que, se o aluno for um pouco mais velho (já tiver completado dez anos, por exemplo) ao receber a recomendação para qual escola ir, ele teria até 8% mais chances de ser indicado ao Gymnasium.

Segundo os pesquisadores Hendrik Jürges e Kerstin Schneider, a diferença de idade “tem um efeito significativo e dimensionável” na recomendação. “Ser um ano mais velho quando a recomendação é feita na quarta série”, dizem, “pode aumentar as chances de ser mandado para o Gymnasium, pois, por volta dos dez anos, um ano pode fazer diferença em termos de maturidade e avanço acadêmico.”

A discussão sobre o sistema alemão de ensino já parou até na Organização das Nações Unidas (ONU). Em 2007, o costa-riquenho Vernor Muñoz, relator especial das Nações Unidas pelo direito à educação, apresentou um duro relatório contra a separação em três níveis, chamando-a de “seletiva” e dizendo que ela pode levar “à discriminação de facto”.

“Uma das principais causas dessa exclusão é o sistema de classificação, que acontece muito cedo e seguindo critérios que não são claros, tampouco uniformes”, afirma Muñoz em seu relatório. “A avaliação depende em grande parte das regras particulares de cada Bundesland e dos professores, que nem sempre estão propriamente treinados para a tarefa.”

O relator recomendou à Alemanha que “revisse” a política de “classificar os alunos (aos dez anos) para determinar a entrada das crianças no nível secundário mais baixo”, prestando atenção se “a classificação em uma idade tão baixa é apropriada para os direitos, interesses e necessidades das próprias crianças”.

Na época da divulgação do relatório, o Kultusministerkonferenz (uma espécie de associação de secretários/ministros da Educação dos Bundesländer) disse aceitar as críticas, mas afirmou que havia sido feita uma “imagem distorcida” do sistema alemão.

Autor

Rafael Targino, de Berlim


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