NOTÍCIA
Essa foi a primeira vez que a escola recebeu voluntárias; para mim seria um enorme desafio lidar com crianças de até 7 anos e atuar como professora polivalente para as turmas do ensino fundamental
Publicado em 07/05/2013
Na Step Up Academy, as aulas são marcadas pela memorização e repetição |
No oceano Índico, na costa leste do continente africano, está Zanzibar, um arquipélago formado por duas ilhas principais – Unguja e Pemba – e outras adjacentes. Zanzibar tem paisagens incríveis, com praias de areia branca e mares em todos os tons de azul. Abriga também Stone Town, um labirinto de construções que se alternam entre influências árabes e indianas. O valor histórico e cultural da região é inegável. Entre os séculos XII e XV, Zanzibar foi um entreposto importante no comércio de mão de obra escrava, marfim, ouro, especiarias, madeiras e artigos têxteis, conectando por rotas marítimas o leste do continente africano ao Oriente Médio e à Índia. A região foi ainda submetida ao governo de Portugal, posteriormente tornando-se sede do império de Omã e, por fim, protetorado britânico, antes da independência, em 1963, e de unir-se à Tanganica em 1964, formando a República Unida da Tanzânia. Em uma viagem por alguns países do sul e leste africano, fui parar nesse lugar especial.
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Chegando à escola
Um pouco depois de chegar lá conheci o trabalho da organização Khaya, que promove programas de voluntariado em países diversos (www.khayavolunteer.com). Em Zanzibar, trata-se de um programa de voluntariado em educação e, para mim, trabalhar em uma escola por duas semanas seria a oportunidade ideal para interagir com a população local e entender um pouco mais daquela sociedade, tão diversa, marcada por influências culturais africanas, árabes e indianas, e onde convivem, aparentemente sem conflito, cristianismo e islamismo. Seria ainda uma oportunidade para pensar sobre educação a partir de uma perspectiva diferente daquela à qual estou acostumada.
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O objetivo principal do programa é fortalecer o ensino de inglês – e em inglês – visto que Zanzibar é um dos principais destinos turísticos do continente e vem recebendo cada vez mais investimento externo. Visa também fortalecer a educação acadêmica, em um local onde a educação religiosa predomina. Eu e Amo, voluntária sul-africana, chegamos na mesma época e fomos designadas para trabalhar na mesma escola, a Step Up Academy, uma escola privada que está em seu terceiro ano de funcionamento e hoje conta com 159 alunos, divididos em quatro salas de aula. As criancas de até 7 anos de idade compõem a sala chamada nursery. A segunda sala é composta por alunos dos standards 1 e 2. Na terceira sala, estão os alunos do standard 3 e na quarta sala reúnem-se os alunos dos standards 4 a 7. A seriação é diferente da que utilizamos no Brasil – o ensino primário tem sete níveis e é seguido pelo ensino secundário, com duração de 5 anos – e os termos em inglês foram mantidos para evitar que a tradução gerasse uma ilusão de correspondência entre a seriação com a qual eles operam e as nossas séries ou anos.
Na Step Up Academy, as salas de aula são bem arejadas e iluminadas, com janelas grandes que ajudam a suportar as altas temperaturas. A construção da escola ainda não está terminada e o prédio deve contar, em breve, com mais duas salas de aula e uma sala para os professores. Não há biblioteca, laboratório, sala de arte ou coisa parecida. O espaço externo é um gramado grande, com plantas variadas e alguns frangos que vivem por lá. Quanto às aulas, no standard 3, por exemplo, são divididas assim: geografia, história, matemática, inglês, religião (em que são separados cristãos e muçulmanos), educação cívica, esportes, suaíli (idioma local), ciências e debate. Senti falta de um espaço para as artes entre os componentes curriculares. Para as crianças do nursery, há momentos de desenho, pintura, canto e danca, mas esses momentos funcionam mais como descontração do que como atividades artísticas intencionais e sistematizadas. Não vi nenhuma atividade artistica sendo desenvolvida com as outras turmas.
Relações de gênero
Os professores são cinco (quatro homens e uma mulher) e eles circulam mais ou menos por todas as turmas – até a classe do nursery passa pela troca de professores. Quanto aos alunos, a maioria vive nas proximidades e caminha até a escola. Alguns vão de bicicleta e poucos utilizam o dalla-dalla, transporte coletivo local. São em geral bastante educados, respeitosos e disciplinados (é comum, em Zanzibar, que os professores utilizem bastões, varetas ou gravetos para disciplinar os alunos – devo dizer, no entanto, que na Step Up Academy isso não é frequente).
A quantidade de garotos e garotas que frequentam a escola é semelhante. Não sei se é assim em todas as escolas e também não sei há quanto tempo isso é assim. Mas, assumindo a hipótese de que seja um fenômeno generalizado e recente, fico imaginando se isso pode vir a significar transformações nas relações de gênero em Zanzibar em um futuro próximo. Atualmente, é possível ver algumas mulheres trabalhando fora do espaço doméstico, mas elas são claramente a minoria. Em oposição, não apenas trabalhando, mas também circulando pela rua, conversando, matando o tempo, curtindo a praia, interagindo com os turistas, enfim, vivendo o espaço público, predominam os homens, que também dominam o inglês com mais frequência do que as mulheres. Talvez o acesso maior de mulheres à educação e à língua inglesa venha a mudar essa situação. Fica aí um questionamento que vale mais uma visita daqui a alguns anos.
Desafios e semelhanças
Na Step Up Academy as aulas são todas em inglês, exceto as de suaíli (idioma local) e religião islâmica, ministrada em árabe. Isso é inovador para o modelo de educação de Zanzibar – não há, por exemplo, nenhuma escola pública que funcione dessa forma. Quanto à dinâmica das aulas, no entanto, o que pude observar é que a memorização e a repetição dão o tom, não importa qual seja o professor ou componente curricular em questão. Também notei que lidar com a heterogeneidade das classes é, possivelmente, o maior desafio que os professores enfrentam. Se em uma sala composta por alunos da mesma série já há diferentes ritmos de aprendizagem, imagine lidar com alunos de quatro séries diferentes, todos reunidos na mesma sala (como é o caso da classe que vai do standard 4 ao 7).
Essa foi a primeira vez que a escola recebeu voluntárias e o professor Obed, também coordenador, reordenou a grade de horários para nos incluir na rotina dos alunos. Eu tinha o primeiro período de aula vago, nursery no segundo, inglês com standard 3 no terceiro, matemática nos standards 4 a 7 no quarto período e geografia, com essa mesma turma, no último. Com formação em ciências sociais, mestrado em antropologia social e experiência como professora de sociología para o ensino médio, seria para mim um enorme desafio lidar com crianças de até 7 anos ou atuar como professora polivalente para as turmas do ensino fundamental. Mas, apesar do curto tempo de duas semanas, sinto que a experiência valeu a pena. Contando com poucos recursos (alguns livros didáticos disponíveis para consulta) e alguma pesquisa na internet, tentei desenvolver atividades mais práticas com os alunos. Consegui engajamento, mas perdi um tanto de toda aquela disciplina e minhas aulas sempre pareciam uma bagunça, comparadas às aulas “normais”.
Infelizmente, é difícil saber quais foram os impactos da minha presença na aprendizagem dos alunos. Por outro lado, as consequências do intercâmbio cultural eram mais perceptíveis. Lembro que uma das primeiras questões que me foram feitas quando me apresentei para a turma do standard 4 ao 7 foi: “qual é a data da independência do Brasil?”. E nesse momento notei, curiosa, a presença e a atualidade da temática da colonização e descolonização nas reflexões dos alunos sobre a História de um pais. Também me recordo da surpresa – e estranheza de alguns, inclusive do professor que me acompanhava nesse momento – quando contei que temos uma presidenta, a primeira mulher a ocupar esse cargo no Brasil.
Na verdade, muitos dos desafios daquela escola são os mesmos que encontramos no Brasil – os recursos limitados, a heterogeneidade das turmas, a dificuldade em desenvolver atividades diversificadas etc. Mas penso que há algo de interessante nessa proposta de abrir a escola para voluntários estrangeiros, e que pode nascer dessa experiência uma troca bem especial, desde que não se imagine que os voluntários estejam preparados para lidar com qualquer conteúdo curricular e até mesmo substituir os professores. Ainda há muito o que pensar sobre o papel desses visitantes e como podem complementar o trabalho realizado pelos profissionais da escola. Talvez projetos, temas circunscritos e tempo determinado sejam mais capazes de testar as potencialidades dos voluntários e levar à escola novas abordagens e conhecimentos.
*Iolanda Barros de Oliveira é educadora, mestre em antropologia social pela Universidade de São Paulo (USP)