NOTÍCIA

Olhar pedagógico

Autor

Paulo de Camargo

Publicado em 09/05/2025

O que é a abordagem Pikler

E se fosse possível pensar em cooperação mútua, e não intervenção? Esse é um dos ensinamentos de Emmi Pikler: cuidar de crianças de zero a três anos pela cooperação entre adultos e bebês

Bebês imobilizados sob camadas de pano, os tais charutinhos; amarrados em cadeirões enquanto berram pela hora de comer ou balançando freneticamente no bebê-conforto. Crianças pequenas que passam de mãos em mãos na hora dos cuidados, nas creches, conforme o turno daqueles que cuidam, vestidas e trocadas em série. Essas imagens estão ainda bem presentes no imaginário dos adultos — e também dos educadores. Mas, e se estivermos apenas repetindo fórmulas cujas origens se perdem no tempo? E se pudéssemos ver nos gestos e balbucios dos bebês, desde os primeiros movimentos, as evidências de intenção, autonomia e de uma inata curiosidade? E se fosse possível pensar em cooperação mútua, e não intervenção do adulto sobre a criança pequena?

Se ainda soam como inovadoras na maior parte das escolas brasileiras as pedagogias que se caracterizam pelo respeito às crianças, entendidas não como filhotes a quem tudo falta, mas como pessoas competentes, ativas e plenas de direitos, menos conhecidas ainda são as que colocam seu foco nos bebês de zero a três anos. Esse é o caso da abordagem Pikler, que se originou do pensamento e nas práticas da médica europeia licenciada em pediatria Emmi Pikler (1902–1984), e vem se difundindo mundo afora.

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No Brasil, é crescente o número de creches que adotam essa abordagem. A Associação Pikler Brasil tem mais de 40 mil seguidores nas redes sociais e se difunde em redes públicas e privadas. Mas o que traz de novo esta abordagem? “Emmi Pikler amplia a percepção do que é um bebê e traz ideias revolucionárias para a época, como a de que bebês e adultos podem cooperar”, explica a pesquisadora Leila Oliveira, doutoranda em educação pela Unicamp, que atendeu a revista Educação a caminho da Hungria para o seu 8º ano de formação no Instituto Pikler, principal centro de difusão das ideias desta abordagem no mundo.

abordagem Pikler

A doutoranda e professora Leila Oliveira faz parte do primeiro grupo a chegar ao final da Formação Pedagogia Pikler, no Instituto Pikler de Budapeste, Hungria (Foto: arquivo pessoal)

Nascida em Viena, quando a cidade ainda integrava o Império Austro-Húngaro, Emmi Piker cresceu e estudou em um centro cultural efervescente. Contemporânea de Freud, Franz Kafka e outros intelectuais que mudam a história das mentalidades no século 20, foi em Budapeste que desenvolveu seu trabalho, principalmente a partir de 1946, no Instituto Lóczy, instituição de acolhimento que dirigiu. Após sua morte, o Instituto passou a se chamar Pikler, deu continuidade a suas pesquisas e formou gerações de educadores interessados em um novo olhar para a primeiríssima infância e para um significado ampliado de cuidar.

Segundo explica Leila, pesquisadora que assessora muitas escolas brasileiras, há duas formas predominantes de como os adultos olham para os bebês. A primeira, e o nome diz tudo, é a ‘adultocêntrica’: acreditamos que devemos agir sobre os bebês, tomados simplesmente como miniaturas dependentes. Por isso, fazemos tudo por eles — inclusive definindo a quantidade de comida que devem ingerir, com ou sem fome —, e antecipamos suas necessidades e movimentos, até que um dia venham a nomear suas vontades e escolhas e agir dentro do que nós, os grandes, definimos como autonomia.

No outro extremo, o abandono: os adultos deixam as crianças por si mesmas como se isso fosse um ato educativo. Dizemos frases como: deixa chorar para não ficar mal-acostumada ou as colocamos horas a fio presas em berços fechados. O abandono acontece de formas mais sutis, como fechar os olhos para aquilo que o bebê comunica por suas formas de expressão. Mas o bebê fala. E como.

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Em uma via alternativa desse pêndulo da superproteção e do abandono, Emmi Pikler diz que bebês e adultos se transformam em cooperação. Ao adulto não cabe intervir, mas criar entornos positivos que favoreçam ao bebê a expansão da autonomia, assegurando um ambiente de confiança e cooperação. Um exemplo simples é o da troca de roupas. O cuidador pode pegar o bebê como um boneco e enfiar seus braços e pernas roupa adentro, ou pode conversar e mostrar gentilmente à criança que, se levantar as mãos, ajudará no processo, convite ao qual ela corresponderá paulatinamente.

“O bebê tem autonomia, que expressa desde que nasce, ao estabelecer a hora em que para de mamar ou quando direciona o olhar para a mãe ou outros pontos no espaço”, explica Leila. Mas, ao mesmo tempo, precisa do adulto para acompanhá-lo, e não para antecipar, apressar ou corrigir seu desenvolvimento. Da mesma forma, a abordagem defende a importância de um adulto de referência que se mantenha na relação, o qual o bebê possa conhecer, nele confiar e com quem vai cooperar. “A relação privilegiada com um adulto é fundamental”, diz a pesquisadora.

Ainda no contexto da autonomia, entre as ideias centrais na abordagem Pikler está a do movimento livre. Nada de forçar a se sentar ou ficar de pé, por exemplo. A criança o fará no seu tempo, superando etapas intermediárias que nem notamos, e tanto mais naturalmente será quanto forem as condições favoráveis para que explore livremente seus movimentos. Assim, se não estiverem no colo, bebês podem ficar deitados de costas em superfícies termicamente confortáveis até que consigam, por si e no seu tempo, realizar a rolagem.

Conquistas como essas são indissociáveis da boa imagem que a criança fará de si própria — outro princípio permanente da abordagem Pikler. “A criança percebe sua própria competência quando compreende do que é capaz sem a intervenção dos adultos”, explica Leila. E, para tudo, saúde — no sentido mais amplo, a saúde física, da segurança afetiva, das relações que estabelece. Assim, autonomia, adulto de referência, autoimagem positiva e saúde representam os quatro pilares centrais desta abordagem.

abordagem Pikler

Kando – Espaço pela Infância (Foto: Luana Melhado – Infância em Foco)

Difusão nas escolas

Compondo-se com outras abordagens pedagógicas e autores que compartilham uma visão respeitosa sobre as incríveis competências da infância — e seus direitos —, a abordagem Pikler vem se difundindo com força. Assumir seus princípios leva também a uma reorganização dos espaços e dos recursos utilizados.

Membra-fundadora da Associação Pikler no Brasil, a educadora Josiane Pareja participa do grupo de aprofundamento no Instituto Emmi Pikler, desde 2014. Josiane chama a atenção para as abordagens que colocam o bebê e a criança pequena no centro do currículo. Isso significa pensar sobre o brincar, o sono, a alimentação, a troca de fraldas, os espaços e materiais, a qualidade da intervenção dos adultos e a relação com as famílias a partir de uma perspectiva respeitosa, no sentido profundo do termo. “Não podemos perder de vista a família; é preciso pensar que esse bebê tem uma mãe, que está deixando seu filho na creche em um contexto muito sensível. Emmi Pikler traduzia esse momento como a construção de uma pedagogia dos detalhes. Nesse espaço vai acontecer a grande coreografia do encontro entre o individual e o coletivo”, lembra Josiane, que criou e dirige, em São Paulo, a Escola Ateliê Carambola, instituição visitada por centenas de educadores anualmente.

Escola Ateliê Carambola, em São Paulo (Foto: arquivo Carambola)

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Desenvolvida por uma pensadora que vivia cada passo daquilo que teorizava, a abordagem Pikler é mesmo minuciosa nos detalhes de todos os processos, e por isso requer uma reorganização dos espaços e nos cuidados — que em nada vão lembrar os ambientes assépticos de hospitais que caracterizaram (e caracterizam) ainda muitas creches. 

É o caso da Kando – Espaço pela Infância, criada há seis anos pela educadora Elaine Naldi Martins, diretora em Santana de Parnaíba, na Grande São Paulo. “Organizamos espaços que convidem as crianças a explorarem o mundo e a si mesmas em seu próprio ritmo”, conta Elaine. Na prática, para um olhar leigo, isso significa a ausência de cadeiras e bebês-conforto para os pequenos que ainda não andam. Outro ponto é que a partir do princípio de que as crianças devem participar ativamente de sua alimentação, cumbucas de vidro permitem que as crianças vejam os alimentos, despertando curiosidade e enriquecendo sua relação com a comida. O espaço é pensado para favorecer o movimento e a autonomia dos bebês. Os espelhos, intencionalmente dispostos, tornam-se pontos de encontro e reconhecimento.

abordagem Pikler

Kando – Espaço pela Infância. Autonomia, adulto de referência, autoimagem positiva e saúde representam os quatro pilares centrais da abordagem Pikler (Foto: Luana Melhado – Infância em Foco)

Formação

Justamente pela complexidade de uma pedagogia dos detalhes, em que a observação e o registro são essenciais, a formação de educadores não é simples. “O grande desafio atual é a formação de profissionais”, diz Josiane. Ao mesmo tempo, diz, é preciso lembrar sempre que a boa pedagogia olha o bebê real e não o teórico.

Assim, assimilar abordagens como a Pikler requer uma postura de estudo e pesquisa, em diálogo permanente com a prática e dentro do contexto da cultura local — como o que Emmi Pikler fez na Hungria. “Não é possível estacionar, sempre vai envolver pesquisas e observações sistemáticas, que exigem método científico”, acrescenta Leila Oliveira.

As deficiências na formação universitária do pedagogo acabam levando a uma proliferação de cursos livres e especializações, como se fosse possível generalizar o conhecimento sobre a educação de bebês. “Cada idade e fase do bebê tem suas especificidades”, diz Josiane Pareja.

Josiane Pareja, fundadora e diretora da Escola Ateliê Carambola, em SP (Foto: arquivo pessoal)

Para ela, a formação deve envolver uma parte teórica aprofundada, clareza sobre o processo de desenvolvimento do bebê, mas ao mesmo tempo a compreensão de que os profissionais devem desejar estar com os bebês, percebendo seu próprio papel, sem subjugar a criança à ação adulta. Processos como a observação metódica e sistemática, bem como a documentação, são essenciais. “Ao documentar, tornamos visível a forma como esses bebês se desenvolvem e o quanto isso é importante para o seu bem-estar no presente”, diz.

Por isso, alertam os especialistas, é preciso tomar cuidado com modismos. Não basta adquirir mobiliários, tecidos ou outros materiais característicos desse trabalho para se dizer um berçário alinhado à abordagem Pikler. “Assumir a abordagem Pikler pressupõe um projeto político-pedagógico; uma clareza de que estamos acolhendo um bebê real e uma mãe em uma fase tão delicada da vida humana”, finaliza.

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