NOTÍCIA
O anúncio da Suécia de que, por conta das telas, ‘criamos uma geração de analfabetos funcionais’ é um chamado para o mundo agir — agora. Conversamos com o criador da primeira unidade da América Latina que trata dependentes em tecnologia digital
O psicólogo e pós-doutor em psiquiatria Cristiano Nabuco fundou, e coordenou, por 20 anos, o Grupo de Dependências Tecnológicas do Pro-Amiti, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o primeiro da América Latina. Recentemente, se desligou desse grupo — focado em adultos — para atuar em outro no próprio Hospital das Clínicas, esse voltado a adolescentes. “O adulto já está com o problema instalado. O jovem ainda tem como correr atrás”, diz.
Cristiano escreveu mais de 15 livros sobre o tema, sendo uma das principais referências em dependência digital, tanto que já foi consultor do governo federal e da ONU.
“Ao avaliar fotos de ressonância magnética funcional de indivíduos que são dependentes de ópio e dos dependentes de telas [digitais], são as mesmas áreas que estão sendo ativadas”, destaca. “E quanto mais se usa em idades precoces, pior será o estrago lá na frente. Ainda não estamos vendo todo esse estrago porque essa geração está chegando agora aos 20 anos, 25 anos. Mas, na ponta aqui, de um consultório ou de um hospital, vemos o estrago.”
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Seu compromisso e preocupação com as pessoas são nítidos: ele também fundou a Associação Matera (associacaomatera.org.br), sem fins lucrativos, que desenvolve junto a mais de 50 profissionais, entre advogados, pedagogos, médicos, psicólogos e filósofos, trabalhos de intervenções junto a estados, municípios, escolas, famílias e empresas.
Confira, a seguir, a entrevista exclusiva. Nela falamos sobre a persuasão das big techs, desenvolvimento do cérebro, autismo e mais.
Segundo o psicólogo Cristiano Nabuco, deveria ser criado um comitê mundial sobre os impactos das redes sociais (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)
Não. O que temos é uma somatória de efeitos ou de causas que interagem com a cabeça do usuário cada vez que ele passa a navegar. A ideia que se tinha há 20 anos era a de fazer equipamentos [computadores] que pudessem servir de elementos para ajudar a capacitação intelectual a atingir locais diferentes. Tem um exemplo, inclusive, de um desses rapazes do Vale do Silício, ex-Google, o qual fala que quando montaram a computação, a ideia era criar o que seriam bicicletas para a mente. Ou seja, dar instrumentos para a pessoa seguir direções diferentes. O que acontece é que na medida em que esse público começou a aumentar, em termos de demanda, começou a fazer parte do modelo de negócios de tais empresas capturarem a atenção dos usuários para que ficassem mais tempo nas plataformas.
E como é que eles [responsáveis pelas big techs] fazem com que os usuários fiquem cada vez mais conectados? Eles chamam de hook, fisgados. Notaram que poderiam ativar certas áreas do cérebro para fazer com que esse mecanismo se prolongasse. O primeiro presidente do Facebook, Sean Parker, disse em 2017: ‘Exploramos uma vulnerabilidade no ser humano para fazer com que ele fique mais conectado’. E ele completou: ‘Somente Deus saberá o que as redes sociais farão com a cabeça dos nossos filhos’.
Visto que há essa corrida pela atenção, eles começam a lançar mão não só desses recursos, como do que chamam de ciência da persuasão, que é utilizar recursos, por exemplo, como uma máquina de caça-níquel, em que se puxa uma alavanca. Hoje, quando quero atualizar o meu feed pelo celular, eu deslizo o dedo. Exatamente o mesmo processo [do caça-níquel]. Então, eles começaram a se basear em modelos já testados que davam certo, fazendo com que esse processo escalasse. Atualmente, ao navegar pelo YouTube, indica-se outro vídeo que pode interessar ao usuário, gerando um processo de looping, em que se ativa a circuitaria do processo de recompensa do nosso cérebro; são várias regiões, dentre elas o Núcleo Accumbens [‘gerador de prazer’], e isso vai fazendo com que a pessoa cada vez mais precise daquele estímulo.
Sim. Outro fator importante: cada vez que uma pessoa posta uma foto no Instagram, ela entra em um momento mais tenso do ponto de vista social, porque as redes sociais sabem que o usuário está aguardando a avaliação dos outros a seu respeito, por exemplo, o que falou, fez e pensou. Essa foto postada no Instagram não vai aparecer na linha do tempo
de todos imediatamente. Aparecerá em 3% das pessoas na primeira hora, em mais 5% na segunda. As redes sociais criam um atraso para que o usuário, em vez de encerrar a experiência com a plataforma em quatro horas, fique de oito a 10 horas, porque o indivíduo entra num movimento de vulnerabilidade.
Diante disso, os psicólogos criaram o que chamam de ciência da persuasão, segundo a qual dizem que estão preocupados com esse processo de induzir a pessoa a navegar mais do que gostaria e por lugares em que não tinha pensado. E aí vão me perguntar: ‘é ético? Será que eles [donos das redes sociais] é que devem interferir nesse processo de decisão para o quê e para onde eu vou?’ O garoto também do Vale do Silício, Aza Raskin, criador da rolagem infinita, hoje ex-Apple, faz parte de um grupo prodígio dessa região dos EUA em que todos são ex-de alguma empresa e dizem: ‘As nossas invenções, as nossas propostas, tinham como objetivo tornar a navegação mais amigável, mas não é isso que foi feito’.
Então, hoje, nessas empresas, há o que chamam de universidade da persuasão: laboratórios que ficam a cada 24 horas atualizando [recursos]. Por exemplo, ontem o botão de determinado aplicativo era branco. Mas, ao descobrirem que o vermelho provoca maior reação, eles alteram a cor. São mudanças sutis para que, em um dado momento, a pessoa esteja sendo estimulada a fazer coisas que não tinha vontade. É como se estivéssemos sendo ‘operados’ por essas empresas com o objetivo de fazer com que nós naveguemos mais. Porque quanto mais você navega, mais elas valem na bolsa internacional; mais valem em comparação a empresas de energia e petróleo. E nós somos as commodities.
Imagine que em uma sala de aula há 50 alunos e uma professora. Ali há turmas que se unem. Assim é o cérebro, que funciona como se fosse um parlamento. Então, há o grupo do fundão, que é o da criatividade. Do outro lado há o grupo do pensamento lógico. Já no meio da sala há o da intuição. E na frente o grupo do raciocínio dedutivo. Sendo assim, cada vez que viro e mostro um lápis, por exemplo, esse estímulo circula em todas as áreas do meu cérebro.
Só que a turminha da frente, que promove a gratificação, é muito forte porque é muito usada, por exemplo, pelas redes sociais. Na sala de aula, vamos imaginar que esse grupo da gratificação seja unido. Então, quando falo: ‘Olha, o lápis’, o grupinho vira e fala: ‘Dá aqui’. Ou seja, a gratificação, ao entrar e roubar [o lápis], aborta que os outros grupos possam falar. Na medida em que esse processo vai se desenrolando, essa turma da frente vai ficando mais forte e insaciável a desejar mais estímulos.
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[As telas, como de celular e computador, pensando aqui também nos jogos digitais, possuem luz infravermelha] …quando essa luz bate no cérebro, consegue detectar a hemoglobina — que é o sangue —, e se ela está mais oxigenada ou menos oxigenada. E o que eles percebem? Quando os indivíduos usam as telas, [essas empresas] percebem que só uma determinada área fica acesa, indicando a maior presença de oxigênio ou de maior atividade. O restante fica escuro. Se você usa num determinado momento e para, sem problema. Mas na medida em que começa a usar por um dia, dois dias, três, quatro e o tempo aumentando, o usuário começa a ter uma espécie de’ atrofia das outras áreas’. E isso vai comprometendo a circuitaria cerebral. Mas o cérebro não sabe que isso é ruim? Não. O cérebro, em função do desenvolvimento, foi feito por meio da nossa evolução para ser bom nas tarefas que são apresentadas.
Vários estudos começam a mostrar que quanto mais tela aos dois anos de idade, pior o desenvolvimento da fala aos quatro. Quanto mais tela aos três, pior o desenvolvimento da capacidade de resolução de problemas ao cinco. Tem um autor francês que gosto muito, Michel Desmurget, e seu livro A fábrica de cretinos digitais [ed. Vestígio], é muito bom.
Em uma determinada pesquisa, ele mostra que crianças entre zero e dois anos que ficam apenas 50 minutos por dia nas telas, ao final dos 24 meses, terão deixado de escutar 850 mil palavras. O que isso quer dizer? Quanto mais uma determinada área chama atenção, menos você desenvolve as outras áreas. Elas vão ficando ‘atrofiadas’ porque não vão sendo oxigenadas e vão perdendo a conexão de como deveriam operar. Então, você tem hoje, por exemplo, crianças que não conseguem verbalizar como deveriam.
Já sabemos que o autismo tem outra causa genética e aspecto de neurodesenvolvimento. Agora, em um recente artigo científico, perceberam que crianças que ficavam mais expostas às telas — na primeira infância —, começavam a apresentar sintomas parecidos com os do autismo, como não responder ao chamado do nome, não conseguir imitar sons, não ter muita habilidade corporal. Só que esses sintomas podem ser revertidos se há estimulação correta. Então, o que observamos é que, ao inserir esse equipamento precocemente, diminui-se o horizonte de estimulação sensorial, fundamental para o desenvolvimento do cérebro da criança, principalmente na primeira infância. Ou seja, tem que ter diversidade. Por isso aquelas estimulações antigas de encaixar o quadradinho e não a bolinha; massinha e tudo aquilo vai fazendo com que características sejam trabalhadas de uma forma mais ampla, ativando todo o cérebro. Já a tela digital fornece sempre as mesmas respostas.
Respondo que 85% dos aplicativos que se autodenominam educativos nunca foram pesquisados. Na maioria das vezes, existe uma propaganda equivocada e divulgada pelos próprios fabricantes de telas e de computadores de que, inserir a tecnologia precoce tornará o filho mais capacitado. É exatamente o contrário.
São poucas as evidências de que a tela deve ser inserida e quando são, é dentro da perspectiva de usá-la e guardá-la. Ela não pode ser disponibilizada de forma absolutamente irrestrita, entre as causas, pela circuitaria cerebral já abordada aqui. Nisso, as escolas questionam: ‘Mas, se não falamos que somos tecnológicos, os pais não matricularão o filho e enfrentaremos problemas econômicos’. Aí a escola pinta num muro ‘matricule seu filho, ganhe um tablet’ —, o que é um profundo equívoco.
No final de 2023, a Suécia fez uma publicação grande dizendo que, ao longo dos anos anteriores, o país tinha substituído o material impresso pelo digital por achá-lo obsoleto dentro desse modelo atual. E o que que eles descobriram? No texto dizem: “criamos uma geração de analfabetos funcionais”. Então, baniram completamente as telas, reintroduziram livros, material impresso, exatamente para desenvolver as capacidades e as diferentes habilidades que o cérebro tem e o que se espera que uma criança desenvolva.
Deveríamos ensinar em vez de proibir. Mas, do jeito que as coisas estão, proibindo, conseguiremos avaliar o que faremos. Já existem pesquisas que mostram que essas novas gerações possuem limitações cognitivas muito significativas e importantes, por exemplo, coordenação motora.
Hoje, muitos recreadores dizem que não conseguem mais usar exercícios que faziam para crianças de cinco anos, têm de usar os que aplicavam para as de três anos. Então, perde-se a destreza. O que mais? Ausência da capacidade de manejo interpessoal. Há uma série de questões que culminam com a seguinte questão: as medidas mundiais de QI crescem 0,3 ponto percentual a cada nova geração. Mas elas não têm crescido há 20 anos. Estão estagnadas com viés para baixo, indicando que as novas gerações, as digitais, como Z, Alfa, estão profundamente despreparadas para lidar com as competências que são importantes de serem desenvolvidas para lidar com a vida adulta.
A quantidade de jovens que eu atendo entre 18 anos e 20 anos que foram passando [de ano na escola] colando [é grande]; a hora que entram numa faculdade e dizem: ‘Se vira, vai estudar. Está aqui a bibliografia’, eles pipocam, colapsam, porque não conseguem se concentrar, guardar informações, não conseguem ser criativos, não sabem estudar. É o que o pessoal da Suécia falou: ‘Criamos analfabetos funcionais’.
Há muitos outros países que estão buscando, agora, diminuir esses efeitos, como Finlândia, Turquia, Grécia, França e Austrália. O grande ponto é: isso basta? Claro que não basta. Isso é apenas o começo. Precisamos de um trabalho de conscientização social maior, porque não é simplesmente tirar o computador, celular da sala de aula, e deixar o pepino para os pais resolverem. É preciso promover a educação digital. Qual o conceito de cidadania? Como devo estudar? Atrapalha ou não estudar com a tela? Como é que eu faço para gravar as informações, considerando que essa informação precisa ficar presa, ancorada, como a gente diz, na minha memória de longo prazo?
Outro dia estava dando aula para uma empresa e me perguntaram: ‘você está querendo dizer que devemos voltar para a década de 80?’ Não. O que estou dizendo é que temos que usar com consciência. E quanto mais se usa em idades precoces, pior será o estrago lá na frente. Ainda não estamos vendo todo esse estrago porque essa geração está chegando agora aos 20 anos, 25 anos. Mas, na ponta aqui, de um consultório ou de um hospital, vemos o estrago e ainda não há informações publicadas para alertar a população. Só que nós, que trabalhamos com isso, já estamos vendo esses efeitos — que são absolutamente preocupantes.
Existe uma síndrome — síndrome é diferente de doença, é um conjunto de sintomas, doença você tem uma classificação geral, chamado FOMO, que é o fear of missing out, medo de estar perdendo alguma coisa. Quando o usuário publica muito nas redes, fica continuadamente num estado de atenção e isso rouba o foco profundo. Tem uma pesquisa que gosto de contar feita na Universidade da Califórnia que mostra o seguinte: quando estou prestando atenção em algo e sou interrompido com uma notificação no celular, o fato de esse estímulo me interromper faz com que meu cérebro leve 23 minutos e 15 segundos para retomar o mesmo estado atencional que tinha antes da interrupção.
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Claro, isso não é só fruto das telas. A pandemia aumentou uma onda que já existia, a da saúde mental. Hoje, todo mundo está irritado, sem paciência, confundindo falar a verdade com ser mal-educado e grosso. Então, soma-se isso tudo com o celular, que gera um estado contínuo de distração. Alguns chineses vão falar que o celular seria a heroína digital. Ao avaliar fotos de ressonância magnética funcional [sobre o funcionamento cerebral] de indivíduos que são dependentes de ópio e dos dependentes de telas, são as mesmas áreas que estão sendo ativadas. Então, obviamente, um problema nunca é decorrente de um único fator, mas temos um combinado bem significativo.
Essa tecnologia entrou de um jeito que será necessário ter uma consciência mundial diferente. Só que tudo isso que estou falando não é nada. Estamos sendo atropelados por um negócio chamado inteligência artificial. Se acha que o que estou falando é preocupante, você não viu nada. O grande dilema é: ou essa geração será a que vai dar o grande salto para dias melhores ou será a geração que vai separar a humanidade num processo de atraso, de pouco desenvolvimento. Os jovens estão perdendo o timing, a mão, a sensibilidade empática, a capacidade de perseguir os objetivos etc. Eu sou uma geração que tem uma perna na vida analógica e outra na digital. Eu sei dosar. E os mais novos, que nasceram no digital? Como serão as futuras gerações?
Agora está começando a cair a ficha de algo que a gente vem falando há anos. Há 20 anos eu atendo jovens, pacientes que chegam a ficar 55 horas conectados [em jogos digitais], fazendo xixi e cocô na calça. Eles continuam jogando sem parar e acabam sendo internados. Muitos chegam usando fralda. É um estrago; os meninos vão mais para os jogos digitais e as meninas para as redes sociais.
Vivemos a época da corrida tecnológica feita de maneira muito pouco supervisionada, porque envolve interesses militares, uma série de coisas. China de um lado, Estados Unidos do outro. Nessa corrida a favor da tecnologia, você está já arranhando a superfície com equipamentos e inteligências artificiais que conseguem definir aspectos importantes como vida, sociedade, valores. E não existe o que a gente chama de um grupo de pessoas que acompanha isso. Imagine se não tivesse um acordo internacional a respeito de armas nucleares, o que não ia ter de países jogando um no outro. Então, toda essa tecnologia está se desenvolvendo sem uma supervisão correta. Entendo que deveríamos criar um comitê mundial sobre isso.
Cruzamos a linha do controle humano, de identificar se é perigoso ou não. Viveremos tempos difíceis, teremos desemprego em massa, a divisão entre aqueles que usam a inteligência artificial e aqueles que não a usam. O Brasil gasta nove horas e 30 minutos por dia em frente à tela, o segundo país no mundo. Isso dá quase cinco meses por ano olhando as telas. Está tudo errado. E quem é que vai criar um comitê internacional? Não sei, eu sou muito pequenininho aqui, num país de terceiro mundo, não vou conseguir, embora já tenha tentado. Acho bom as pessoas ficarem ligadas, porque é muito sério o que está acontecendo.
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