NOTÍCIA
Educadores compartilham como têm usado a IA na escola e destacam que ela é apenas um novo palco, mas que o problema de sempre se revela
Em novembro, completam-se dois anos do lançamento do ChatGPT, uma ferramenta de inteligência artificial (IA) simples e gratuita que produz texto semelhante ao que é escrito por humanos. Ao longo desse tempo, foram surgindo novos programas, tanto de geração de texto como de imagens, sons e vídeos. Desde então, muito se falou da IA generativa na educação, por vezes como se fosse um milagre; noutras, uma espécie de catástrofe. Até agora, nenhum dos cenários extremos se concretizou — tampouco despontam num horizonte próximo.
A adoção desse novo tipo de tecnologia pode parecer distante para muitas escolas, afinal, em certas regiões o acesso à internet ainda permanece uma miragem. Sendo um país imenso e desigual, no Brasil há unidades carentes de tecnologias bem mais antigas que as digitais, como banheiros e água encanada. Porém, de várias formas, a IA já está presente na rotina de milhares de educadores e estudantes. Ela pode promover mudanças em processos administrativos, planejamentos de aulas, avaliações e, em muitos casos, atua de forma ‘invisível’ em sala de aula.
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Uma das características comuns da IA é que muitas vezes as pessoas não têm noção de que estão interagindo com uma delas. Mesmo antes do ChatGPT, outras formas de IA já estavam entre nós; a diferença é que os usuários não as operavam diretamente. Serviços na internet que oferecem recomendação — seja de produtos, de vídeos, música ou perfil para seguir — costumam ter algum tipo de IA trabalhando por trás. Aplicativos que indicam rotas em tempo real também, assim como buscas no Google, filtros antispam nos e-mails, assistentes e tradutores virtuais. Alguns bancos há vários anos usam esse tipo de tecnologia para tentar identificar de forma automatizada fraudes e outras operações suspeitas.
“É um tema que a ciência da computação vem desenvolvendo desde a década de 1950”, lembra Ana Paula Gaspar, do Instituto Vera Cruz, em SP. “Ao olhar de uma perspectiva histórica, a IA vai na mesma cesta de todas as outras que prometeram revolucionar, que chegaram causando espanto. O rádio teve esse impacto inicial, diziam que iria acabar com a escola. Depois, isso se passou com a televisão; mais tarde com os videogames”, cita. Qualquer que seja a tecnologia, quando ela vai para a escola, o questionamento deve ser o mesmo de sempre, defende Ana Paula: qual é a intencionalidade pedagógica do seu uso?
Por trás da ideia de que a IA é hoje imprescindível para a escola existe uma indústria que tem mais interesses em vender produtos que gerem lucro do que demonstrar preocupações com a educação. “A busca incessante pela inovação não é papel da escola. Não consigo vislumbrar uma grande alteração do status quo por causa da IA, porque os problemas dela permanecem demasiado humanos. A escola é em primeiro lugar o espaço para o desenvolvimento cívico, cognitivo, relacional e emocional de crianças a adolescentes”, afirma Ana Paula Gaspar.
E mesmo alguns dos desafios éticos da IA são, na verdade, repetições de questões bem antigas. “Muitos estudantes já tiveram contato com deepfakes (imagens falsas geradas por IA) e a maiora das deepfakes hoje é de pornografias com mulheres e meninas. Mas a misoginia não é um problema recente. O caminho é a gente trabalhar, antes de tudo, os valores, a empatia, o respeito — esse sim é o papel da escola”, diz Ana Paula. A tecnologia é apenas um novo palco onde o problema de sempre se revela.
A diferença de uma inteligência artificial para um algoritmo que não tem essa denominação é que a IA é um tipo de tecnologia que permite aos sistemas digitais ‘aprenderem’ com a experiência, ou seja, são capazes de reconhecer mudanças e se adaptar a elas, simulando a inteligência humana. Quando esses sistemas produzem conteúdos novos, eles são chamados de IAs generativas. Outra subdivisão são os Large Language Models (LLMs), que são sistemas de IA que produzem especificamente textos, como é o caso do ChatGPT, Bard, Gemini etc. Todos os tipos de IA dependem de uma grande quantidade de dados para terem um bom desempenho.
Para quem está no dia a dia da escola, uma das funções deve ser exatamente mostrar que tecnologias não são neutras e, potencialmente, reproduzem uma série de preconceitos que existem na sociedade. “Se o aluno tiver uma visão crítica sobre a IA, entender suas vantagens e limitações, a gente sente que ele vai fazer uso adequado”, afirma Lucas Chao, professor no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, que desde 2021 dá uma disciplina chamada inteligência artificial para o 3º ano do ensino médio.
Entre as discussões que promove com seus estudantes entram questões sobre o consentimento na recolha dos dados, assim como os vieses das ferramentas. IA de reconhecimento facial treinada, sobretudo, com dados de pessoas brancas têm dificuldade de reconhecer corretamente pessoas negras, por exemplo. “E não se resume a vieses negativos. A gente trabalha com criação de imagens digitais e vai percebendo que certo aplicativo tem um viés mais realista, outro mais artístico, um terceiro remete a conceitos mais orientais”, explica o docente.
Alguns projetos práticos têm ajudado os mais novos a entender que é o cérebro humano que continua no comando. Professores desafiaram os estudantes a escrever uma redação para o Enem só com IA, ou seja, elas davam os comandos (promtps), mas o texto final era da ferramenta. Entregaram, além dos textos, a conversa que tiveram com os sistemas. “A maioria das redações teriam notas entre 500 e 600, porque os textos são circulares, ficam se repetindo e, às vezes, caem em contradição. Mas teve uma redação maravilhosa, que teria nota 900. Na hora que abriram a conversa, todos perceberam que a estudante tinha muita clareza do que é um texto bem escrito e conseguiu guiar o trabalho da IA”, conta Lucas.
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Aluno do técnico de automação industrial do Liceu, Lucas Yukio Ogihara, de 18 anos, acredita que entender sobre o funcionamento da IA seria algo importante para todos os jovens. Não é preciso saber programar, mas é bom ter uma noção. Hoje eu entendo que o ChatGPT é um LLM, um algoritmo de probabilidades, e não uma mente pensante. Ele prevê quais palavras seguidas umas das outras fazem sentido, mas pode dar informações incorretas. Também discutimos muito questões de privacidade: é importante entender que a IA faz consultas em bancos de dados, e questionar como tem acesso a essas informações, para saber se o usuário está em risco”, diz.
Mudança em massa
Um dos aspectos mais discutidos — e uma das grandes promessas da IA na educação — é sua utilização para personalizar o aprendizado. Alexandre Sayad, pesquisador do tema, consultor da Unesco em educação midiática e colunista desta publicação, diz que atualmente a personalização — com conteúdo e atividades exclusivos para cada aluno — ainda não é uma realidade, mas reconhece que grandes plataformas já são capazes de separar estudantes em conjuntos de acordo com suas habilidades e dificuldades, algo impossível para a maioria dos professores. “Nenhum professor com 15 salas, cada uma com 40 alunos, consegue customizar uma aula na unha. Nem o nome de todos ele consegue lembrar. A personalização plena é um mito, mas com algumas plataformas dá para identificar características e separar em grupos menores, o que impacta na gestão da sala de aula”, explica.
Ele defende que a realidade da maior parte das escolas hoje é a educação industrial, com todos tendo de se adaptar a uma média, e acredita que a adoção de sistemas de customização de conteúdos e atividades não deve afetar as relações pessoais, nem substituir o professor. “A escola é um ambiente de convívio social, cujo aprendizado coletivo é essencial. A busca pela personalização não deve suplantar essa experiência. No entanto, a IA pode ser útil para identificar dificuldades específicas e oferecer suporte direcionado”, afirma.
Outro impacto indiscutível é sentido nas avaliações. Mais uma vez, terceirizar todo o processo para uma IA parece um cenário de ficção científica, mas há sim possibilidades de alguns tipos de automatização. O Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (Caed/UFJF), Minas Gerais, uma das referências nacionais em avaliações em larga escala, tem como objetivo incorporar IA para elaborar questões e corrigir provas dissertativas — as provas de múltipla escolha são corrigidas automaticamente por sistemas simples; não há necessidade de ser IA.
“O Caed precisa de muitos instrumentos, todos com qualidade, para atender às diversas demandas do país. Isso implica ter contingente grande de especialistas elaboradores, o que acarreta um alto custo e também demanda tempo. Conseguir automatizar um pouco mais é um cenário totalmente desejável”, afirma Carlos Palacios, assessor técnico do Caed. A instituição é responsável, por exemplo, pela aplicação do Saresp (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo).
Até o momento, o grosso da elaboração de itens continua humano; o sistema desenvolvido internamente ajuda apenas no espelhamento de questões. “Espelhar um item é quando você troca o suporte — no caso do português você troca o texto; na matemática, você troca a situação-problema — mas a operação cognitiva exigida é praticamente a mesma. O esforço humano fica na supervisão e no aprofundamento do instrumento de avaliação”, explica Palacios. E mesmo na correção de questões dissertativas, tudo que foi testado fica aquém do corretor humano.
As máquinas, contudo, têm se saído bem na hora de corrigir provas de fluência em leitura aplicadas nos primeiros anos do ensino fundamental em vários estados. Os estudantes precisam ler e gravar palavras reais, palavras falsas e um pequeno texto. As gravações já têm sido analisadas por IA, que nos testes do Caed dá notas de forma mais acertada que os corretores humanos. “Na última edição a gente ainda teve um percentual avaliado por corretores humanos, até para fazer um controle de qualidade”, conta Carlos Palacios. Para evitar vieses negativos, o sistema é treinado com os diferentes dialetos e sotaques existentes no Brasil.
A IA traz ainda potencial de agilizar processos de gestão, seja das secretarias de ensino que lidam com volumes imensos de informações, seja para coisas simples das rotinas das escolas, como fazer atas de reuniões. “A gestão está usando para revisar um e-mail, escrever circular, transformar um texto em posts de redes sociais, transcrever reuniões. Também para análise de dados. Facilita muita coisa, mas ainda não pensa por nós”, relata Claudia Rossi, responsável pela tecnologia educacional da Escola Gracinha, em SP.
Os professores do Gracinha também têm sido orientados por meio de formações coletivas em como podem usar algumas ferramentas de IA como assistentes para ajudar no planejamento das aulas. Na escola, claro, os estudantes também têm utilizado algumas ferramentas, mas sempre com orientações dos docentes, para que tenham cuidado em refletir sobre o uso. “A gente começou pedindo para eles nos ensinarem, porque lá no início de 2023 detectamos que eles já estavam usando. Mas precisam entender as implicações, o que está por trás; não basta aprender a fazer prompt”, diz Claudia.
Nem uma revolução completa, nem uma moda passageira e sem importância. A IA é uma tecnologia de impacto sistêmico, comparável à introdução da luz elétrica, segundo Sayad. “A IA impacta o trabalho, a educação, a economia, o estilo de vida e a qualidade de vida. Ela deve ser tratada com a devida seriedade e responsabilidade, tanto pelos educadores quanto pelos gestores”, afirma. Mas a escola continua sendo escola.
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