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Fernando José de Almeida

Professor de pós-graduação em educação: currículo na PUC-SP e secretário municipal de Educação da cidade de São Paulo (2001-2002)

Publicado em 04/07/2024

O culto à ignorância e ao mercantilismo dos dados

Contradições da sociedade dita do conhecimento

A presente reflexão nasceu da busca de esclarecer algo que está na raiz de uma das crises trazidas para a educação contemporânea: o desenvolvimento de um tenaz e militante desinteresse pelo saber.

Na dimensão militante¹ da crise, ela se revela na defesa, na justificativa e, mesmo no elogio à ignorância que se vêm implantando nos valores e corações das novas gerações. Não se trata dos efeitos das fake news e nem da desinformação que se espalham pelos meios de comunicação. É uma espécie de vapor sorrateiro, difuso e profundo que entranha no coração de quem se interessa pelo conhecimento.

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Ela se ancora mais radicalmente numa espécie de inconsciente coletivo em cujo universo tudo é apenas uma imitação do real, levando-o ao paroxismo de defender a imitação como algo mais ‘verdadeiro’ e prático do que a própria realidade concreta, vivida, densa, finita, limitada e mortal.

Tal valor — da ignorância e da virtualidade —, tem nuances, mas está calcado na ideia de que o ‘empenho antropológico do aprender que resulta no saber e no pensar não precisa mais acontecer como valor histórico’.

A justificativa de tal proposta defendida descaradamente como uma inovação e melhoria para a humanidade se apoia também na simples ideia de que ‘tudo já está pensado’ por grandes firmas especializadas e imbatíveis em seus resultados.

Resta às novas gerações apenas o consumir — como um regurgitar dos produtos da matriz, realimentando-se insossamente do que já está disponível nas redes e nos mecanismos de pesquisa ou nos conhecimentos resultantes dos algoritmos das várias modalidades vindouras das inteligências artificiais — de posse das big five tech.

O pano de fundo de tal preocupação ganha impulso e se situa, para mim, basicamente nas consequências impostas narcoticamente pelas diversas e complexas redes de entretenimento e comércio, ditas, de comunicação social².

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Resumo desta parte da ópera: “O saber que vale está todo na matriz seja para registrar ‘tudo’ o que foi relevante para a humanidade, seja nas ‘receitas’ para enfrentar suas questões dos futuríveis”.

Estar distendido e repousante (num estado de dulcis mediocritas) neste mundo comunicacional e consumista é o segredo da paz duradoura e necessária para tornarmo-nos clientes bem atendidos no espaço de sua dimensão cidadã-consumidora de sistemas infinitos de 0800.

Apertando os parafusos da preocupação: por que tal valorização do não saber? Quem, em sã consciência, defenderia a ignorância como estado de espírito e destino da humanidade?

Haverá vantagens em não saber? Será a ignorância um benefício a ser distribuído fartamente ao ser humano? Para nivelar por baixo um primeiro ensaio de resposta pode-se dizer uma coisa certa: a ignorância barateia tudo. Ela não exige investimentos em si nem nos outros.

ignorância

Por que tal valorização do não saber? Quem, em sã consciência, defenderia a ignorância como estado de espírito e destino da humanidade? (Foto: Shutterstock)

Fica tudo mais fácil, rápido, sem dores nem empenhos especiais.

No entanto, continua ainda a fazer sentido a frase de Brizola: “A educação não é cara. Cara mesmo é a ignorância”.

Na toada lenta, mas poderosa da defesa tácita da ignorância, o não saber é prestigiado e estimulado continuamente.

Onde e como isso? Nas publicidades das grandes redes das lojas, shoppings, mídia e canais televisivos, no entretenimento e na sociedade do espetáculo — que vai manifestando a partir do poder dos influencers, aos BBB e aos campeonatos de F-1 ou das black friday. Difunde-se delicadamente uma ignorância charmosa, sem custo e francamente proveitosa a alguns interessados e não como bem comum.

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Mas, quem defenderia publicamente a ignorância, o desconhecimento e o não-saber como estado anímico e social mais eficaz para a realização humana de nossa vida?

Acho que ninguém. Ninguém de carne e osso. Mas encontraríamos aos montes, alguém que, online, a partir de ideologias bem disfarçadas, defenda as virtualizações da vida em suas dimensões ‘avatarescas’ concretizadas em forma de comida em pílulas, intimate live, chats, vida congelada em outros planetas etc. Daí brotam os argumentos de que o saber não é necessário, mas só o consumo de alguns conhecimentos requentados, triados, embalados, algoritmizados a partir de fontes e intenções do mercantilismo dos dados.

Como os defensores não aparecem tão ostensivamente assim, deve-se tratar do tema com argumentos claros, em campo aberto…para que a evidência dos princípios defendidos por eles possa ser questionada no campo cultural, ético e político dos próprios argumentadores.

Insisto na pergunta: quais as vantagens da ignorância? quem ganha com elas, em caso da haver vantagens? servem ao quê e interessam a quem?

*Fernando José de Almeida é professor de pós-graduação em educação: currículo na PUC-SP e foi secretário municipal de Educação da cidade de São Paulo (2001-2002).


¹Há milhares de jornalistas, psicólogos, administradores de empresas, influencers, todos com uma incorporação de uma coroa áurea de educadores que dedicam seus dias e textos a defenderem uma aprendizagem mínima, lúdica, pragmática, sem muito empenho e só baseada no desejo íntimo de cada indivíduo, de curto prazo e de eficácia imediata.
²Na verdade, as redes de ‘comunicação’ são redes ‘numéricas’ apenas enganosamente chamadas de redes sociais.

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