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Escolas Mais Admiradas

José Pacheco: burocratas da educação limitam a autonomia da escola

Para o fundador da Escola da Ponte, o professor precisa ser considerado autônomo e um investigador da sua própria prática

Publicado em 25/03/2024

por Laura Rachid e Maria Eugênia

José Pacheco - escola “Faz pouco sentido, nos moldes atuais da gestão das escolas, falar da democraticidade de funcionamento quando existem tão poucas oportunidades de autonomia e de exercício da capacidade de decisão”, critica José Pacheco (Foto: Alyne Pinheiro/SEE de Pernambuco)

Prestes a completar 73 anos, o educador português José Pacheco é direto: “O tipo de escola que admiro é aquela cujos professores tomam a decisão ética de reelaborar a sua cultura pessoal e profissional”.

Referência quando o assunto é escola e inovação — é o fundador da Escola da Ponte, em Portugal —, viaja o mundo para orientar educadores que veem na Ponte a certeza de que sim, é possível fugir de modelos tradicionais.

Nesta conversa, José Pacheco, que é também colunista na revista Educação, detalha como os ‘superiores hierárquicos’, presos a um padrão, tentam barrar escolas que buscam fugir do convencional, ainda que elas tenham embasamentos teóricos e práticos.

Confira, a seguir, a entrevista exclusiva.

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Que tipo de escola você admira e por qual motivo? Dê alguns nomes.

Poderia referir muitos nomes, mas quedar-me-ei por uma escola que a todos representa: a Escola Aberta de São Paulo. Ela é exemplo de resiliência, é como fênix renascida do extinto Projeto Âncora [em Cotia, SP].

O tipo de escola que admiro é aquela cujos professores tomam a decisão ética de reelaborar a sua cultura pessoal e profissional.

A cultura profissional dos professores é condicionada pela obediência formal a ‘superiores hierárquicos’ e pela tentação de entrar na ‘zona de conforto’.

Reflitamos sobre palavras-chave de projetos do século 21 (comunidade, rede, círculo); são incompatíveis com a manutenção de órgãos unipessoais e hierarquias burocratizadas. É necessário passar de uma cultura de solidão para uma cultura de equipe, de corresponsabilização.

O professor assume dignidade profissional quando conclui que não ensina aquilo que diz, que transmite aquilo que é, e opta por um exercício da profissão assente em critérios de natureza científica. 

Enquanto a burocracia prevalecer em detrimento da pedagogia, os professores continuarão a ser considerados os ‘bodes expiatórios’ dos males do sistema. Faltará apenas que os professores sejam, efetivamente, críticos, reflexivos das suas práticas. 

Que prevaleça a prática de uma comunicação horizontal, dialógica, em contraste com a cultura predominante nas escolas, uma cultura assente no individualismo, na competição desenfreada, na ausência de trabalho em equipe, na ausência de verdadeiros projetos.

Sejamos esperançosos. Assisto ao surgimento de projetos geradores de espaços de convivência reflexiva de que as escolas carecem. Vejo cuidar da pessoa do professor para que ele se veja na dignidade de pessoa humana e veja outros educadores e alunos como pessoas. 

Como se tornar uma escola admirada? Quais caminhos trilhar?

Uma escola admirada será aquela em que prevalece o exercício digno da profissão.

Sou professor de chão de escola. Tenho por hábito contar estórias. Opto por ‘responder’ com um incidente crítico ocorrido na década de 70 quando um mandante do ministério ordenou que eu retirasse das paredes dispositivos de relação, perguntei por que deveria obedecer à sua ordem. 

Respondeu que aquilo era “tudo uma palhaçada”, que “voltasse à sala de aula” e que eu deveria obedecer às ordens de um ‘superior hierárquico’. Com todo o respeito, lhe disse que faria se ele me dissesse porquê. Repetiu a cantilena autoritária. Com todo o respeito pela hierarquia, pedi-lhe que fundamentasse a sua ordem.

“Fundamentar?” replicou, incrédulo com o atrevimento de um ‘inferior hierárquico’.

“Sim, senhor inspetor. Diga-me em que modelo pedagógico se filia, qual a proposta teórica, quais os autores dessa proposta, quais os pedagogos que recomendam não utilizar os dispositivos que nós usamos.”

O inspetor amainou o tom de voz e perguntou quais eram ”as minhas teorias”.

Disse-lhe que não eram minhas. Eram de Mosconi, Biasutti, Freud e outros. Evoquei contribuições de âmbito psicanalítico.

“Freud? Já ouvi falar!… mas o que dizem os outros?”

“Com todo o respeito, recomendo ao senhor inspetor que os vá ler.”

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Diante das burocracias educacionais, quais pontos diminuem a liberdade da escola para a construção de uma proposta pedagógica que ela realmente acredite?

Os fenômenos educativos caracterizam-se por uma complexa e imprevisível instabilidade e por um permanente conflito de valores. E as ‘realidades’ educativas fomentam dilemas perante os quais os professores acabam, de qualquer modo, por tomar posição.

Vivemos um tempo em que ainda se impõe às escolas a prática de um modelo de ensino que não logra garantir a todos o direito à educação. Professores ‘funcionários’ sabem que, ensinando desse modo, condenam a maioria dos alunos à ignorância como o Ideb comprova , mas fingem que ensinam. 

A corrupção moral e intelectual grassa na administração pública e nas escolas uma corrupção moral-mãe de todas as corrupções. O sistema de ensino se deteriorou a tal ponto que sobrevive assente numa sutil inversão de valores. Não há parâmetros, regras, limites para o autoritarismo e a corrupção moral. Esgota-se a energia vital do lado saudável de um sistema que entrou num processo de entropia.

A escola de cidadãos atravessa tempos sombrios. Nos mais recônditos escaninhos de um sistema educacional hierárquico, autoritário, intelectual e moralmente corrupto, se reproduzem injustiças e desigualdades. Para que não suceda uma opção de alheamento, o professor deverá ser considerado como um profissional autônomo, que toma decisões e se assume como investigador da sua própria prática e da prática dos seus pares.

A tarefa básica é a de mudar vivendo o presente numa nova ética da liberdade, um jogo da liberdade com o real, que visa transformá-lo.

Quais são as principais habilidades de uma gestão escolar?

Convivi com professores gestores de elevada qualificação profissional, que diziam pretender concretizar uma gestão democrática. Fiz-lhes ver que essa seria uma utopia realizável se as escolas se assumissem em autonomia. O exercício de autonomia é condição sine qua non de gestão democrática.

O que se entende por gestão escolar? As escolas são pessoas, mas o Ministério da Educação crê que uma escola é um edifício, sujeito à ação de lideranças tóxicas que gerem uma escola como se gere um banco ou uma padaria.

Faz pouco sentido, nos moldes atuais da gestão das escolas, falar da democraticidade de funcionamento quando existem tão poucas oportunidades de autonomia e de exercício da capacidade de decisão. Uma gestão democrática não se compatibiliza com a menorização da instituição escola. E uma democracia que não cuida de democratizar a escola é um berço de ditaduras.

A educação continua a ser justificada mais como meio de controle social do que como instrumento de aperfeiçoamento pessoal. E um dos maiores óbices à mudança reside no dever de obediência hierárquica do professor, do diretor, do gestor, o que invalida qualquer esforço no sentido da autorresponsabilização.

Professores são perseguidos, ameaçados só porque querem melhorar a vida das crianças e dos professores. Burocratas conscientes de impunidade não hesitam em perpetrar atos administrativos discricionários. Quando alguém desobedece a normas sem nexo, arrisca ser admoestado, objeto de assédio moral.

Mas, não julgue que sou pessimista. Sou, irremediavelmente, esperançoso. Acredito nos professores e parto daquilo que eles são para que se sintam seguros no processo de mudança. Aproveito a sua formação experiencial. Concedo todo o tempo necessário e condições de autotransformação.

Talvez apenas seja preciso que os professores, para além de serem competentes, sejam éticos para que a mudança se opere.

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Pesquisa e evento Escolas Mais Admiradas

 A revista Educação traz em sua trajetória de 28 anos a idealização e organização de eventos e premiações, como o Prêmio Top Educação, que entra em sua 18ª edição, e o Grande Encontro da Educação, com oito edições realizadas. Este ano, lançamos mais uma novidade, dessa vez em dobro, a pesquisa Escolas Mais Admiradas pela gestão escolar, com votação aberta até 19 de abril, e em 19 de junho, em SP, um evento presencial para profissionais da educação conhecerem e se inspirarem nas escolas mais admiradas tanto da rede pública quanto da particular.

Clique aqui para saber mais da pesquisa e votar.

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Autor

Laura Rachid e Maria Eugênia


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