NOTÍCIA

Edição 301

Autor

Rubem Barros

Publicado em 22/03/2024

“Tá na hora de você ir pra EJA”

Esse comentário é frequente para os alunos ‘problemáticos’ das escolas de ensino regular. A representante dos fóruns de EJA no Fórum Nacional de Educação fala da falta de investimento na modalidade que diminui a cada ano, embora tenhamos 68 milhões de brasileiros em potencial

Mesmo sendo favorável ao programa federal Pé-de-Meia, que destinará R$ 200 mensais aos alunos do ensino médio que terminarem a etapa, a professora universitária aposentada Rita de Cássia Pacheco Gonçalves não crê que esse dinheiro seja suficiente para manter os estudantes na escola. Ao mesmo tempo, vê com bons olhos a adoção de mecanismo similar para os estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA), que perdeu 1 milhão de alunos entre 2018 e 2023. 

Porém, mais do que tudo, é preciso retomar o financiamento da modalidade, que despencou entre 2012 e 2020, caindo mais de 95%.  

A seguir, a catarinense Rita Gonçalves, que também deu aula em escola pública, analisa o momento da EJA no Brasil e lista alguns motivos para a queda de matrículas, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e critica a educação a distância (EAD) como um instrumento para baratear a oferta.  

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Segundo o último Censo Escolar (2023), o Brasil tem 68 milhões de pessoas a partir de 18 anos que não completaram o ensino médio nem o fundamental. Ou seja, 1/3 da população não terminou a educação básica e deveria estar na EJA. Esse percentual está subindo? 

Está aumentando. A matrícula na EJA caiu para mais da metade nos últimos 10 anos. A população mais velha não escolarizada continua nessa condição, pois não é atendida, e os jovens continuam saindo da escola. Esse movimento [do programa] PédeMeia é importante, mas é insuficiente, pois não são R$ 200 por mês que fazem esses jovens pararem de trabalhar para estudar. E a população mais velha também precisaria de auxílio permanente. Mas não sei dizer qual o percentual de aumento. Não é um aumento absurdo. 

Estamos falando de 1/3 da população.  

E metade da população produtiva, enfim, daqueles que estariam em idade de trabalhar. Desse total, cerca de 47% não tem ensino fundamental completo, incluindo a população mais velha, acima de 20, 25 anos. 

Temos dados de outros países, em especial da América Latina, para cotejar com esses números?  

De cabeça não sei dizer. Mas na Europa, por exemplo, a educação básica é universalizada (o que não quer dizer que haja 100% de escolarização). Na América Latina é diferente, só que a Argentina tem taxa de escolaridade e de anos de estudo muito mais alta que a nossa. Mas o Brasil está entre os piores. Uruguai e Chile com certeza também estão melhores. Tenho dúvidas sobre a Bolívia, da Venezuela não tenho dado nenhum. Mas é interessante notar que o único que tem escolarização de jovens e adultos, conjuntamente, é o Brasil. Na América do Sul e Latina, na Europa, fala-se em EA, educação de adultos, não de jovens. Porque a escolaridade dos jovens é alta, é a população mais velha que tem escolaridade básica incompleta. 

Muitos estudiosos têm destacado a existência de um movimento na escola regular para se livrar dos alunos afetados pela distorção idade/série.

É verdade. Há muitos relatos e queixas, especialmente de professores que trabalham na EJA. Mesmo em Florianópolis, que tem uma proposta de EJA que pode ser citada como uma referência importante, tem muitos adolescentes nessa etapa. E isso ocorre no Brasil inteiro. Se olharmos os dados de matrícula, a maioria dos alunos de EJA é de jovens adolescentes, de 15 a 18 anos. Sem dúvida, há um processo de expulsão dos ditos adolescentes problemáticos. A frase “tá na hora de você ir pra EJA” é muito usada nas escolas da idade obrigatória [regulares].  

E até que ponto a nota do Ideb influencia nessa questão?

Tenho dúvidas sobre isso. Acho que é muito mais uma história de perda de sentido do ensino médio, algo que ocorre há mais de uma década. O ensino médio ora é preparação para o trabalho, ora para o ensino superior, não tem uma personalidade, um sentido em si mesmo. Tanto para os jovens como para os professores. No ensino fundamental, há um descompasso da escola com relação às diferenças, ao multiculturalismo, uma dificuldade de encarar as pessoas de hoje. Não é só uma dificuldade pedagógica, dos professores, não é isso. É a estrutura da escola, o modelo. A sociedade construiu a ideia da educação como um direito de todos, da escola como um lugar da diversidade, mas o modelo ainda é o da escola homogênea, que quer todos os meninos e meninas da mesma idade, da mesma classe social, da mesma cor, da mesma raça, da mesma orientação sexual. Há muita dificuldade de lidar com toda essa diversidade, de construir um currículo que dialogue com tudo isso. E as crianças e adolescentes, estes em especial, têm esse problema do ‘desajuste escolar’, que começa no 4º ou 5º ano do fundamental e se acentua nos anos finais. Há um sobrecarregamento de expectativas, mas há problemas de currículo, de estruturas empobrecidas e de linguagens que fazem com que os meninos não se ajustem. Quando eu era estudante — fiz parte do grupo minoritário que ia para a escola — havia a promessa, e que de certa forma era cumprida, de que, se concluísse a escolarização básica, você conseguiria um emprego de longa duração. A escola, como instituição pública social, fazia a hierarquização da população. Um número reduzido entrava, alguns ficavam pelo caminho, mas quem permanecesse e se esforçasse conseguiria um emprego com alguma estabilidade.

Hoje isso não é mais verdade? 

Não, e os jovens sabem disso. A promessa de um emprego com estabilidade, salário digno e um trabalho justo não condiz mais com a instituição escolar, que não tem mais esse crédito.  

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Entre 2018 e 2023, houve redução de um milhão de matrículas nos níveis fundamental e médio de EJA. A que podemos atribuir essa queda? 

Em 2012, os recursos federais empenhados para EJA foram de R$ 1,8 bilhão. Em 2020, foram de R$ 8 milhões, queda de 95,56%, segundo dados levantados pelo professor Marcelino Rezende, da USP de Ribeirão Preto. Aí já dá para ter ideia do que os municípios fizeram.  

Isso considerando só os municípios?

Não. Tudo, todo o investimento em EJA. A maior parte dos investimentos vem do governo federal, via Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação e de Valorização dos Profissionais da Educação]. Quem oferece as matrículas são estados e municípios, a União é responsável pelo financiamento. Então, o que acontece? Há obrigatoriedade constitucional de ofertar educação dos quatro aos 17 anos. Se um prefeito não oferece educação infantil para as crianças de cinco anos, é acionado pelo Ministério Público. São obrigados a fazê-lo, enquanto a EJA não é obrigatória.

Não é um direito do cidadão? 

É um direito público subjetivo, mas o sujeito tem de requisitar. É dever do Estado ofertar, mas, como não é uma etapa obrigatória, o Ministério Público não vai em cima da prefeitura, a não ser que um grupo de moradores, de pessoas, o acione para isso. Os instrumentos para requerer esse direito são mais difíceis de serem usados do que aqueles utilizados na idade obrigatória. Qualquer um pode acusar um prefeito de não oferecer vaga para a educação infantil. Para a EJA, os próprios sujeitos têm de requisitar. Como eles não sabem que têm esse direito, não requisitam. Aí é fácil que se deixe de ofertar.

Em paralelo a essa redução de recursos, temos a resolução 01/21 do Conselho Nacional de Educação que alinhou a EJA à BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Se a BNCC já é complicada para a idade obrigatória, com alunos mais ou menos homogêneos, imagine como é ter currículo comum que não se restringe aos conteúdos, mas tem também forma de organização, com quatro horas de aulas por dia, X matérias… Isso na EJA não dá certo. E, ao alinhar a EJA à BNCC, o CNE permitiu que até 80% dessa oferta seja feita em educação a distância. Numa busca no Google sobre EJA ou supletivo em EAD, você vai ver a quantidade de ofertas… [para EJA EAD: 2,8 milhões de respostas].  

Apesar de baixo, um dos números mais estáveis de matrículas em EJA é em instituições privadas. Essa oferta em EAD explica esse fato? 

Exato. O que temos visto é a substituição da oferta de EJA por contratos entre prefeituras e empresas que oferecem EJA em EAD. A prefeitura compra esse serviço, que é barato, e oferta por esse canal. Há empresas de Santa Catarina que fazem EJA em Manaus; do Mato Grosso que operam para todo o Nordeste.

E existe algum tipo de avaliação dessas formações de EJA via EAD?  

Nada. A EJA tem sido relegada ao escanteio, à precarização da precarização. No governo Bolsonaro, a EJA não existiu.  

Em meio a isso tudo, teve a pandemia

Sim, o que foi um desastre completo. As prefeituras e estados ofertaram a EJA via EAD por celular e computador. Tudo que exige alguma rede de internet não funciona na EJA. Esses estudantes não têm Wi-Fi. Eles compram dados para usar o WhatsApp, não dá para assistir aula pelo celular com plano de dados. Outra forma foi fazer cópias de atividades que professores, de forma até heroica, levaram à casa dos alunos. Mas esses alunos não tinham como compreender e fazer as atividades sozinhos. Resultado: uma evasão absurda, sem que houvesse um processo de resgate desses estudantes depois da pandemia.

rita

“É dever do Estado ofertar, mas, como não é uma etapa obrigatória, o Ministério Público não vai em cima da prefeitura.” (Foto: Arquivo pessoal)

E no atual governo?  

O ministro Camilo ainda não deu conta de lançar a política dele. A gente sabe, pois estamos lá pressionando, que a política está praticamente finalizada na Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão).  

Saberia adiantar algo dessa nova política? 

O que sabemos é que vão fazer chamadas públicas, tem um movimento para articulação de financiamento para as prefeituras e estados, extensão de auxílio permanente versão do Péde-Meia para EJA, para aqueles que estão no CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais), aquelas pessoas na linha da pobreza que recebem Bolsa Família ou estão desempregadas ou em trabalhos precários. Outra proposta importante é a de buscar intersetorialidade com os Ministérios do Trabalho, da Justiça (tem EJA nas prisões), das Mulheres, dos Direitos Humanos, porque eles têm diferentes programas de educação e podem ajudar a incentivar, pois têm os dados, por exemplo, das mulheres de baixa renda, das trabalhadoras informais, e sabem quantas são, onde estão, como chegar a elas. A mesma coisa com a Agricultura, o Trabalho, que podem articular a formação com a qualificação para o trabalho. O programa é interessante, mas faz um ano e três meses que está lá e o ministro não cita a EJA.

Mas houve alguma mudança? 

Sim, houve. O fator de ponderação do Fundeb até o ano passado era 0,8 (80%) para o ensino fundamental em EJA [em comparação com o valor base de 1 dos anos iniciais do fundamental urbano] e agora é de 1 para a EJA com avaliação [e 1,2 para EJA articulada à educação profissional de nível médio]. Isso pode incentivar municípios e estados a oferecer EJA, a melhorar.  

A senhora falou da questão curricular, que já gerava tensões entre jovens e mais velhos. A BNCC não faz distinções. Separar jovens e adultos ajudaria ou atrapalharia? 

De modo geral, os adultos dizem que os jovens atrapalham. Os jovens não se importam. Mas temos experiências exitosas de turmas mistas em termos geracionais. Nelas, os adultos ‘adotaram’, acolheram os jovens. Isso funcionou bem.  

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Nesses casos, identifica-se algo de diferente, inclusive do ponto de vista curricular? 

Acontece em lugares com propostas diferenciadas. Vou dar o exemplo de uma turma de ensino médio aqui de Florianópolis: eles não têm aulas de matemática, de português, eles têm projetos de pesquisa. Escolhem temas e questões que querem aprofundar, conhecer, a partir de seus interesses e necessidades. Aí formam grupos e vão pesquisar, tendo os professores como mediadores na busca das respostas nas diferentes áreas do conhecimento que ajudem a entender aquele fenômeno ou questão. Os adultos adotam os mais jovens incentivando-os, cobrando presença, participação, fazendo junto. Há depoimentos, por exemplo, de um menino e uma senhora, que tiveram uma relação quase de neto e avó. Ou seja, não é impossível.  

Mas acaba sendo exceção… 

Há questões que requerem tratamento diferente. Para os os adolescentes, é preciso ter uma outra linguagem: um tipo de música, um tipo de letra, de literatura, de abordagem. Para adultos e idosos trabalhadores, a linguagem é outra. O mesmo assunto precisa ser tratado de forma diferente, considerando a especificidade geracional. E há aspectos culturais, o que preocupa os jovens, as pessoas LGBTQIA+ são questões de outra ordem. Os pontos de partida para ter acesso ao conhecimento, as perguntas e respostas são diferentes. O currículo não pode ser tratado como uma caixa igual para todo mundo; se isso já é complicado para meninos e meninas da mesma idade e geração, na EJA não funciona de jeito nenhum. 

A senhora também é arquiteta. O aproveitamento dos espaços de aula poderia ser diferente? 

Minha especialidade na EJA é o ensino de matemática, mas minhas teses de mestrado e doutorado são sobre arquitetura escolar. Sem dúvida, o espaço é determinante na organização. Quando se organiza a sala sempre do mesmo jeito, esperando pessoas homogêneas, com as cadeiras uma atrás da outra, isso mantém a escola num modelo, numa metodologia desconfortável, cansativa, que não ajuda a permanência durante quatro horas, em especial para quem trabalhou o dia todo. Outra questão é do espaço enquanto estímulo para o conhecimento. É muito frequente ter senhoras e senhores idosos numa sala da educação infantil, cheia de letrinhas, de frutinhas… E também é muito possível que os professores organizem uma proposta metodológica da mesma forma que para as crianças.  

E as bibliotecas?  

Para criar o hábito, o gosto pela leitura, é preciso estar perto dos livros. Na EJA, as bibliotecas frequentemente estão fechadas. Faltam estímulos visuais, imagens da vida adulta, textos da vida adulta.  

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