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Arte e Cultura

Lia de Itamaracá, a rainha da ciranda antes e depois da merenda escolar

Patrimônio vivo pernambucano, os ensinamentos de Lia de Itamaracá acompanham todos os seus passos e devem estar presentes nas escolas e universidades, assim como de outros mestres e mestras populares

Publicado em 05/09/2023

por Laura Rachid

Lia de Itamaracá_destaque Se aposentou como merendeira da rede pública. Enquanto a comida esfriava, fazia ciranda com os estudantes Foto: Ytallo Barreto

O Brasil tem uma rainha ainda viva. Negra, 1,80 metro de altura, olhos que se aproximam do azul e um sorriso que irradia. Seu nome é Maria Madalena Correia do Nascimento, mas é conhecida pelos que valorizam a cultura popular como Lia da Ilha de Itamaracá, a 45 quilômetros de Recife, capital pernambucana.

Parida em um lar na praia do Sossego, trabalhou em casa de família, mas se aposentou como merendeira da rede pública, profissão que exerceu por 30 anos. Em 1977 gravou o primeiro disco, A rainha da ciranda.


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Aos 79 anos, Lia de Itamaracá parece uma entidade mensageira das ondas do mar. Os indígenas, como os Guarani Mbya, enxergam a vida sem divisão entre cultura e religião, por exemplo. Da mesma forma devemos enxergar Lia: como um todo que movimenta em sua comunidade a dança, canto, a alimentação e os diferentes saberes por trás de cada ato. Sua força é tamanha que seu movimento ultrapassou a ilha, atingindo o Brasil e o mundo. Tanto que em 2005 foi reconhecida como Patrimônio Vivo de Pernambuco. Já em 2019, recebeu pela Universidade Federal de Pernambuco o título de doutora honoris causa. Há dois anos, período de retrocessos, o país teve um avanço, a ciranda do Nordeste foi reconhecida como Patrimônio Cultural do Brasil. Contudo, tanto ela quanto seu produtor afirmam que não é valorizada pelo seu estado natal.

Lia também está em filmes como Bacurau (direção de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles), em que interpretou dona Carmelita. Ano que vem mais destaque, finalmente. Será enredo de Carnaval de duas escolas de samba, uma de São Paulo e outra no Rio de Janeiro.

Confira, a seguir, a entrevista feita presencialmente em SP, onde esteve para shows no Sesc Santana. Logo depois, seguiu para festivais na Europa.

O que é a ciranda, que a senhora diz ser originada de mulheres que esperavam os maridos voltarem da pesca? Tem zabumba e outros instrumentos? Qual a ligação com o mar? 

A ciranda é uma dança de roda em que dançam crianças, adultos e vamos indo. Então vem a comunidade, os pescadores, as mulheres dos pescadores. Os pescadores vão para o mar, as mulheres ficam em casa esperando o marido voltar com a alimentação para as crianças. E sábado à noite já estão todos no espaço cultural que Lia tem em Itamaracá, esperando Lia chegar para fazer a ciranda.

Tem zabumba, surdo, tarol, ganzá, pistão, trombone, tem saxofone. Toda a minha música é inspirada no mar. Quando quero escrever vou à beira da praia. Quando a onda bate e volta a música está pronta, na beira da praia. 

Com quem aprendeu a cirandar?

Todo o meu sonho era cantar. Da minha família só quem teve esse dom fui eu. Pedi muito a Deus e à minha mãe Iemanjá para adquirir o que queria fazer: cantar.

A senhora conseguiu terminar a educação básica?  

Estudei até o 4º ano primário, em que aprendi a entrar e sair. Saber andar, para onde vai para onde vem, que horas volta e que dia volta. Quer dizer, não sou analfabeta. Sou pessoa de pouco estudo, mas isso não desmancha o meu barato.

Fui merendeira na escola pública, fazia merenda para 270 crianças em dois turnos, manhã e tarde. Me sentia muito bem com essas crianças e alimentando elas. E também ensinava a ciranda para os alunos. Enquanto a comida esfriava ia dançar e cantar junto deles. Antes de voltar para a sala de aula, já alimentados, a turma dançava de novo. Não era no meio da aula.


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Quem são seus mestres e mestras da vida, aqueles que te ensinam? 

Primeiramente é Deus. A minha mãe é Iemanjá. Sou católica apostólica romana e em matéria espiritual filha de Iemanjá. Minha crença não me empata para ir em candomblé, crente. Nada. Cada qual no seu quadrado. Respeito todas as religiões.

O que aprendi não fica só pra mim, tenho que distribuir para quem quer aprender. Tem muitos mestres cirandeiros que posso ter contato com eles, reunião com eles, receber o andamento deles e eles receberem os meus andamentos.

A ciranda não foi fácil, muito difícil, mas lutei e venci. A pessoa que quer aprender logo assim a cultura, quer cantar, tem que estudar muito. Mestres da ciranda, tem o Antonio Baracho, e as filhas dele fazem backing vocal comigo, dona Biu e Dulce.

Lia de Itamaracá

“Sou católica apostólica romana e em matéria espiritual filha de Iemanjá”
Foto: Marcus Leoni

De quem é a música “essa ciranda quem me deu foi Lia, que mora na Ilha de Itamaracá” ? 

Essa música está uma polêmica muito grande. Teca Calazans [cantora e compositora] passou 20 dias de descanso na Ilha de Itamaracá. Me ouvindo cantar pediu para cantar uma música pra ela e segui para a praia. Ela tinha gravador, violão, nada disso eu sabia. Na praia ‘sufrejei’ a música para ela, que disse que ia pôr letra nessa música: Lia, será uma ciranda em sua homenagem. Ela diz que não lembra. Mas esteve sim comigo.

O reconhecimento do seu trabalho aconteceu tarde. Dizem que depois do festival Abril pro Rock, realizado em Pernambuco, em 1998, teve um leve avanço. Por que não veio mais cedo? Preconceito por ser mulher, negra e nordestina? Desvalorização da cultura popular?

Pela falta de ajuda dos gestores da prefeitura, do governo. Agora que estou ficando reconhecida. Agora o bicho pegou, agradeço ao Beto, meu produtor. Quando ele me encontrou em Itamaracá estava sem experiência de nada, ninguém me ajudava. Tanta coisa na minha cabeça para resolver, mas sem saber como. Porque os gestores dos lugares só tiravam foto. Tem festa: vamos chamar a Lia. Mas chegar perto, nada.

Se você for pelo racismo não vai fazer nada. Somos todos iguais e não deveria ter essa ilusão por conta de pele. Se cortar o dedo do preto, o sangue é vermelho. Se cortar o dedo do branco, o sangue é vermelho. Me orgulho de ser negra. 

Como eram as festas tradicionais na época de sua juventude?  

Tinha coco de roda, pastoril, fandango com barco em que ficavam parados. Só não tinha ciranda. Tinha festa junina. Hoje eu canto ciranda, coco, maracatu, frevo. Não componho coco, mas sei cantar coco. Maracatu sei cantar.

Lia de Itamaracá

“Minha raiz é Itamaracá e eu não desprezo Itamaracá por nada neste mundo”
Foto: Marcus Leoni

A senhora viaja, mas sempre volta à ilha. O que a atrai? 

Eu na ilha nasci, me criei. Sou filha de Itamaracá, minha família é Itamaracá. Minha raiz é Itamaracá e eu não desprezo Itamaracá por nada neste mundo. Saio e volto. Minha casa fica recolhida, mas dela avisto o mar. Saio de casa, me sento, converso com a onda do mar. Minha mãe é Iemanjá.


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Beto Hees, o olhar por trás de Lia de Itamaracá

Produtor musical de Lia, foi Beto Hees que a levou ao festival pernambucano Abril pro Rock, em 1998. Durante a entrevista com a rainha da ciranda, ele complementou algumas perguntas feitas a ela. Confira. 

“Lia é uma referência na comunidade não só da música como cirandeira, mas como merendeira, pois alimentou duas ou três gerações de Itamaracá. O fato de estar na escola mexeu na comunidade. Tem também uma bolsa vitalícia como patrimônio vivo de Pernambuco, e isso tem contrapartida, ela participa de eventos de fundação de cultura, atividades relacionadas ao programa de patrimônio vivo. Mas não tem apoio para fazer ciranda. Pela idade dela, o valor dessa bolsa não dá nem para pagar plano de saúde. Não é algo que ela pode investir para fazer ciranda na praia.”

Desvalorização de Lia no cenário cultural

“Lia é mulher, negra, da cultura popular, e é de uma ilha nordestina. Quando comecei a trabalhar com ela, há 26 anos, já era muito famosa, mas não usufruía dessa fama. Há várias razões, inclusive racismo estrutural forte. Mesmo na cultura popular, geralmente, os homens estão à frente. Ela era a única mulher cirandeira, há muitos cirandeiros, inclusive, Antonio Baracho, que dizem ser o criador do ritmo. Até você chegar e ocupar o espaço que ela está ocupando só agora dentro da cultura popular do país [é um processo]. Ela está no cinema: Sangue Azul, Bacurau, série Santo na Netflix. Três livros publicados. É uma excelente cozinheira, então está na gastronomia, abarca várias áreas da cultura. Ela não pode ser colocada apenas como uma personagem da cultura popular, acho que ela ultrapassou isso. 

Fomos ano passado para a Europa, financiamos tudo, este ano também estamos indo e sem apoio. Mas se fosse outro artista teria apoio de Pernambuco, estado que ela tanto divulga. Ela é a maior referência da Ilha de Itamaracá.

Há uma ressonância grande por conta dela mesma. Mas o reconhecimento não se traduz em valorização de política de Estado. Muita coisa tem que ser conquistada ainda. E há muitas outras Lias, bordadeiras, fazendo seu trabalho, são grandes e também não têm apoio. Então mesmo ela fazendo essa mídia toda, ela não é apoiada pelo governo de Pernambuco.”

Escolas particulares de outras regiões fazem imersões com a rainha da ciranda. Beto detalha

“Fazemos muito trabalho com escolas de Pernambuco. Escolas que financeiramente podem, vêm do Rio de Janeiro, Minas Gerais, e fazem vivência de ciranda com a gente que chamamos de Aprender a Cirandar. Há grupos de 70 a 80 participantes, uns até com tradutor. Visitam Caruaru e outras cidades e quando chegam a Itamaracá fazemos uma vivência. Tem fala sobre a roda e seu simbolismo. A professora abre com a parte acadêmica, músicos falam de seus instrumentos. Lia também fala. Depois o grupo se divide entre voz, percussão e dança. Na voz ficam Lia e as filhas de Baracho. Todos passam pelas três etapas e no final há uma ciranda com todos. Na ciranda não tem primeiro, último, não tem homem, mulher, idade, preto, branco. Você está na roda. Não tem hierarquia. E se você não quiser, sai da roda. Não tem obrigação.”

Escute nosso episódio de podcast:

Autor

Laura Rachid


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