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Colunista

José Pacheco

Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)

Publicado em 30/08/2023

Equívocos da ‘deficiência’

Expliquei que, quando tentei ensinar um surdo, não consegui. E que, se houvesse um deficiente ali, seria eu, que não sabia a linguagem gestua

Capelas, 7 de junho de 2043

Nos idos de 23, encontrei nos Açores um projeto onde todos os alunos eram ‘especiais’, quando a ‘inclusão’ prometida em Salamanca ainda não passara de mero enfeite de tese. O conceito precisava de clarificação. Comprovei essa necessidade, inopinadamente.

O organizador de um evento, pela enésima vez, me dirigiu o convite:

“O senhor doutor não vem ao palco? Venha! Suba!”

Não subi.

 “Tem power point?”

“Não. Só tenho power.”

Pareceu não entender a chalaça. 


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“O que quereis saber?”

Milhares de vezes havia feito essa pergunta. A resposta era o silêncio. Porém, daquela vez, um braço se ergueu. 

“A senhora quer fazer uma pergunta?”

“Não é bem uma pergunta. É um comentário. Posso fazer?”

“Certamente! Faça o favor!”

“O senhor é a pessoa indicada para abrir um congresso de inclusão.”

“Muito obrigado, minha senhora”.

“Não acabei…” – disse a senhora, sustendo a vaidade que me invadia. Deveria ter lido os meus livros sobre inclusão e me parabenizava.

“Então, diga.”

E a senhora disse:

“O senhor é a pessoa indicada para abrir um congresso sobre inclusão, porque eu já vi que o senhor é deficiente.”

Gargalhada geral! 

Contei até 20. Respirei fundo. Perguntei:

“A senhora acha que eu sou deficiente por quê?”

“Porque eu já vi que o senhor é estrábico.”

“A senhora pode chamar-me estrábico, vesgo até, mas a deficiência é de natureza conceptual ou de contexto. Expliquei que, quando tentei ensinar um surdo, não consegui. E que, se houvesse um deficiente ali, seria eu, que não sabia a linguagem gestual. Quando uma criança com paralisia cerebral chegou à Ponte, deficiente era o contexto, pois não havia rampa de acesso.” 

A senhora não desarmou:

“O senhor é deficiente.”

“Por quê, minha senhora?”

“Porque o senhor vê menos do que eu!” 

Essa ‘deixa’ me permitiu provar-lhe o contrário, questionando o velho conceito anglo-saxônico da ‘teoria dos dotes’. Contei-lhe um episódio por mim vivido, quando via um programa de televisão num espaço público. 

Um daqueles seres humanos, que andam sozinhos no mundo não me viu — eu seria paisagem, transparente — e se colocou entre mim e o aparelho de televisão.

Perguntei à senhora: 

“Se estivesse no meu lugar, como reagiria?”

“Eu diria para o cavalheiro ter respeito e sair da minha frente.”

“A senhora iria criar uma situação de conflito.”

“Pois ia.”

“Eu não precisei de criar tal situação.”

“Como? O sujeito não se pôs entre si a televisão?”

“Pôs-se entre mim e a televisão. Mas eu fechei o olho direito e passei a olhar a televisão com o olho esquerdo, continuei a ver a televisão. A senhora é capaz de fazer isso?”

“É claro que não!”

“Então quem é o deficiente? A senhora, que só consegue ver de uma maneira, ou eu, que vejo de três?”  

Perduravam muitos equívocos nas mentes e nas práticas. A chamada ‘educação inclusiva’ não era missão exclusiva da escola. Era um produto histórico de uma época e de realidades educacionais que requeriam o abandono de estereótipos e preconceitos.

Escute nosso episódio de podcast:


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