NOTÍCIA

Edição 295

Autor

Karen Cardial

Publicado em 02/08/2023

Socioemocional: espaço social de convivência, a escola deve desenvolver a habilidade de estarmos juntos

As habilidades socioemocionais na escola ajudam a formar indivíduos capazes de lidar com suas angústias e com um universo cada vez mais complexo

As competências socioemocionais são as habilidades ligadas à inteligência emocional e à capacidade de se organizar e lidar com as próprias emoções. O ponto de virada veio com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em 2018, quando determinou que todo estudante tem o direito de aprender não só os conteúdos de português e matemática, mas também de desenvolver habilidades, como empatia, resiliência, comunicação, autorregulação, entre outras. Claro que há escolas englobando esse tipo de abordagem bem antes da Base, mas de maneira geral, na educação tradicional, as questões emocionais eram vistas apenas no campo da psicologia e da psiquiatria e não eram trabalhadas na escola e a partir do documento passou-se a pensar as competências na ação pedagógica.


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Antigamente também se separavam o estudo e o trabalho das habilidades socioemocionais das habilidades cognitivas. Hoje, entende-se que ambas são altamente entrelaçadas e uma estimula o desenvolvimento da outra, por isso, devem ser trabalhadas em conjunto. Um dos pontos-chave que a neurociência traz para a educação é que as emoções exercem um papel essencial na aprendizagem. O emocional reforça os caminhos neurais, estimula o raciocínio lógico e desperta a criatividade.

Daiane Fraga, doutora em neurociência pela Universidade Federal de Santa Catarina e pós-doutora com pesquisas sobre o neurodesenvolvimento pela Universidade de Massachusetts, EUA, aponta que dirigidas por meio de um apego seguro com um cuidador, tanto na escola como em casa, as experiências sociais e emocionais iniciais informam e treinam as importantes regiões emocionais do cérebro para que essa regulação socioemocional seja efetiva, impactando diretamente o desempenho acadêmico da criança.

habilidades socioemocionais

Daiane Fraga: “A construção de relacionamentos sociais na escola está ligada a uma melhor gestão das emoções e é um preditor de longo prazo para o comportamento social e o desempenho acadêmico da criança”
Foto: arquivo pessoal

Segundo Rosinda Oliveira, psicóloga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Ph.D. pela Universidade de Oxford, Inglaterra, ao nascer o indivíduo tem habilidades e características de personalidade, determinados modos de funcionar em termos cognitivos e em termos da personalidade e do humor. E tende a ser mais recolhido ou extrovertido, ou a ter uma atenção mais eficiente. Essas tendências existem, mas é por meio da interação que se pode moldá-las. E são essas interações que vão marcar o desenvolvimento neurológico. O cérebro possui a parte neurológica e a parte social, que é determinada socialmente.

Então se estimular determinadas estruturas cerebrais na interação social, haverá um desfecho “x”, e se não as estimular, terá outro desfecho. Um indivíduo distraído, com pouca capacidade de atenção, mas que tem uma família que oferece rotina e estrutura, sai-se bem e consegue viver. Talvez tenha noção de que é um pouco esquecido, mas não chegará a desenvolver um transtorno, tampouco uma patologia.

O desenvolvimento socioemocional está intimamente ligado ao desenvolvimento pessoal e profissional. “O sujeito pode ter um QI altíssimo, mas, se não tiver habilidades sociais e de autorregulação, certamente terá dificuldade para obter sucesso profissional e pessoal”, declara Rosinda que também é professora do programa de pós-graduação em psicologia na UFRJ.

É no dia a dia que a mágica acontece

Mais do que trabalhar as habilidades e as competências socioemocionais na escola, nas diferentes faixas etárias, Silvia Breim, coordenadora de formação da iniciativa Vivescer, do Instituto Península, e especialista em desenvolvimento integral pela Chie Integrates, afirma que é preciso trabalhar a convivência no ambiente escolar. Tudo o que acontece na escola é oportunidade para que alunos e professores desenvolvam habilidades ou competências socioemocionais. Pensar menos em trabalhos para o desenvolvimento das competências, como aulas de empatia ou de cooperação, e mais em como os alunos, professores e toda a comunidade escolar vivenciam situações que possibilitam aprenderem a trabalhar juntos, se conhecerem cada vez mais e melhor. O foco está no dia a dia.

Bianca, de oito anos, aluna do 3° ano do ensino fundamental 1 de uma escola particular em São Paulo, explica que algumas vezes a professora consegue identificar conflitos em sala de aula por estar atenta ao que ocorre no dia a dia ou quando a própria criança a procura. Mas há momentos que conflitos não são notados e estes sobrecarregam as crianças. Por medo, insegurança ou vergonha, não buscam ajuda e enfrentam uma situação difícil, e não possuem habilidades para lidar. “Eu tento resolver sozinha, muitas vezes para não ter que chamar a professora e ser aquela confusão”, relata Bianca.

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Bianca diz que nem todos os conflitos que ocorrem em sala de aula são notados pela professora e mostra que ter uma escuta em casa também é importante
Foto: arquivo pessoal

Ano passado, quando cursava o 2º ano do ensino fundamental 1, Bianca viveu momentos angustiantes quando passou a sentir-se obrigada, todos os dias, a brincar, lanchar e sentar-se para uma atividade sempre com a mesma amiga da classe. Essa aluna tinha dificuldade em relacionar-se com outras crianças da sala. Apesar do carinho pela amiga, Bianca também tinha outras amigas e interesses, como brincar num outro espaço e poder escolher companhia para o lanche ou para um trabalho em dupla. Mas a amiga chorava ou ficava brava ao notar seu afastamento. Bianca sentia-se culpada e responsável até que um dia conversou com a mãe e chorou.

“Ao notar que minha amiga me chamava, fingi que não a ouvi para poder brincar com outras crianças. Mas depois fiquei muito triste por tratá-la dessa forma”, expõe. Sua mãe explicou que ela não era responsável e que tinha o direito de estar com quem desejasse e ser amiga de todos. “Foi um alívio, pois achei que a culpa era minha”, completa.

As habilidades de autorregulação e as habilidades socioemocionais desenvolvidas precocemente são preditoras daquilo que se vai ter disponível mais tarde e do que se vai alcançar ao longo da vida. “As emoções positivas podem representar um poderoso catalisador para o bem-estar e o sucesso escolar. Estudos mostram que essa construção de relacionamentos sociais na escola, com professores e alunos, pode estar ligada a uma melhor gestão das emoções nessa fase e é um preditor de longo prazo para o comportamento social e o desempenho acadêmico da criança”, esclarece Daiane Fraga, que estuda o cérebro em desenvolvimento desde 2010 com diversos artigos publicados em revistas internacionais.


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Onde há pessoas, haverá conflitos e na escola é assim também

O conflito é inerente à existência humana. As regras não impedem conflitos, tampouco proporcionam um ambiente saudável para as crianças se desenvolverem. Silvia Breim, que atua há mais de 10 anos como formadora de professores, informa que há diversas experiências que mostram que quanto mais as crianças, desde pequenas, participam da construção das regras, são criadas possibilidades de diálogos e há menos chances de conflitos. “Uma das dicas que damos nas escolas é a de construir junto com os alunos os combinados importantes para a vivência diária naquele espaço que é de todos. E quando um estudante não respeita uma regra, existe um contexto para refletirem juntos sobre o ocorrido e decidirem qual encaminhamento a turma dará.”

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Silvia Breim afirma que é preciso trabalhar a convivência no ambiente escolar. Tudo o que acontece na escola é oportunidade para que alunos e professores desenvolvam habilidades ou competências socioemocionais
Foto: arquivo pessoal

Uma escola que preze por uma cultura de acolhimento possui espaços para acolher a diversidade e a diferença, desenvolve em crianças e adultos as habilidades socioemocionais e busca caminhos criativos para a solução de problemas.

É preciso ultrapassar a ideia do acolhimento só na primeira semana de aula, quando um novo aluno chega e é recebido com cartazes de boas-vindas, atividades divertidas e abraços. O acolhimento pontual não tem a força para construir com as crianças, jovens e adultos novas maneiras de estar na escola e de se relacionar uns com os outros. 

Na adolescência o momento é de alerta

A adolescência é um período singular, uma fase crítica de desenvolvimento, com mudanças importantes no nível neural e psicológico. Momento de transição, o indivíduo constrói sua identidade e cria um modo de ser único e particular. No campo psicológico cria-se uma certa independência em relação à família, em termos de escolhas, por exemplo. Já no campo neurológico, Rosinda explica que ocorre a maturação de determinadas estruturas cerebrais que são absolutamente críticas tanto para o funcionamento intelectual quanto para o funcionamento socioemocional.

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“A adolescência é um momento de alto risco pela necessidade de reconhecimento do outro e de autoafirmação; em situações de vulnerabilidade, é o momento de alerta”, diz Rosinda Oliveira
Foto: arquivo pessoal

“As estruturas de autorregulação estão em franca maturação. É um momento em que, quando se intervém de modo apropriado, conseguem-se grandes efeitos. Mas é também um momento de alto risco, porque outras variáveis estão agindo. As variáveis sociais têm impacto no adolescente, e a necessidade de reconhecimento pelos outros é fundamental para sua segurança e afirmação. Em situações de vulnerabilidade, o indivíduo fica ainda mais vulnerável. Quando pensamos em populações expostas à violência, ao tráfico, ao crime, é o momento de alerta”, finaliza.



Os três princípios para a implementação da cultura de acolhimento

Silvia Breim, que há três anos atua nas secretarias estaduais de Educação do Brasil, com desenvolvimento integral, bem-estar docente e cultura de acolhimento, esclarece que para ocorrer mudanças de práticas na escola e mudanças nas relações, são necessárias estratégias e ferramentas que ajudem a colocar em prática os três princípios para implementação da cultura de acolhimento: princípio ético, estético e político, embasados na Política Nacional de Humanização do SUS.

1º Princípio ético

Toda diferença é bem-vinda: cores, raças, ideologias, pensamentos diferentes, coabitando num mesmo espaço. Pois é a dificuldade em lidar com as diferenças que ocasiona, em grande parte das vezes, os conflitos nas escolas, como exclusão de estudantes, agressões, bullying, cyberbullying, diversas formas de violência, indisciplina, entre outros.

2º Princípio estético

Abre espaço para a criação, onde não há respostas prontas para os problemas, pois, devido aos diversos níveis de complexidade, os problemas requerem diferentes soluções. A escola pode ter seus protocolos, mas é necessário criar um espaço onde se possa dialogar sobre os conflitos para que construam, juntos, soluções para o ocorrido.

Exemplo: uma escola cuja questão recorrente era a de alunos que tinham explosões de raiva em determinadas situações, ao observar seu próprio espaço, identificou uma sala pequena quase sem uso que se transformou no espaço da calma. O ambiente foi preparado com almofadas, cartazes com exercícios respiratórios foram colados nas paredes, criou-se um contexto e construíram-se com as crianças os combinados de uso daquele espaço. Quando se sentia irritada e raivosa, a criança estava autorizada a utilizar a sala para se restabelecer, sozinha ou acompanhada de um monitor. Trabalharam-se a autorregulação emocional e o autoconhecimento dos alunos, criando um espaço de diálogo e uma solução, que não foi através de uma aula de gestão da raiva, mas a partir da atenção da escola ao que acontecia no seu ambiente.

3º Princípio político

A importância de criar espaços na escola para que todos participem. A gestão escolar não é a única que toma decisões, mas trabalha-se na construção conjunta de soluções. Verificar qual é a melhor contribuição que cada um, dentro de sua função, pode trazer diante de determinado desafio. Onde todos tenham direito a voz e vez. Todos precisam estar incluí­dos na questão por meio de estratégias participativas. 



Escute nosso episódio de podcast:

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