NOTÍCIA

Edição 295

António Nóvoa: professores para libertar o futuro

Para o pesquisador português que lança novo livro no Brasil, os professores devem alargar as possibilidades de futuro, abrir caminhos e mudar destinos. Mas para isso é preciso que tenham condições de afirmar a sua posição no plano profissional e público

Publicado em 28/07/2023

por Paulo de Camargo

O professor português António Manuel Seixas Sampaio da Nóvoa — conhecido no Brasil como António Nóvoa — costuma citar o escritor açoriano Vitorino Nemésio (1901 – 1978) para descrever suas relações com o país: “Foi em Água de Mininos/Na Bahia, à flor do mar/Que o português percebeu/Que isto de ser brasileiro/É questão de começar”. No caso de Nóvoa, o começo se deu no ano de 1994, quando esteve na pequena cidade de Águas de São Pedro, em um congresso do qual também participava Paulo Freire. 


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Desde então, viajou por todos os estados brasileiros, fez conferências em dezenas de municípios de todos os portes, e se tornou uma referência nacional para temas como história da educação, formação de professores e, mais recentemente, a transformação da escola. Como embaixador de Portugal junto à Unesco, António Nóvoa presidiu o comitê de pesquisa e redação da Comissão Futuros da Educação, que gerou o recente relatório Reimaginar nossos futuros juntos: um novo contrato social para a educação, publicado no final de 2021.

Agora, Antônio Nóvoa aborda todos os temas em mais um lançamento inédito. Trata-se do livro Professores – Libertar o futuro (ed. Diálogos Embalados). O autor esteve no Brasil em maio para lançamentos no Rio de Janeiro e em São Paulo, e concedeu à revista Educação a entrevista a seguir. Confira.

Seu último livro, recém-lançado no Brasil, coloca em primeiro plano o professor como o personagem central para a transformação da escola. Por que o senhor acredita ser imperativo, hoje, defender o papel dos docentes? 

Num tempo de grandes mudanças, muitos alimentam visões fantásticas de um futuro sem escolas e professores. As escolas seriam substituídas por diferentes situações de aprendizagem, em casa e noutros lugares, em momentos presenciais e virtuais. Os professores seriam substituídos por dispositivos tecnológicos, reforçados pela inteligência artificial. Seria um futuro sem futuro, pois a educação implica um trabalho em comum num espaço público, implica uma relação humana marcada pelo imprevisto, pelas vivências e pelas emoções, implica um encontro entre profes­sores e alunos mediado pelo conhecimento e pela cultura. 

A pandemia, que levou a um uso intenso das tecnologias digitais pelos professores e pelos alunos, pode ter acelerado essas visões que chama de fantásticas?

Os efeitos devastadores da pandemia podem prolongar-se por muito tempo na nossa vida. Por medo, podemos ter tendência para nos retrairmos, para nos fecharmos em ambientes familiares, privados, isolados, separados dos outros. Mas a educação é o contrário da ’separação’ — é a ‘junção’ de pessoas diferentes num mesmo espaço, é a capacidade de trabalharmos em conjunto. Não há educação fora da relação com os outros e, por isso, os professores são tão importantes. As tecnologias fazem parte da nossa vida, do dia a dia das nossas crianças, mas a educação dá-se sempre num contexto de relação humana. Não nos podemos educar sem os outros. Para criar as condições deste encontro, os professores são insubstituíveis. Hoje e no futuro.

Pensando retrospectivamente para entender a importância do papel do professor, é verdade que o surgimento deste modelo escolar, tal qual se conhece hoje, também se relaciona à profissionalização da docência?

Em meados do século 19 estabeleceu-se um modelo escolar que, nos seus traços gerais, sobreviveu até aos dias de hoje. Em todo o mundo, as escolas normais de formação de professores tiveram um papel decisivo na generalização deste modelo. Como o seu próprio nome indica, tratava-se de ‘normalizar’ a sala de aula, os métodos de ensino, os currículos, o horário escolar, as turmas, o trabalho do professor… As escolas normais não foram apenas escolas de formação de professores, no sentido estrito do termo.

Foi nelas que se definiu a profissionalização da docência, que nasceram as primeiras associações de professores, que se escreveram os primeiros manuais escolares e didáticos, que surgiu a imprensa de educação e ensino, que tiveram lugar processos de inovação, que se estudou a pedagogia e a ‘ciência da educação’, que se debateram as políticas públicas. Os novos professores, formados nas escolas normais, tiveram um papel fundamental na consolidação e generalização do modelo escolar. 

 

António Nóvoa

Com 10 artigos, o António Nóvoa acaba de lançar um livro no Brasil
Foto: Paulo de Camargo

 

Atualmente, pode-se esperar que os professores assumam novamente esse protagonismo na transformação da escola?

Hoje, pede-se às novas gerações de professores que se envolvam, com a mesma coragem e ousadia, na transformação da educação e da escola. É preciso ter cuidado com os profetas que anunciam o fim da escola e a sua substituição por modelos de open learning, ‘escolas 4.0’, ‘salas de aula do futuro’ ou outras modas corrosivas da escola e da escola pública. Darcy Ribeiro tem razão: a escola pública é a maior invenção do mundo. Não a queremos diminuir, nem perder. Queremos e devemos transformá-la.


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Há um sentimento que o senhor já denominou de mal-estar docente. O que acontece com o professor em todo o mundo? Por que, depois de terem provado sua importância social, durante a pandemia, eles precisam novamente defender seu espaço?

A situação é muito difícil. Faltam professores. As licenciaturas atraem poucos jovens. O corpo docente está envelhecido. Vive-se, em quase todos os países, um sentimento de mal-estar docente. Por quê? Julgo que há duas razões principais. Por um lado, a debilidade das políticas públicas que não têm conseguido criar boas condições de trabalho e de remuneração, reduzir as tarefas burocráticas e os episódios de violência, revigorar a formação inicial e continuada dos professores.

Por outro, as transformações em curso na educação e nas escolas que criam dúvidas e incertezas sobre o futuro da profissão docente. Há muitos discursos perigosos que parecem inovadores e modernos, mas que desgastam a profissão. Designam os professores por facilitadores, organizadores, conselheiros, tutores, mediadores, gestores, colaboradores, animadores, e muitos nomes mais. É preciso dizer sem hesitações: um professor é um professor. Ponto final. É urgente reforçar os professores, criar as condições para que possam exercer plenamente a sua missão. O resto são ilusões que se destinam, sobretudo, a fazer valer interesses privados e comerciais, pondo em causa a educação como bem público e comum. Não há transformação da educação sem ser com os professores e pelos professores.

Um tema central nas suas ideias é a autonomia do professor — não do ponto de vista de um indivíduo, mas de uma coletividade. Qual é o significado da autonomia docente? 

Para as profissões baseadas no conhecimento, como os professores, os médicos ou os engenheiros, a questão da autonomia é decisiva. A educação é uma responsabilidade pública, partilhada pelas famílias, pelo Estado e pela sociedade. Mas as decisões pedagógicas pertencem à esfera profissional dos professores. Durante muito tempo a docência foi exercida a título individual — os professores atuavam, sobretudo, no interior da sala de aula com a sua turma. Hoje, com a criação de novos ambientes educativos, de grande abertura e diversidade, torna-se indispensável a colaboração entre professores. Co-labor-ação – ação através de um trabalho conjunto. A autonomia deve ser entendida não apenas a título individual, mas no contexto de um exercício coletivo da docência. 

Como se expressa essa autonomia?

No quadro da sua autonomia, é fundamental que os professores tenham a coragem de realizar dois gestos. Por um lado, publicar a profissão, no sentido de assumir as responsabilidades públicas da profissão. Publicação — pública ação, ação pública. Ser professor é exercer uma profissão pública, participar com voz própria no espaço público da educação. Por outro lado, arriscar o futuro, com ousadia, sem medo. Os professores não devem cuidar apenas da melhoria das escolas e do ensino, devem também envolver-se numa reflexão sobre o futuro, os futuros da educação. A autonomia docente não é apenas individual, também é coletiva; tem lugar ‘dentro’ do espaço escolar, mas também ‘fora’, através da participação nos debates e políticas públicas sobre educação.

Seu trabalho mostra a existência de um saber específico da docência, que não é sem o das disciplinas, nem o da didática, mas uma espécie de entre-lugar em que se produzem conhecimentos próprios do fazer docente. Pode explicar?

É habitual valorizar o conhecimento das disciplinas (conteúdos) e o conhecimento das didáticas (métodos). Estes dois conhecimentos são muito importantes, mas não podemos ignorar um terceiro gênero, o conhecimento profissional docente. Trata-se de um conhecimento que existe na profissão, que faz parte do seu patrimônio. Não se trata de um mero conhecimento prático, mas de um conhecimento que resulta da reflexão coletiva entre os professores. 

E como isso deveria impactar a formação dos professores?

A formação de um docente não se limita à aquisição de determinadas capacidades ou competências, implica vivências, interações, dinâmicas de socialização, a apropriação de uma cultura e de um ethos profissional. É uma realidade complexa, que exige um trabalho em comum no seio da própria realidade profissional. Maioritariamente, os formadores de professores devem ser professores. Não é possível ensinar a nadar sem entrar dentro de água.

Não é possível formar um professor sem entrar dentro da profissão.  O entrelaçamento entre a formação e a profissão é a base de qualquer programa de formação de professores. No caso da formação inicial, é preciso juntar as universidades e as escolas das redes públicas, com propostas inovadoras — um bom exemplo é o Complexo de Formação de Professores do Rio de Janeiro. No caso da formação continuada, é preciso ligar a formação às novas práticas pedagógicas por meio de uma reflexão sistemática e organizada entre professores — por exemplo, o Movimento da Escola Moderna em Portugal.


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Como estabelecer um elo entre o período da formação e o exercício profissional?

Os primeiros anos de exercício docente, esse tempo entre-dois, entre o fim da licenciatura e o princípio da profissão, são decisivos nas nossas vidas profissionais, e também pessoais. Este período de transição é fundamental no modo como nos tornamos professores, no modo como construímos a carreira docente, mas também na contribuição que damos para a renovação da profissão docente. O que me interessa no debate sobre a indução profissional, por meio de residências docentes ou de outros modelos, é o lugar da profissão docente, é o reforço dos próprios professores na formação, produção e regulação da sua profissão.

A indução profissional acontece depois da ‘formação inicial’ e deve ser concebida como um primeiro momento da ‘formação continuada’. Deve ter lugar em ambientes escolares dinâmicos e propícios à socialização profissional. A responsabilidade primeira por este processo é dos professores que já estão nas escolas e que devem dar uma atenção especial ao acolhimento dos novos professores. Estamos a viver a maior transformação de que há memória na história da educação e da pedagogia. Precisamos acolher bem os jovens professores se quisermos dar futuro à profissão docente.

O senhor já disse que não acredita em reformas educacionais. Por que o mundo embarcou em tantas reformas, nos últimos 20 anos? 

A transformação da educação só acontece quando professores se juntam em coletivo para pensarem o seu trabalho e para construírem práticas pedagógicas diferentes. Não vale a pena esperar por uma nova reforma ou por uma nova lei ou por um novo método ou por uma nova teoria ou por uma nova tecnologia… O mais importante é libertar as energias que existem nas escolas e nos professores. Precisamos conhecer, estudar, partilhar e dar visibilidade a experiências, por vezes ainda incipientes, mas que são o embrião de novas realidades. Assim se vai anunciando e enunciando o futuro. Muitas vezes, as políticas educativas não fazem apelo à participação dos professores. É inaceitável. A participação é difícil, demora tempo, exige trabalho. Mas sem ela não vale a pena a retórica constante sobre a importância dos professores. Fica tudo na casca das palavras. 

António Nóvoa

“A educação é uma responsabilidade pública, partilhada pelas famílias, pelo Estado e pela sociedade. Mas as decisões pedagógicas pertencem à esfera profissional dos professores”
Foto: Leandro Rocha

 

Quando se fala em reforma curricular hoje, estamos falando do quê?

Em 1923, há precisamente 100 anos, o filósofo francês Alain deixou-nos uma provocação surpreendente: “Concebo a escola como um lugar onde o professor trabalha pouco, e a criança trabalha muito”. Mais importante do que intermináveis discussões sobre os ‘conteúdos’, o que verdadeiramente conta é a capacidade de construirmos a escola como uma comunidade de trabalho. Não se trata de trabalho no sentido manual ou mecânico, mas de criar as condições para que os alunos trabalhem, isto é, para que se dediquem ao estudo, à leitura, à escrita, à investigação, à resolução de problemas, ao desenvolvimento de projetos, à criação. 

É possível pensar o futuro da escola também a partir dessa ideia de uma escola em torno do trabalho dos alunos?

Quando organizamos a vida da escola em torno do trabalho estamos a ser coerentes com três princípios centrais para pensar os futuros da educação. Primeiro, a cooperação, porque do ponto de vista pedagógico não há nada mais importante do que a cooperação. Os alunos aprendem com os professores, mas aprendem também com os seus colegas. Segundo, a cidadania, porque a incapacidade de lidar com os alunos que estão ‘desligados’ da vida escolar continua a ser o nosso maior problema. Sem alunos ‘interessados’, presentes, empenhados nas tarefas diárias, é impossível avançar no esforço de educar todos. Terceiro, a diversidade, porque valorizar o trabalho implica criar uma diversidade de situações educativas, com a participação de todos. Numa realidade escolar uniforme e homogênea, é difícil promover dinâmicas coerentes de inclusão.

Numa escola do trabalho, a diferença deixa de ser um problema para se tornar uma necessidade. O ‘trabalho‘ é o denominador comum das experiências e iniciativas de transformação da educação. 

Por fim, quero avançar na ideia central de seu livro: libertar o futuro? De onde vem essa ideia? Qual é a importância da discussão sobre liberdade nos tempos atuais?

Para quê servem os professores? A pergunta já foi feita vezes sem conta. Acrescento mais uma resposta: servem para libertar o futuro. O futuro das crianças e o futuro das sociedades. Servem para alargar as possibilidades de futuro. Servem para abrir caminhos e mudar destinos. Mas, para que possam cumprir a sua missão, de libertar o futuro, é necessário libertar o próprio futuro dos professores, é necessário dar aos professores as condições que lhes permitam afirmar a sua posição no plano profissional e no plano público.

Não podemos continuar a exigir-lhes quase tudo, e a dar-lhes quase nada. A escola não é apenas um serviço, é acima de tudo uma instituição, que nos constrói como sociedade, que nos abre ao mundo e aos outros, que alarga a liberdade dos alunos, que permite a cada um construir um futuro a que nunca teria chegado se tivesse ficado em ‘casa’. A escola pública tem de ser um espaço de liberdade. Não posso ser livre se os outros viverem em ditadura. É preciso fortalecer os professores para ensinarem em liberdade, e com liberdade. A escola pública é uma instituição imprescindível para defender e promover os direitos humanos, para lutar contra todos os autoritarismos, para combater a fragmentação das sociedades e para promover a convivialidade, isto é, uma humanidade comum.

Escute nosso episódio de podcast:

Autor

Paulo de Camargo


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