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José Pacheco

Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)

Publicado em 10/07/2023

A gestão do tempo e as burocracias

Eu suspeitava de que existia alguma analogia entre o banho de sol dos presidiários e o recreio dos alunos

Netos queridos, admiro o vosso interesse pelas pedagógicas bagatelas, que vou debitando nestas cartinhas. São pedaços de memórias dispersas por mais de 50 anos de andarilhagem. Hoje, me recordei da última viagem (de trabalho) a Portugal. O Nuno me levou até Aveiro, no propósito de ajudar educadores inquietos a libertarem-se de burocráticos espartilhos, inclusive da gestão do tempo, ainda tão padronizada.


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Num cavaquear informal, veio à baila um primeiro burocrático espartilho: a gestão do tempo. Com propriedade, o Carlos me disse manter na sua escola o regime trimestral. Não cedia à moda semestral, herdada de uma farsa chamada ‘flexibilidade curricular’.

“Por que não anual?” – perguntava.

Sim. Por que não bimestral, trimestral, quadrimestral?

Naquele tempo, a escola do ‘tempo da aula’ alternava com o ‘tempo de férias’. E eu questionava: os hospitais e as igrejas também fechariam para férias? Imaginai o vosso filho com uma crise de apendicite aguda. Chegados ao hospital, depararíeis com este aviso:

“Estamos de férias. Deixe a sua inscrição no atendente e volte dentro de um mês”.

É evidente que o apêndice se romperia e o vosso filho morreria.

Imaginai outro, afixado na porta de uma igreja:

“Volte em fevereiro, porque o pastor, o padre, Deus e os santos estão de férias”.

Alguém imaginaria contemplar dísticos desse tipo? Só nas escolas desse tempo, que não sabiam que a aprendizagem acontecia nos 365 dias de cada ano e nas 24 horas de cada dia.

À revelia das descobertas da cronobiologia, as escolas mantinham rituais de horário fixo, como a hora de entrar e de sair, ou os 50 minutos de uma aula, que ninguém sabia explicar por que eram 50. E, entre dois toques de sirene, se anunciava um recreio de meia hora.

 

Eu suspeitava de que existia alguma analogia entre o banho de sol dos presidiários e o recreio dos alunos, pois todos deveriam merendar, fazer xixi e defecar ao mesmo tempo, e vigiados.

Numa entrevista, Ramon Flexa afirmara: “A educação precisa de ser mais científica”.

O que haveria de científico na padronização do tempo operado por um obsoleto sistema de ensinagem? Absolutamente nada!

Mutatis mutandis, cada educador deveria gerir o seu tempo de trabalho, harmonizando-o com o ritmo de aprendizagem de cada aprendiz e com o pulsar de uma comunidade.

Nos anos 90, Ramon Flexa publicara um enunciado de princípios de ‘aprendizagem dialógica’. E logo mais um modismo foi lançado como paliativo do velho sistema de ensinagem: as chamadas ‘comunidades de aprendizagem’. Os ministérios da Educação de Portugal e do Brasil apressaram-se a comprar mais esse modismo, disseminando caricaturas dos princípios da aprendizagem dialógica a que deram a designação de ‘atuações educativas de êxito‘. A inovação fenecia e a mudança era, mais uma vez, adiada.


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O modelo de ensinagem era enfeitado com aulas de apoio ou de reforço, ‘salas do futuro, de cultura maker e de games’, com ‘qualidade total’, cursos de ‘planejamento de aula’, ‘ensinos híbridos’ e até ‘capacitações para dar aulas com alegria’ (sic).

Insanas cosméticas eram ensaiadas: o trimestre era substituído por semestre, livros didáticos de papel eram substituídos por manuais digitais. Na sociedade do espetáculo, medidas demagógicas prolongavam a agonia da escola da aula, e a mídia mostrava reportagens de distribuição de laptops às criancinhas.

No último dos périplos portugueses, me despedi de escolas e educadores. Mantive amigáveis e amorosas relações. E deixei com amigos e amores uma proposta, uma última e radical proposta — uma nova construção social de aprendizagem.

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