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Adriana Fóz

É neuropsicóloga, educadora e diretora da NeuroConecte

Publicado em 22/12/2022

Uma ponte entre o cérebro e o professor

Principal órgão da aprendizagem é o cérebro, mas será que educadores devem aprender o seu funcionamento?

cerebro-professor Foto: Freepik

Será que alguém discorda que investir na educação é uma solução para muitos dos desafios do Brasil? Um país que apresenta um precário índice de cidadãos que leem e escrevem fluentemente, uma porcentagem vergonhosa de analfabetos e alfabetizados funcionais (ocupando a 54ª posição no Pisa, a principal avaliação internacional de desempenho escolar), que nos coloca abaixo de países como Botsuana, e que está em último lugar no eixo que avalia a educação (estudo elaborado pelo IMD World Competitiveness Center sobre a prosperidade e a competitividade de 64 nações) não pode negligenciar esforços em prol do ensino e aprendizagem na educação.

A educação escolar, a qual inclui construir uma relação positiva, ética, responsável e conectada ao desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e integral do estudante, envolve todos os atores escolares, desde alunos, professores, gestores e outros. No entanto, a função de promoção da aprendizagem é do professor, aquele profissional que deve desafiar o cérebro do estudante, visando a construção do aprendizado por ele mesmo. Portanto, escolher identificar ou entender o que o docente sabe sobre como o aluno aprende, é relevante.


Leia: Como o cérebro aprende e a importância de lidar com as emoções


O principal órgão da aprendizagem é o cérebro, mas será que para ensinar precisamos aprender sobre seu funcionamento? Entender que o aluno só usa 10% de sua capacidade cerebral ou ainda que canhotos são menos inteligentes pode impactar negativamente o ensino e a aprendizagem dos estudantes? Estas perguntas têm sido objeto de estudo de um crescente número de cientistas que buscam as conexões, não apenas aquelas entre os neurônios – as chamadas sinapses -, mas as que podem criar ‘pontes’ entre as neurociências e a educação.

Em 1997 o neurocientista John T. Bruer escreveu um artigo que se tornou um marco neste tema: Education and the brain: a bridge too far (em tradução livre Educação e cérebro: uma ponte muito longe). Muitas universidades, de várias partes do mundo, desde então, se empenharam pesquisando a influência dos neuromitos na educação, pois enquanto não se tem tantas evidências sobre estas correlações práticas é relevante que informações equivocadas não passem a ser erroneamente interpretadas pelos professores.

Um artigo recente intitulado A bridge too far-revisited: reframing Bruer’s neuroeducation argument for modern science of learning practitioners (em tradução livre Uma ponte revisitada muito longe: reenquadrando o argumento da neuroeducação de Bruer para a ciência moderna dos profissionais de aprendizagem), de Jared C. Horvarth e Gregory M. Donoghue, renova e aproxima ainda mais o quanto o professor pode tornar-se mais capaz de promover a aprendizagem de seus alunos por meio do que se chama, no mundo acadêmico, de “evidence based learning and teaching” ou na nossa língua portuguesa, “ensino e aprendizagem baseados em evidências” da ciência. 

E foi esta a ‘ponte’ que a educadora Adriana Fóz passou a construir há 30 anos, quando no Brasil o cérebro parecia ainda mais longe da escola. Esta trajetória a levou a cursos fora do Brasil, mas também fez com que cruzasse com uma neurologista mineira(1), autora do projeto “O cérebro vai à escola”, com a qual participou de cursos e congressos em 2013, quando a Neuroeducação ainda engatinhava. Adriana também criou os Neuropapos (conversas sobre o cérebro aprendiz com professores e alunos); é autora do Newneu, o superneurônio (livro infantil), A cura do cérebro (ed. Novo Século), dentre outros.


Leia: Neurogênese, plasticidade cerebral e a sala de aula


Mais ou menos no mesmo período a neurocientista estadunidense Analía Arévalo junto com outros colaboradores estava finalizando um estudo para entender o conhecimento sobre o cérebro e as neurociências entre leigos de várias idades, profissões e regiões brasileiras.

Em 2014, Analía mudou-se para o Brasil e junto com o neurocirurgião brasileiro Guilherme Lepski, que também tinha estudado e trabalhado fora do Brasil, criou o primeiro curso multiprofissional de especialização em neurociências do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo.

O projeto do curso surgiu da observação de que no país existem poucas opções de estudo de graduação nas neurociências, portanto, profissionais interessados (áreas da saúde e educação, entre muitos outros) contam com poucos recursos e orientação na própria carreira. Foi nesse curso, que alunas (uma publicitária e outra bióloga) se interessaram em fazer essas perguntas tão importantes. O próximo passo estava muito claro: fazer a mesma sondagem entre os educadores.

Por outro lado, pesquisas científicas sobre neuromitos começaram a ser mais recorrentemente realizadas, assim como a da cientista brasileira Roberta Ekuni e colaboradores, inclusive se transformando em ‘caçadores de neuromitos’ na sociedade de modo geral. Assim como as pesquisas com professores, mas não em termos de uma representatividade em todo o país.

Atualmente é bem clara a necessidade de translacionar o laboratório para a sala de aula e vice-versa, ‘faísca’ que culminou no artigo científico Neuroscience knowledge and endorsement of neuromyths among educators:what is the scenario in Brazil? (em tradução livre Conhecimento em neurociência e endosso de neuromitos entre educadores: qual é o cenário no Brasil?), de autoria tanto de Adriana quanto de Analía (e outros pesquisadores) recentemente publicado na revista internacional Brain Sciences.

A ‘faísca’ teve início, então, quando as duas profissionais, a educadora e neurocientista, somando esforços – como em uma sinapse -, se uniram para a pesquisa de nível nacional, visando um melhor quadro, ou seja, mais informações do que os professores acreditam do que é atribuído ao cérebro que aprende.

E como tudo tem história, a deste artigo começou em um momento de investigação do ‘cérebro’ do professor, ainda longe do laboratório, quando Adriana Fóz iniciava uma pesquisa não acadêmica há mais de seis anos. Enquanto viajava para palestrar sobre neurociência na educação para educadores em cidades nas cinco regiões brasileiras, notou equívocos nas informações e estratégias usadas ou creditadas em nome da ciência do cérebro.

Tal pesquisa foi amadurecendo principalmente por meio da conexão entre a educadora e neurocientista, e foi recriado o questionário contendo 28 questões para tentar avaliar o conhecimento sobre as neurociências e a crença nos famosos ‘neuromitos’ entre educadores brasileiros. Por meio das nossas redes e contatos, foi obtido respostas de 1.634 educadores provenientes de todas as regiões do Brasil, em capitais e nas periferias, com atuação em todos os níveis de ensino, assim como em todo tipo de escola (privadas e públicas).


Leia: Formação continuada de professores assume contornos de um desafio global


Esse estudo inédito revelou uma grande discrepância entre os níveis de conhecimento dos educadores em diferentes regiões, tipos de escola, e nível de ensino. Comparando com estudos similares internacionais, os educadores brasileiros em situação de vantagem (escolas privadas, região Sudeste) e educadores universitários e de pós-graduação responderam igual ou melhor do que os educadores entrevistados em países como Estados Unidos e Europa.

Podemos refletir que este fato se deu por conta de a amostra demonstrar algum tipo de interesse no tema, uma vez que o questionário foi respondido de forma livre e esclarecida. Profissionais que não tinham interesse podem não ter respondido. Em geral, o desempenho foi significativamente menor entre os educadores que vivem no Norte, Nordeste e Centro-Oeste do que aqueles que vivem e lecionam no Sul e Sudeste, refletindo desigualdades de longa data entre as regiões em relação à educação e acesso geral a recursos.

No entanto, as afirmações sobre alfabetização, leitura e escrita foram respondidas melhor por educadores do Norte, o que pode refletir a recente implementação de projetos locais direcionados a estes fins nessas regiões menos favorecidas. Investigando o que acontecia em Manaus e entorno na época encontramos o art. 1º da Lei nº 2.365, de 12 de novembro de 2018(4) que inclui não apenas a valorização do docente no concernente a salários, abonos, e investimento das suas formações quanto para aqueles que cumprem meta de ensino, de desenvolvimento integral de crianças, de redução de evasão e cumprimento de currículos da gestão integrada da educação.

Na região foram encontradas muitas iniciativas que já apostavam em projetos como o Proerd Baby, o programa de Valorização Profissional e o programa de Desenvolvimento Integral e Socioemocional dos Infantes(5). Tais ações trazem uma reflexão sobre o ensino da alfabetização: conhecer o cérebro ou conhecer o desenvolvimento integral da criança promove a alfabetização? Sim, desenvolvimento integral contempla as informações necessárias sobre o cérebro que aprende, principalmente se for cedo, como parece ter sido o caso dos investimentos na educação infantil desta localidade.


Escute nosso episódio de podcast:


Outro achado da pesquisa publicada na Brain Sciences é que o desempenho também foi menor entre educadores das periferias versus as capitais das grandes cidades, e entre educadores em instituições públicas versus privadas. Criticamente, o conhecimento geral foi relativamente menor entre educadores que ensinam níveis mais baixos (pré-escolar, jardim de infância e escola primária) em relação aos que lecionam na faculdade/universidade. Esse achado é particularmente preocupante, considerando que os primeiros anos são fundamentais para o desenvolvimento de habilidades básicas e para a identificação de sinais (dificuldades) que podem se beneficiar da intervenção precoce.

Educadores neste nível, apesar de recorrerem a cursos disponíveis sobre neuroeducação, têm pouco conhecimento da função cerebral e distúrbios de aprendizagem que combinados com noções equivocadas preconcebidas das habilidades inatas dos indivíduos ou da capacidade de aprender podem ter efeitos negativos duradouros sobre a educação e o futuro de seus alunos.

Além disso, alguns neuromitos se destacaram como mais prevalentes, podendo afetar de forma negativa o desempenho dos educadores, especialmente os que ensinam nos níveis pré-escolar e fundamental. Entre eles, a ideia que usamos somente 10% do nosso cérebro, endossado por quase 48% dos educadores brasileiros; a ideia que os hemisférios cerebrais dominam funções diferentes (racionalidade vs. criatividade); que professores deveriam usar estratégias de ensino seguindo essa ideia (endossado por 56% dos educadores), e finalmente, a ideia que homens e mulheres (ou meninos e meninas) teriam cérebros com habilidades diferentes (nesse caso, um terço dos educadores concordou).

É conhecido que entendimentos enviesados, informações mal interpretadas assim como as ‘neuro fake news’ podem trazer muitos prejuízos que levarão tempo para serem superados, podemos andar para trás e ainda em nome da neurociência, dissipar e fazer valer inverdades. E também precisamos descontar para uma análise mais acurada o fato de que indivíduos que respondem a uma pesquisa online de modo espontâneo possa ser aquele que já se interessa mais pelo assunto em questão, conforme indicado anteriormente. No entanto, se relevarmos as informações sobre alfabetização no Norte do país, conhecer mais sobre o cérebro do leitor parece colaborar com a alfabetização.

O que o professor deve saber, então, vem se tornando um importante campo de investigação também no Brasil, em que se faz necessário um novo olhar, um repensar da construção pedagógica que contemple informações vindas do estudo do cérebro que aprende.

Sem mitigar a pluralidade dos desafios educacionais, esperamos que esta pesquisa científica e suas reflexões colaborem com a ‘ignição’ ao tema, mas também que haja cada vez mais esforços coletivos, contribuindo fortemente com a formação dos educadores e aprendizagem de todos.

(1)Leonor Guerra, médica neurologista da UFMG criou o projeto “O cérebro vai à escola”

(2) Simoes, E.; Foz, A.; Petinati, F.; Marques, A.; Sato, J.; Lepski, G.; Arévalo, A. Neuroscience Knowledge and Endorsement of Neuromyths among Educators: What Is the Scenario in Brazil? Brain Sci. 2022, 12, 734. https://doi.org/10.3390/ brainsci12060734

(3)https://neuroconecte.com/artigo-revista-brain-science/

(4)http://leismunicipa.is/utcxh

 (5)https://informemanaus.com/2021/com-mais-de-tres-decadas-pre-escola-creche-infante-tiradentes-avanca-na-educacao-de-excelencia/

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