ARTIGO
Pesquisadora referência em semiótica discorre sobre a transformação tecnológica em uma sociedade que ainda não conseguiu respirar e compreender seus próprios dilemas
Há um grande equívoco em chamar o computador de ferramenta, decreta a pesquisadora dos dilemas humanos e suas tecnologias Maria Lucia Santaella Braga. Para ela, é preciso expandir a concepção de linguagem. “Computador é uma tecnologia inteligente e inteligência é linguagem. Se ficarmos presos à noção de que linguagem é apenas linguagem verbal, a gente não vai muito longe. Principalmente porque estamos vivendo uma contemporaneidade de hibridização total das linguagens. Então, linguagem é aquilo que nos faz pensar. Sem ela não há pensamento, não há comunicação. O que nós fazemos sem linguagem?”, enfatiza.
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Lucia Santaella tem 51 livros publicados, é professora titular na pós-graduação em comunicação e semiótica e coordenadora da pós-graduação em tecnologias da inteligência e design digital da PUC-SP. Lançou em 1983 O que é semiótica (ed. Brasiliense), livro que a colocou numa posição em que permanece até hoje: o de referência na área que leva o título da obra e que é voltada, resumidamente, ao estudo da construção dos significantes e significados humanos e de suas linguagens verbais e não verbais. O ano da publicação coincide com a explosão internacional da semiótica. “Na França, já tinha explodido nos anos 70 e eu peguei a coisa aqui no Brasil nascendo. Estudei muito semiótica e fica como uma espécie de plataforma básica do meu pensamento.”
Como semioticista, professa a corrente filosófica do estadunidense Charles Peirce. Estudiosa de outros pensadores como o canadense Marshall McLuhan, Santaella sabe da importância de compreender as relações humanas e que para isso é preciso contextualizar.
“O ser humano é feito de linguagem e com o computador aparecem as máquinas cerebrais que expandem a nossa capacidade mental, mas quando o computador abriu suas comportas, deixou de ser aquele aparelho que eu tinha em casa onde escrevia meus textos nos anos 80. De repente, ele se abre e vira um meio de comunicação de uma potência inacreditável e interativo – daí que vem a noção de interface humana e computador. Acho que a gente está em uma fase de simbiose humana-computador, não se trata mais de interface.”
Nessa perspectiva, o celular é uma linguagem, e não ferramenta, por ser um prolongamento não apenas da mente, mas da sensibilidade e da comunicação.
Devido à busca pela renovação em que todos os setores estão mergulhando e por conta de seu reconhecimento intelectual, têm crescido convites em áreas como educação e linguística para Santaella expor seus trabalhos e convicções. Tanto que este ano se tornou a primeira titular da Cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. Por lá, continuará debruçada sobre pesquisas, leituras e produções textuais que se preocupam com os dilemas atuais oriundos dos avanços tecnológicos e que o ser humano está com dificuldade de acompanhar.
Para ela, a escola ainda não compreendeu, e muito menos dialoga com algumas transformações. O uso do termo letramento digital, por exemplo, a irrita profundamente. “O digital não tem nada a ver com letra e se a letra entra, entra em igualdade de condições com outras linguagens. Vídeo não é letramento digital. É que em inglês literacy quer dizer que você tem a educação letrada – isso já está em crise desde o século 19…Estamos convivendo com vários tipos de cognição, porque a linguagem não é instrumento, é mais que isso, cada tipo de linguagem produz um conjunto de habilidades cognitivas distintas e cada tipo de linguagem representa a realidade de maneira diferente.”
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Para clarear, se antes a educação formal era paralela às atividades em casa, a criança saía da escola e entrava em outro mundo, da televisão, filmes, quadrinhos, “com o mundo digital não dá mais para viver no paralelo porque começou a penetrar capilarmente na nossa vida. Por outro lado, o mundo digital é infotenimento (informação e entretenimento ao mesmo tempo) e você não pode desperdiçar a fonte imensa de informação que vem das redes e que eu chamo de aprendizagem oblíqua. Se tenho qualquer curiosidade, vou no chrome, clico e tenho respostas. Olha que problema para a educação”, acredita.
O pensamento das pessoas hoje é híbrido justamente por estar sendo povoado de diferentes linguagens híbridas e não verbais, enfatiza Lucia Santaella, cuja linha de pesquisa se contrapõe às de teóricos como o suíço Ferdinand de Saussure, pai da linguística moderna que acreditava apenas existir linguagem verbal.
Baseada em estudos, Santaella chegou a cinco tipos de leitores em que um complementa o outro. O importante aqui é atentar que a pesquisadora analisa aspectos cognitivos e considera como leitura não apenas decifrar as letras. O primeiro tipo de leitor é o mais óbvio, o contemplativo, aquele do livro de estrutura da idade pré-industrial, com escrita sequenciada e de imagem fixa. O segundo é o movente ou ouvinte, que nasce na revolução industrial, com as grandes cidades, e que começa a fazer conexões por meio do jornal, fotografia, cinema, televisão, rádio (a que hoje a sociedade está tão acostumada). Em seguida vem o leitor imersivo, que se consolida nos anos 90 com a chegada do computador e seus espaços em redes. Prontidão sensorial, não linearidade e interatividade são algumas das habilidades novas em relação aos demais leitores.
“Se o ser humano não tivesse passado do contemplativo para o movente, nossa sensibilidade não estaria preparada para essa interconexão que a gente faz de links, que é chamada de hipertexto e hipermídia. Aliás, sabe quem começou a preparar a sensibilidade humana para a hipermídia? Controle remoto”, complementa Santaella.
O quarto leitor, o oblíquo, surge em uma velocidade assustadora oriunda da internet e redes sociais e com os equipamentos móveis, como o celular, permitindo acesso ao mundo digital em qualquer ambiente. O leitor precoce é o último e o mais recente dentro das pesquisas da estudiosa. Diz respeito aos bebês que antes de andarem e falarem já manipulam o celular com destreza e naturalidade. “Já têm operações lógicas funcionando, sabem escolher, onde pôr o dedo”, explica.
Fake news é definida por Lucia Santaella como a praga da condição atual da internet. “No começo festejávamos a web, mas o ser humano tem diabo dentro dele, não é nada bonzinho. Conclusão que falo brincando com fundo de verdade: tendências lunáticas e perversas sempre existiram dentro do ser humano, mas agora vieram à tona. Acontece que fake news e a desinformação são fruto da grande falta de formação educacional, e não estou falando de dar diploma ou passar do ensino básico para o superior, estou falando de uma educação de si. Educação nos torna mais exigentes com nós mesmos.”
Para evitar essa praga, ela diz que a alternativa é desenvolver a capacidade da suspeita.
“Temos que aprender a reconhecer a mentira, a falsidade. Estamos em um momento muito sombrio. Não acredito em outra saída a não ser educar, investir na educação como formação para a vida e para exercício da autocrítica, capacidade de diálogo e aceitação. Só acredito na educação, só acredito no conhecimento.”
O uso da tecnologia não apenas como meio de transpor conteúdo