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Edição 260

Alterações na composição de microrganismos podem estar associadas à gênese do transtorno do espectro autista

Pesquisas relacionam a possibilidade da microbiota intestinal interferir no neurodesenvolvimento humano

Publicado em 09/08/2019

por Fernando Louzada

neuro-intestino Foto: Shutterstock

Estima-se que um indivíduo adulto possua trilhões de microrganismos – a maioria, bacté­rias – em seu trato gastrintestinal. Essa microbiota está associada a uma série de processos fundamentais à sobrevivência: prevenção contra microrganismos patogênicos, produção de vitaminas, regulação da resposta inflamatória, entre outros. Estudos recentes têm demonstrado que o desequilíbrio da microbiota intestinal pode causar uma série de doenças, não apenas ligadas ao sistema digestório; ela também pode fazer parte da etiologia de transtornos do neurodesenvolvimento.


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Parte das evidências a favor dessa ideia vem de estudos realizados com animais de laboratório criados em ambiente estéril, chamados de germ-free. Camundongos germ-free apresentam diferenças comportamentais quando comparados àqueles que possuem microbiota. Até o momento, os resultados obtidos com esses animais não são plenamente consistentes e, em alguns casos, foram até contraditórios. De qualquer forma, estudos com animais germ-free mostram que a microbiota gastrintestinal pode alterar a expressão de genes e a transmissão sináptica no sistema nervoso nos primeiros estágios de desenvolvimento, deixando marcas duradouras no comportamento.

Atualmente fala-se na existência de um eixo intestino-cérebro, formado pela comunicação bidirecional entre esses dois órgãos por vias neurais e hormonais. Por exemplo, substâncias produzidas pelos microrganismos podem atuar sobre o nervo vago, alterando a transmissão nervosa. Sabe-se que esse nervo tem um papel importante em modular a atividade cerebral e o comportamento.

Artigo publicado no início de 2019 na importante revista Nature Microbiology reforça a ideia da influência da composição da microbiota na saúde mental. No estudo, a composição da microbiota de mais de 1.000 voluntários foi identificada paralelamente à avaliação da saúde mental e da qualidade de vida. A presença das bactérias Faecalibacterium e Coprococcus foi associada a melhor qualidade de vida. Uma possível explicação para o resultado é que essas bactérias são produtoras de butirato, substância que fortalece a barreira de defesa da parede do intestino e reduz a inflamação intestinal. Os pesquisadores também identificaram uma associação entre a ausência de Coprococcus na microbiota e depressão, confirmando a importância da presença dessa bactéria para a manutenção da saúde mental.

Muitos pesquisadores têm trabalhado com a possibilidade de que alterações da microbiota poderiam estar associadas à gênese do transtorno do espectro autista (TEA).  Essa hipótese tem respaldo em estudos rea­lizados com animais germ-free, os quais apresentam comportamento social alterado, uma das características de pessoas identificadas dentro do espectro autista. As causas do TEA são desconhecidas, sendo que fatores genéticos e ambientais têm sido associados ao transtorno.

Diversos estudos têm identificado sintomas gastrintestinais – como constipação e diarreia – e alterações imunológicas nesses pacientes, como aumento de citocinas, substâncias pró-inflamatórias, no fluido cérebro-espinhal. Estudos comparativos da microbiota que utilizam sequenciamento genético e análise metabólica dos microrganismos têm identificado diferenças entre crianças diagnosticadas com TEA e crianças neurotípicas. Uma das diferenças é uma menor diversidade da microbiota no TEA. Entretanto, não é possível identificar a origem dessa alteração, já que com frequência crianças com TEA possuem alterações na dieta e no comportamento alimentar, o que poderia alterar a microbiota.

neurodesenvolvimento espectro autista

Foto: Shutterstock

A partir dessas evidências, têm sido realizados estudos para avaliação dos efeitos da indução de alterações da microbiota. No início deste ano, experimento realizado por pesquisadores do Baylor College, em Houston, EUA, e publicado na revista Neuron, mostrou que a introdução da bactéria Lactobacillus reuteri foi capaz de reverter déficits de interação social em camundongos que são utilizados como modelo experimental de TEA.

Apesar de os mecanismos não terem sido identificados, os autores especulam que a ação seria via nervo vago, que promoveria aumento da plasticidade sinápti­ca em áreas encefálicas envolvidas com o comportamento social. Resultados como esse têm dado suporte a intervenções de transplante fecal realizadas nos últimos anos, as quais ainda não apresentam resultados conclusivos em relação aos efeitos benéficos sobre os transtornos de neurodesenvolvimento.

É importante salientar que para que seja comprovada uma associação entre a composição da microflora intestinal e o desenvolvimento de sintomas do TEA são necessários mais estudos – primordialmente longitudinais, que acompanhem as mesmas crianças – que envolvam a análise da composição da microbiota desde os primeiros meses de vida, época em que um possível efeito sobre o sistema nervoso deixaria marcas mais duradouras.

Em resumo, a relação entre microbiota intestinal e saúde mental é intrigante e apresenta inúmeras controvérsias. Apesar de ser uma área promissora, ainda é cedo para sabermos se serão geradas intervenções seguras que possibilitem a prevenção e/ou o tratamento de transtornos do neurodesenvolvimento. Dada a complexidade desses transtornos – como é o caso do TEA – é pouco provável que surja uma solução simples para eles.

Fernando Louzada é doutor em Neurociências e Comportamento pela USP e pós-doutorado pela Harvard Medical School

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Autor

Fernando Louzada


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